Esta apreciação, escrita em 2004, destaca a importância do
alemão Douglas Sirk para o melodrama cinematográfico made in USA. Houve época em que o cineasta e o gênero faziam
estremecer os defensores do mal definido bom gosto. Tudo começa a mudar quando cronistas
da prestigiada publicação Cahiers du Cinéma, como François
Truffaut e Jean-Luc Godard, perceberam o quão personalizados e próprios eram os
filmes do diretor, além da familiaridade que guardavam com os andamentos da
ópera e da tragédia. Mais contemporaneamente, Sirk se tornou referência para cineastas
tão diferentes como o alemão Rainer Werner Fassbinder e o espanhol Pedro
Almodóvar. Ambos estão unidos na preferência que concedem a Palavras
ao vento (Written on the wind, 1956). Repleto de exageros expressos em
som, cor, fúria e simbolismos, é um dos momentos supremos do cinema
melodramático. Provavelmente, conforme Sirk, é o exemplar de sua filmografia
que melhor define o melodrama como a perfeita tradução da violência psíquica,
principalmente por mirar os problemas básicos de indivíduos incompletos,
disfuncionais, atormentados e frustrados. Como nas melhores tragédias, a família
é o campo de batalha para o extravasamento das dores que engessam ou maculam as
almas. Rock Hudson e Lauren Bacall protagonizam a história. Mas a centralidade
do drama está com os irmãos representados pelos coadjuvantes Robert Stack e
Dorothy Malone, ambos em desempenhos surpreendentes.
Palavras ao vento
Written
on the wind
Direção:
Douglas Sirk
Produção:
Albert Zugsmith
Universal International Pictures
EUA — 1956
Elenco:
Rock Hudson, Lauren Bacall, Robert
Stack, Dorothy Malone, Robert Keith, Grant Williams, Robert J. Wilke, Edward C.
Platt, Harry Shannon, John Larch, Joseph Granby, Roy Glenn, Maidie Norman,
William Schallert, Joanne Jordan, Dani Crayne, Dorothy Porter e os não
creditados Gail Bonney, Paul Bradley, Robert Brubaker, Carl Christian, Kevin
Corcoran, George DeNormand, Don C. Harvey, Phil Harvey, Bert Holland, Jane
Howard, Carlene King Johnson, Chester Jones, Glen Kramer, Robert Lyden, Robert
Malcolm, Coleen McClatchey, Susan Odin, Cynthia Patrick, Floyd Simmons, Robert
Winans, Bess Flowers, Chuck Hamilton, Harold Miller, Ralph Moratz, Barry
Norton, Hal Taggart, Robert Winans.
Bastidores de Tudo o que o céu permite (All that heaven allows, 1955): o diretor Douglas Sirk com os protagonistas Jane Wyman e Rock Hudson |
Durante muito tempo qualquer menção
ao alemão Douglas Sirk (1897-1987) — Hans Detlef Sierck é o verdadeiro nome — provocava
repulsa no seio de cinéfilos autoproclamados conscientes, principalmente entre
partidários do sempre mal definido bom gosto. Hoje, tudo mudou; ou quase. Provavelmente,
a reavaliação começou por François Truffaut, já nos anos 50. O realizador de Os
incompreendidos (Les quatre cents coups, 1959) ainda era
cronista em tempo quase integral para a prestigiada revista Cahiers
du Cinéma. Conforme parafraseado de Os filmes de minha vida, Douglas
Sirk e seus melodramas representam o que há de mais eminente, pois equivalem,
em termos cinematográficos, às melhores fotonovelas coloridas[1].
Pronto! Truffaut foi ao essencial. Ao elevar o status do vilipendiado realizador, responsável por obras fundamentais
do melodrama — Desejo atroz (All I desire, 1953), Sublime
obsessão (Magnificent obsession, 1954), Tudo o que o céu permite
(All
that heaven allows, 1955), Chamas que não se apagam (There's
always tomorrow, 1956), Almas maculadas (The
tarnished angels, 1957), Imitação da vida (Imitation
of life, 1959) —, incluiu-o no seleto rol de cineastas estadunidenses
valorizados como autores pelo periódico francês. Assim, Sirk deixava de ser
percebido meramente pelo prisma do artesão competente, mas evitável. Impregnava
os filmes com marca específica, pela qual se percebia uma visão-de-mundo própria
— repleta de personalidade, portanto, intransferível. Entre os títulos
mencionados, tão poderosamente representativos do universo sirkeano, Palavras
ao vento merece especial destaque. É um dos momentos supremos do
melodrama cinematográfico made in USA.
Apesar das abissais diferenças que os separam, perde apenas[2]
para Amar
foi minha ruína (Leave her to heaven, 1945), de John
M. Stahl, do qual Sirk é discípulo e continuador.
Melodramas, grosso modo, são
histórias repletas de som e fúria. Abusam do drama e da música altissonante em
suas vertentes mais emotivas e sentimentais. Para muitos, são novelas que
apelam de forma despudorada aos baixos instintos das massas carentes de razão e
ilustração. Estas, supostamente, apreendem a vida exclusivamente pela recorrência
aos sentidos, carregando o esforço de absorção com o que há de mais sanguíneo e
visceral. Choro, grito, lágrimas e sensações elevadas ao ponto da ebulição
compõem a matéria prima melodramática. Os gestos carregados, em tom maior,
ampliam-se com as consequências do fracasso e da frustração de seres
desgovernados, tangidos por forças irracionais, desprovidas de sentido terreno,
conforme o melhor espírito das tragédias. São realizações marcadas por cores
fortes — mesmo que alguns dos mais prestigiados melodramas cinematográficos
sejam em preto e branco —, impregnadas de simbolismo. Sirk jamais escondeu a
adesão ao gênero. Definiu-o como a melhor tradução da violência psíquica.
Assim, necessita da complementação de aparatos capazes de sugerir e transmitir
impulsividade, compulsões, traumas, complexos, muitas vezes ocultos no âmago de
subjetividades acuadas, carentes e feridas. Tanto extravasamento de aspectos
recônditos da individualidade fez do melodrama um gênero menor, a ser evitado
por quem valoriza o controle da vida nos planos lógico-racionais. No cinema, a
potência do melodrama foi elevada pela música — quase sempre desenvolvida como sucessão
de crescendos e atenuações, capaz de conduzir o espectador a uma situação de
montanha russa em cujo ápice melódico está também o ponto culminante da
história. Em realidade, melodramas conduzidos sem os devidos cuidados podem
resultar em produções da mais pura perversão e gratuita manipulação de
instintos.
No cinema de Douglas Sirk a estrutura
básica do melodrama vai muito além. Suas realizações, mesmo as mais
dramaticamente tingidas, são narrativas construídas como exercícios analíticos
— por mais paradoxal que isso possa parecer —, nas quais o som e a fúria jamais
escamoteiam os elementos lúcidos e enfáticos fundamentais à compreensão e contextualização
das histórias encenadas. Seus filmes são metafóricos e, como tais, constituem
os melhores esforços para apreender uma realidade que, como bem sabia o
diretor, não pode ser abarcada de forma plena e objetiva, diante dos muitos
elementos, inclusive anímicos, que a percorrem. A realidade inalcançável é
absorvida como reflexo projetado nas almas e consciências individuais a partir
de determinadas construções sociais. Diante de algo poderosamente inatingível,
que escapa ao pleno controle, o melodrama sirkeano apresenta simulacros da vida
— artifícios que se valem de todos os poderes permitidos pela ilusão
cinematográfica para apreender e comentar fragmentos de uma dada realidade.
Talvez, por isso, um filme como Palavras ao vento tenha tantos
espelhos nos cenários. É como se Sirk ousasse dizer: aquele que tentar
desvendar a realidade em sua pureza e crueza esbarrará em vidro espelhado,
pelos quais nos contentamos ou não — a depender de capacidades de ajustamentos —
com reflexos e ilusões de nós mesmos. Além disso, podemos nos ferir nos cacos
produzidos pelas nossas ousadias ou incapacidades de lidar com desejos e frustrações.
Em Palavras ao vento Lauren
Bacall interpreta a contida Lucy Moore Hadley, casada com Robert Kyle Hadley
(Stack), rico herdeiro de um complexo da exploração texana de petróleo. Humphrey
Bogart, marido da atriz, já próximo do fim da vida — faleceu em 1957 —, assistiu
ao filme e sua reação corresponde à má vontade ou desprezo à época devotado aos
carregados melodramas de procedência sirkeana. Segundo consta, pediu
encarecidamente à esposa que evitasse novos papéis em produções de gosto tão
duvidoso — conselho que Bacall, pelo visto, seguiu à risca. Felizmente, na
Europa — independente das apreciações positivas de Truffaut e outros redatores
do Cahiers
du Cinéma, como Jean-Luc Godard — a história era outra. Nessa parte do
mundo Sirk sempre foi mais bem compreendido. Provavelmente por causa da maior
familiaridade dos europeus com as encenações operísticas e o andamento da
tragédia. O próprio diretor confessou: “Meu ideal (...) é a tragédia grega, em
que tudo se passa em família, num mesmo lugar. E essa família é idêntica ao
mundo, é o símbolo desse mundo”[3].
A família como microcosmo, um reduzido campo de batalha existencial que expande
pela humanidade os problemas básicos dos indivíduos, principalmente seus
tormentos e frustrações.
Lucy Moore — interpretada por Lauren Bacall — conhece Mitch Wayne — representado por Rock Hudson |
Por outro lado, mesmo acrescentando
pontos a seu favor, Douglas Sirk não deixa de conceder certa dose de razão aos
seus detratores quando admitiu extrair do lixo a matéria prima dos seus melodramas.
Mas, no arremate, frisou que há uma distância ínfima entre a obra de arte e o descartável.
Mas quando se tem em mãos a escória decorrente das insanidades e angústias
humanas, pode-se estar certo de que há aí matéria de muita qualidade para o
melhor da arte. Cineastas como o alemão Rainer Werner Fassbinder e Pedro
Almodóvar compreenderam muito bem as razões de Sirk, mesmo que nunca tenham
feito algo próximo da alta voltagem melodramática de Palavras ao vento — o
favorito de ambos. O alemão, por exemplo, é tributário de Sirk com As
lágrimas amargas de Petra von Kant (Die bitteren Tränen der Petra von
Kant, 1972), O casamento de Maria Braun (Die
Ehe der Maria Braun, 1979), Lili Marlene (Lili Marleen, 1981) e O
desepero de Verônica Voss (Die Sehnsucht der Veronika Voss,
1982) — para ficar apenas com esses títulos. Referências sirkeanas são
percebidas no espanhol em Má educação (La mala educación, 2004),
Fale
com ela (Hable con ella, 2002), Tudo sobre minha mãe (Todo
sobre mi madre, 1999) e A flor do meu segredo (La
flor de mi secreto, 1995). Nos Estados Unidos, Todd Haynes com Longe
do paraíso (Far from heaven, 2002) bebe explicitamente na fonte de Sirk
nessa realização que referencia diretamente o seu universo.
Sirk abandonou a Alemanha natal
próximo da "vigésima quinta hora", em 1938. Hitler, consolidado no
poder, há anos revelava suas reais intenções. A carreira do cineasta contava,
nesta altura, com 14 títulos entre curtas e longas. O recomeço nos Estados
Unidos não foi fácil. Demorou aproximados 12 anos até encontrar condições
seguras para redefinir temas e estilos. Enquanto aguardava dias melhores, foi
pau para toda obra em realizações aventuradas pelos mais diversos gêneros. O
renascimento, seguido de algumas quedas, começa, pode-se dizer, em 1952, com Sinfonia
prateada (Has anybody seen my gal), protagonizado por seu ator fetiche:
Rock Hudson. Aos poucos se consolida na Universal e encontra no melodrama o
porto seguro. Daí ao encerramento da carreira realiza consistente conjunto de
filmes que o definirão como autor personalizado.
Passados quase 50 anos de sua
realização[4],
Palavras
ao vento só ampliou as características hipnóticas, principalmente pelo
fato de que filmes assim são cada vez mais raros. A encenação é forte,
poderosamente exagerada. A história é perpassada por sordidez, ninfomania,
impotência, carência sexual, chantagem, materialismo, alcoolismo, ciúme e
assassinato. O roteiro de George Zuckerman, extraído da novela homônima de
Robert Wilder, tem antecedentes reais. A texana família Hadley foi moldada a
partir dos incidentes que marcaram a trajetória dos poderosos Reynolds —
exploradores de tabaco na Carolina do Norte[5].
O herdeiro Zachary Reynolds, na casa dos 20 anos, sustentado pela fortuna da
família, leva a vida na flauta, sem interesse pelos negócios. Aparentemente,
aquieta-se ao contrair matrimônio com Lybby Holman — comediante da Broadway e cerca
de sete anos mais velha. Passado algum tempo, apresenta-se grávida. A partir
daí tudo se descontrola. O filho esperado não seria de Zachary, mas de Ab
Walker — amigo da família e suposto amante da esposa. O imbróglio evolui para o
assassinato do marido. O julgamento dos supostos envolvidos nunca aconteceu.
Temerosos com a extensão do escândalo, os Reynolds retiraram as acusações e
defenderam a hipótese de suicídio.
Em Palavras ao vento o
problema reside nos filhos. A trama é contemporânea da segunda metade da década
de 50, época da realização. Os Estados Unidos atravessam o dourado período Eisenhower.
A nação respira uma paradoxal mistura de medo, otimismo, moralismo, hipocrisia
e cabotinismo. O temor ao comunismo e os efeitos da “caça às bruxas” empesteiam
os ambientes. Sinais de afluência estão em toda parte. O boom econômico do pós-guerra gerou novos ricos, logo incorporados
ao sistema. Por outro lado, a estabilização permitiu que poderosas famílias
mais tradicionais se fechassem no interior de seus próprios núcleos, como os
Hadley. O patriarca Jasper (Keith) é pioneiro da velha estirpe. Imbuído pela "ética
protestante", perseverou na consolidação da fortuna como o melhor cowboy
empreendedor. Edificou um império petrolífero em constante expansão. O tempo
despendido nos negócios não deixou brechas para a dedicação à família. Os
filhos Kyle (Stack) e Marylee (Malone) disso se ressentem. Passaram a infância
na carência dos afetos. Tornaram-se adultos incompletos e disfuncionais. Nunca
experimentaram o valor do trabalho e sempre tiveram tudo ao alcance das mãos.
São moralmente frágeis, desprovidos de autoestima e pouco respeito guardam
pelos demais. Alimentam débeis redes de relações, azeitadas por sexo, poder e
dinheiro. O velho Jasper sabe que falhou com a família. Porém, agora é tarde
para tentar mudanças de rumo.
Dorothy Malone como Marylee Hadley |
Sob as cores berrantes, gestos
largos, lágrimas, explosões de histeria, impotência e ninfomania Douglas Sirk também
revela um rico mundo de facilidades sustentadas pela exploração de
despossuídos: os negros mal emancipados da escravidão, a deslizar
silenciosamente, tão discretos e educados, quase invisíveis, pelas dependências
dos lares luxuosos; ou os assalariados desprovidos de horizontes, empregados dos
empreendimentos capitalistas manipulados ao bel prazer por carentes e pouco
sociáveis herdeiros dos extratos dominantes.
Kyle Hadley é literalmente um playboy
inútil. Jamais levou adiante qualquer projeto. Inseguro, vive à sombra do pai e
do amigo Mitch Wayne — praticamente um irmão de criação e geólogo dos
empreendimentos da família. Centrado, pragmático e ciente do lugar que ocupa na
estrutura Hadley, Mitch tem ascendência pobre. Progrediu graças aos laços de
amizade firmados entre Hoak Wayne (Shannon), o pai fazendeiro, com Jasper. Qual
criado solícito, mas incomodado, satisfaz os desejos do amigo milionário. Inclusive,
apaga-lhe as pegadas que deixa nos ambientes, em virtude do comportamento
desregrado e das relações escusas que alimenta. Kyle afoga as frustrações na
bebida ou ao volante do carro esporte amarelo extremado. Apesar das
características irresponsáveis, tenta aparentar o oposto, disfarçando-se em
roupas sóbrias e formais, de corte tradicional. Quando entediado, pilota o jato
da família até Nova York, simplesmente para saborear um famoso sanduíche local.
Numa dessas aventuras conhece Lucy Moore, por quem se apaixona.
Lucy Moore (Lauren Bacall) começa a conhecer Kyle Hadley (Robert Stack) |
Marylee é uma força da natureza. Descontrolada,
é impelida pelos hormônios. Equilibra a carência com baixa autoestima e
exibicionismo. Ama Mitch, desde que eram crianças, mas não é correspondida. Dela
o personagem de Hudson guarda segura distância, ou trata-a com o afeto e
cuidado de um irmão mais velho. Está sempre pronto para limpar as trapalhadas
decorrentes das ações desvairadas da garota. A impulsiva Marylee externa o caráter
no vermelho explosivo do vestuário ou ao volante do conversível de igual cor —
instrumento de desenfreada caça sexual aos jovens desesperançados das cercanias.
Perspicaz, logo percebe que o coração contido de Mitch pulsa pela cunhada Lucy.
Aproveita a situação para agir vingativamente, em proveito próprio. Alimenta
intrigas para tumultuar os relacionamentos, que ultrapassam os limites no aparente
assassinato do possesso Kyle, em 6 de novembro de 1956. Nesse dia a história ensaiou
o começo ao compasso dos ventos de outono. O alcoolizado e tenso personagem vivido
por Robert Stack conduz a toda velocidade o conversível amarelo. As torres de
exploração de petróleo enfeitam monotonamente a paisagem, quais portentosos símbolos
fálicos a tocar o céu escuro — como se zombassem do personagem de semblante
constrangido. Chega à residência. A câmera o acompanha ao entrar. Mas logo retorna
ao exterior da mansão, de onde observa, em tensa expectativa, as folhas esvoaçantes
ao som da canção-tema Written on the wind, de Victor Young
(música) e Sammy Cahn (letra), interpretada por The Four Aces. Ouve-se um tiro.
A seguir, Kyle atravessa a porta empunhado um revólver. Cambaleia e tomba morto.
É a senha para o flashback que
reconstituirá os antecedentes da tragédia, a partir de 24 de outubro de 1955.
Mitch Wayne (Rock Hudson) e Marylee Hadley (Dorothy Malone) |
Acompanha-se a vida desregrada de
Marylee e a luta do irmão para se aprumar após o casamento que encheu o velho
Jasper de esperanças. Os esforços de Kyle por uma vida estável e responsável
logo desmoronam no poço da insegurança. Segundo informações médicas
preliminares, é estéril. Não poderá se provar socialmente como homem e pai. A impossibilidade
de ter filhos foi a alternativa encontrada pelo roteiro — e permitida pelo
código de produção — para encobrir a homossexualidade do herdeiro dos Hadley. No
filme — como apenas Lucy virá a saber —, o problema é menos grave e provocado
por baixa contagem de espermatozóides. Mas o que sobra para Kyle é o humilhante
fantasma da falta de masculinidade devido à incapacidade de gerar herdeiro de
sangue para os empreendimentos da família. Logo volta à bebida e aos rompantes
de violência. Ainda mais quando Lucy comunica a gravidez. Envenenado por
Marylee, acredita na traição e possibilidade de Mitch ser o pai da criança. Desespera-se.
Agride Lucy e provoca o aborto. O personagem de Hudson corre para defendê-la,
furioso. A partir daí os eventos se descontrolam com consequências fatais. Pouco
antes, a lascívia de Marylee causou acidentalmente o falecimento do pai. Irada
após sofrer uma admoestação, deixa-se dominar por desenfreado êxtase. Trancada
no quarto, troca a roupa por folgada camisola vermelho vivo e inicia bailado
tão louco como provocante ao som do mambo Temptation[6],
em alto volume. Os movimentos sensuais que executa são como a dança da morte.
Ao subir as escadas para repreendê-la, o desgostoso Jasper falece de fulminante
ataque cardíaco.
É um dos melhores momentos do filme,
não simplesmente por causa da montagem e da encenação. Os movimentos do pai e
da dança se alternam em sequência rápida, mas poderosa, com duração de
aproximados 20 segundos.
Marylee Hadley (Dorothy Malone), prestes a evoluir sob alto volume ao ritmo do mambo Temptation |
Em pouco tempo Marylee experimenta o
desespero da solidão. Perdeu pai e irmão. Inteiramente trajada de negro e
coberta por chamativo chapéu de abas largas — que mal cabe nos limites da tela
panorâmica —, é a sensação no tribunal reunido para apurar as circunstâncias da
morte de Kyle, da qual Mitch é o principal suspeito. Mas o testemunho da
personagem interpretada por Malone — agora obrigada a se posicionar à frente
dos empreendimentos Hadley — revela as entranhas da família e leva à conclusão
de que o tiro fatal decorreu de uma trágica e acidental conjunção de fatores.
Resolvidas as questões judiciais, Mitch parte com Lucy. Marylee, solitária, está
junto à mesa utilizada pelo pai na direção dos negócios. Atrás, o simbólico
retrato do velho Jasper segurando a miniatura de uma torre de petróleo antecipa
o gesto que a desolada herdeira repetirá no momento final. No auge da
irresponsabilidade comportamental — quando o pai ainda vivia —, ela afirmava
sobre si mesma, carregando na ênfase: "Eu sou imunda". No epílogo, com
o corpo contido, parece prisioneira de uma peça escrita pelo destino, ou pelo
fantasma paterno. Está imobilizada nas estranhas da estrutura Hadley, atada às malhas
que dão sentido ao nome consolidado pela família. A indomável e descontrolada Messalina
que era Marylee foi domesticada da pior forma, como se recebesse um duro
castigo que a reposicionará num patamar de respeitabilidade que sempre teve
como impossibilidade. Ironicamente, qual fatídica lembrança das desregradas
aventuras sexuais que protagonizava, resta em suas mãos a representação fálica,
miniaturizada e impotente da torre de petróleo.
Mitch Wayne (Rock Hudson) no tribunal do júri |
Lauren Bacall e Rock Hudson encabeçam
o elenco. Mas os personagens ajustados e de perfis convencionais que defendem
são pouco exigidos. O mesmo não se pode dizer de Dorohty Malone e Robert Stack.
Estão surpreendentemente bons. Ela, tão sexy, violenta, selvagem, loura e
trajada de vermelho fatal é puro movimento. Muito acertadamente, ganhou o Oscar
de Melhor Atriz Coadjuvante. Stack também foi merecidamente indicado à estatueta
de ator de apoio. Para seu desconsolo, o vencedor foi Anthony Quinn pelo
desempenho de apenas 12 minutos como Paul Gauguin em Sede de viver (Lust
for life, 1956), de Vincent Minnelli. Se Malone atinge o ápice quando
executa o furioso mambo da morte, Stack vai ao máximo ao convencer o espectador
de que está literalmente possuído por um misto de frustração e fúria ao tomar
satisfações com Lucy, levando-a a perder o filho.
No plano formal, a composição
pictórica possibilitada pelo direção de fotografia de Russell Metty é um dos
trunfos da produção. Poucas vezes o esplendor do Technicolor esteve tão umbilicalmente
conectado ao sentido da trama. As cores fortes se sucedem, justapõem-se ou se
combinam a depender da movimentação ou interação dos personagens, principalmente
Kyle e Marylee em seus instantes de pico. Expressam com contundência os
significados que lhes foram psicológica e socialmente atribuídos: o amarelo a
conotar frouxidão e pusilanimidade; o vermelho com sua sanguínea e furiosa visceralidade.
Os diálogos metafóricos, carregados
de duplo sentido, são outra atração. Afinal, por causa do tema desenvolvido,
nem tudo podia ser explicitado nos contidos anos 50. Podem passar de uma
construção apenas ferina e bem humorada — "Perdão se estou escovando você
para fora do meu cabelo", dispara Lucy, para se livrar da intriguenta presença
de Marylee — ao absolutamente ferino, ainda mais quando pronunciados por Kyle
em julgamentos que faz de si mesmo, ressentido com a frustrante notícia de que
não poderia ser pai: "Não posso. Alguém roubou meus sapatos mágicos de
dançarino", ao recusar o convite de Lucy para dançar; e "Não sirvo o
vermute, apenas finjo", dito para a esposa e Mitch. Ou são palavras que
revelam o poder do veneno destilado por Marylee para minar a frágil
estabilidade emocional do irmão: "Ele viu o fim de um casamento e o começo
de um caso de amor" — dito a Kyle a respeito de Mitch.
O constrangido Kyle Hadley (Robert Stack) com a esposa Lucy Moore (Lauren Bacall) |
Palavras ao vento concorreu aos oscars de Melhor
Música para Victor Young e Melhor Canção Original: Written on the wind. Dorothy
Malone também foi indicada ao Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante de
1957.
Roteiro:
George Zuckerman, a partir de novela de Robert Wilder. Música: Frank Skinner. Canções:
Written
on the wind, de Victor Young (música) e Sammy Cahn (letra), interpretada
por The Four Aces; Temptation (não creditada), de Nacio Herb Brown (música) e
Arthur Freed (letra). Direção de
fotografia (Technicolor): Russell Metty. Montagem: Russell F. Schoengarth. Direção de arte: Robert Clatworthy, Alexander Golitzen. Decoração: Russell A. Gausman, Julia
Heron. Figurinos: Bill Thomas
(vestidos), Jay A. Morley Jr. (não creditado). Penteados: Joan St. Oegger. Maquiagem:
Bud Westmore. Assistentes de direção:
William Holland, Wilson Shyer (não creditado). Som: Leslie I. Carey, Robert Pritchard. Consultor de Technicolor: William Fritzsche. Supervisão musical: Joseph Gershenson. Efeitos fotográficos: Clifford Stine. Continuidade: Betty A. Griffin (não creditada). Instrutor de diálogos: Richard Mayer
(não creditado). Gerente de unidade:
Norman Deming (não creditado). Gravação
de som (não creditada): William Lambert, Edward L. Sandlin. Sistema de mixagem de som: Westrex
Recording System. Tempo de exibição:
100 minutos.
(José Eugenio
Guimarães, 2004)
[1]
Cf. TRUFFAUT, François. Os filmes de minha vida. 2. ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 185.
[2]
Segundo critérios do autor — José Eugenio Guimarães —, evidentemente.
[3]
Douglas Sirk citado por TULARD, Jean. Dicionário de cinema: os diretores.
Porto Alegre: L&PM, 1996. p. 592.
[4]
Considerando-se o ano de 2004, quando esta apreciação foi escrita.
[5]
Os Reynolds exploram a firma R. J. Reynolds Tobacco Company, responsável pela
fabricação de cigarros das famosas marcas Winston, Salem e, principalmene,
Camel, muito popular nos filmes bélicos sobre a Segunda Guerra Mundial.
[6]
Música de Nacio Herb Brown e letra de Arthur Freed.
Saudações amigo Eugenio, tudo jóia?
ResponderExcluirRapaz, PALAVRAS AO VENTO é o meu trabalho favorito da empresa Douglas Sirk/Rock Hudson. Todas as atuações são surpreendentes neste filme, o que valoriza ainda mais este melodrama.
Dorothy Malone, considerada uma atriz limitada, conseguiu a proeza de conquistar o Oscar por sua atuação, mas hoje analisando seus trabalhos e sua carreira, não foi desprovida de talento. E também, entre todos os mitos e artistas de seu tempo, é a que esta sobrevivendo, pois hoje esta com 90 anos. Seu último trabalho se não me engano foi em INSTINTO SELVAGEM, em 1992, com Sharon Stone e Michael Douglas. Ela com quase 70 anos ainda esbanjava beleza e boa forma.
Parabéns por esta matéria. Um forte abraço e excelente semana.
Paulo Telles
Editor do Blog FILMES ANTIGOS CLUB – A NOSTALGIA DO CINEMA
http://articlesfilmesantigosclub.blogspot.com.br/
Obrigado pelo enriquecimento ao texto, Paulo. O filme é vigorosíssimo. Acredito que só tem ficado atual. Quanto a Dorothy Malone... Bom! Apesar dos críticos, ela sempre residiu abertamente no canto esquerdo do meu peito. Sempre gostei dela.
ExcluirAbraços.
Eugenio,
ResponderExcluirDe fato uma situação que somente agora, com sua postagem, passei a observar mais atentamente. De fato os bons dramas dirigidos pelo Sirk todos se desenrolaram no seio de familias. Ali naquele centro ele criava seus personagens, fazia seus dramas e os concluia maravilhosamente.
Vi muitos filmes do Sirk. De fato gosto mais deste da pauta, pois é o mais forte, o mais denso. o mais dramático dos seus trabalhos e o que reuniu um dos melhores elenco e todos fizeram seus papéis com extrema perfeição.
Havia visto com o Stack, antes de Palavras ao Vento e também do ótimo Almas Maculadas/57, o bom A Última Viagem/60, também com a Malone.
E este filme, além de me encantar pela beleza plástica e trucagem perfeitas para a época, me deixou impressionado com o realismo apresentado nas telas.
No entanto, não considerara o Stack um bom ator, um ator de ponta, fato que pude me desmentir vendo-o trabalhar com o Sirk, onde captamos muito do seu potencial interpretativo.
Porém, observo, precisa-se ver com mais atenção a Chamas Que Não Se Apagam, também de 1956, uma fita de uma beleza rara e diferente, com desempenho marcante do MacMurray e com seu par de Pacto de Sangue, a Stanwick.
Gosto da comparação que faz quando elogia o formidável Palavras ao Vento mas não o coloca superior a Amar Foi Minha Ruina/46.
De fato; não dá para comparar o bom filme do Sirk com o maravilhoso drama do Stahl.
Rock Hudson, além de um grande ator, é o que acho, obteve em 1956 o sucesso estrondoso com dois grandes filmes. Giant, do Stevens, que é uma fita dificil de se comparar com algo já feito dentro do estilo, e o Palavras ao Vento do Sirk.
Palavras ao Vento é uma fita com uma densidade extrema, dotada de uma tensão dramática que com muitos poucos filmes pode ser comparado. Não apenas pelo que a historia conta, mas pelo contorno pessoal que o Douglas imprimiu neste trabalho, pela força de sua forma de narrar uma historia e pelo apoio que teve da seleção de seu elenco, com todos se saindo à perfeição.
Isso além do Hudson ter sido um ator que entrou nas graças do Sirk, fazendo com ele nada menos que 4 peliculas, todas dentro do estilo consagrado pelo diretor não americano.
Uma boa matéria para falar de um grande filme.
jurandir_lima@bol.com.br
Jurandir;
ResponderExcluirNão conheço A ÚLTIMA VIAGEM ("The last voyage", 1960). Apenas de ouvir falar e, mesmo assim, superficialmente. Sabia que era dirigida pelo pouco valorizado Andrew L. Stone, e sequer tinha ciência de que foi estrelada por Robert Stack e Dorothy Malone. Tentarei encontrar para ver.
CHAMAS QUE NÃO SE APAGAM, de Sirk, é um drama tenso e intenso. Este sim, mostra o quando significa o peso de uma família, quando se transforma em prisão da alma.
Muitos filmes do Douglas Sirk passaram no Telecine Classic antes de o canal perder completamente a sua identidade.
Abraços.
Una película que daba mucho énfasis y profundidad a las emociones en el arte melodramático... Una historia cercana pues por desgracia la violencia psíquica sigue a la laza en las familias ,parejas...Lo que también es un deleite es ver a Rock Hudson,no me tocó ver películas de él pues era una cría,sólo recuerdo cuando se desató el escándalo de que era portador del SIDA como si su carrera cinematográfica no hubiese valido....En fin,la sociedad es muy olvidadiza....Estupenda reseña cielo,gracias por compartir,besitos miles...!!!
ResponderExcluirMuchas gracias por la presencia y por el comentario, Maria Del Socorro.
ExcluirEsta película, como se dice en Brasil, "carga en las tintas". Exagera en los estados emocionales que acompañan los personajes. Y tiene una narrativa impar, muy bien conducida. Por todo lo que significa, sólo puede ser convenientemente apreciado en una pantalla de cine. Infelizmente, los días que corren, eso es cada vez más una imposibilidad. Hoy, también son pocos los que aún saben quién fue el actor Rock Hudson. Douglas Sirk, descontados los cinéfilos, también goza de un injusto olvido.
Saludos, besos y abrazo.
Excelente matéria a sua ,parabéns!O trabalho que ele faz sempre foi muito bom.
ResponderExcluirHoje, felizmente, já se faz justiça ao trabalho de Sirk, Úrsula Iosca. Durante muitos anos, foi uma dos cineastas mais desvalorizados. Ele é ótimo. Obrigado pela apreciação e visita.
ExcluirAbraços.