domingo, 4 de janeiro de 2015

CLINT EASTWOOD EM AMARGO 'ROAD MOVIE' PELA AMÉRICA DOS DESERDADOS

Honkytonk man (Honkytonk man, 1982) se apresentou com sabor de descoberta tardia em minha trajetória de cinéfilo. Foi realizado em período no qual via com ressalvas os filmes protagonizados e dirigidos por Clint Eastwood. É sua nona experiência na direção. Nada contém de extraordinário. Entretanto, faz parte do seleto grupo de pequenos e despretensiosos trabalhos que conseguem a adesão do espectador pela força de uma narrativa despojada, pontuada por personagens tingidos de realidade, capazes de firmar comunicação com intimidade e sinceridade. Movendo-se em terreno familiar aos de John Ford em As vinhas da Ira (The grapes of wrath, 1940) e Hal Ashby em Esta terra e minha terra (Bound for glory, 1976), Honkytonk man apresenta a América dos deserdados nos duros anos da Grande Depressão. Eastwood interpreta Red Stovall, cantor e compositor em busca de sua última chance. Acompanhado do sobrinho adolescente Whit (Kyle Eastwood) e do sogro desiludido (John McIntire), ruma de Oklahoma para o Tennessee numa jornada feita de expiação, esperança e iniciação. Em certa medida é um filme autobiográfico. Eastwood viveu a infância durante a Grande Depressão, acompanhando o pai itinerante que sobrevivia de expedientes. Whit praticamente ilustra essa etapa da existência do diretor. 







Honkytonk man
Honkytonk man

Direção:
Clint Eastwood
Produção:
Clint Eastwood
Malpaso Company, Warner Brothers
EUA — 1982
Elenco:
Clint Eastwood, Kyle Eastwood, John McIntire, Alexa Kenin, Verna Bloom, Matt Clark, Barry Corbin, Jerry Hardin, Tim Thomerson, Macon McCalman, Joe Regalbuto, Gary Grubbs, Rebecca Clemons, Johnny Gimble, Linda Hopkins, Bette Ford, Jim Boelsen, Tracey Walter, Susan Peretz, John Russell, Charles Cyphers, Marty Robbins, Ray Price, Shelly West, David Frizzell, Porter Wagoner, Bob Ferrera, Tracy Shults, R. J. Ganzert, Hugh Warden, Kelsie Blades, Jim Ahart, Steve Autry, Peter Griggs, Julie Hoopman, Rozelle Gayle, Robert V. Barron, DeForest Covan, Lloyd Nelson, George Orrison, Glenn Wright, Frank Reinhard, Roy Jenson, Sherry Allurd, Gordon Terry, Tommy Alsup, Merle Travis, Robert D. Carver, Thomas Powels, Gary Earl.


De olho no visor, o diretor Clint Eastwood


Este é um pequeno grande filme. Honkytonk man é a nona experiência de Clint Eastwood na direção. Isto se o documentário curto The beguiled: the storyteller (1971) — primeira vez do ator atrás das câmeras — for excluído da contagem. Geralmente é a Perversa paixão (Play misty for me) — longa de 1971, realizado pouco depois daquele título — que se atribui o início da carreira de Eastwood como realizador. Notabilizado como o enigmático pistoleiro de poucas palavras da "Trilogia dos Dólares" de Sérgio Leone — Joe de Por um punhado de dólares (Per un pugno di dollari, 1964), Monco de Por uns dólares mais (Per qualche dollaro in più, 1965) e Blondie de Três homens em conflito (Il buono, il brutto, il cattivo, 1967) — ele é, atualmente, reconhecido entre os realizadores importantes do cinema. Para mim, esse reconhecimento viria com Bird (Bird, 1988) e seria mais que confirmado na obra mestra Coração de caçador (White hunter black heart, 1990). Porém, depois de Rookie – um profissional do perigo (The Rookie, 1990), Eastwood só vem surpreendendo: Os imperdoáveis (Unforgiven, 1992), Um mundo perfeito (A perfect world, 1993), As pontes de Madison (The bridges of Madison County, 1995), Sobre meninos e lobos (Mystic river, 2003), Menina de ouro (Million dolar baby, 2004), Cartas de Iwo Jima (Letters from Iwo Jima, 2006), A troca (Changeling, 2008) e Gran Torino (Gran Torino, 2008). É certo que seus últimos trabalhos — Invictus (Invictus, 2009), Além da vida (Hereafter, 2010) e J. Edgar (J. Edgar, 2011) não foram recebidos com entusiasmo. Mas pouco abalaram uma reputação já consolidada.


Não vi Honkytonk man na época do lançamento. Em 1982, confesso, observava com ressalvas qualquer trabalho de Clint Eastwood. Abominava — com poucas exceções — os westerns europeus; repugnavam-me as investidas do ator no cinema policial, quase sempre na pele do irado detetive Harry Callahan. Desviei-me da regra somente com O cavaleiro solitário (Pale rider, 1985), mesmo assim por se tratar de western que reciclava temas caros à tradicional cartilha do gênero. Apenas com Bird comecei a descerrar o véu do preconceito e a lançar outros olhares para o ator e realizador. Mesmo assim, sequer me lembrava de Honkytonk man. Tinha-o na conta do desconhecimento ou da inexistência. Descobri-lo, mesmo tardiamente, revelou-se agradável surpresa. Não é grande filme. Mas é daquelas realizações em tom menor que capturam o espectador pela pegada firme e narrativa despojada; por apresentar personagens que extravasam intimidade e sinceridade.



Clint Eastwood é Red Stovall, compositor e cantor errante nos EUA tomados pela Grande Depressão


Eastwood localiza o filme em terreno familiar aos de John Ford em As vinhas da Ira (The grapes of wrath, 1940) e Hal Ashby em Esta terra e minha terra (Bound for glory, 1976). Não apresenta a América mítica, habituada aos vencedores. Situa a narrativa durante os anos 30, tempo da grande depressão e das dust bowl — gigantescas tempestades de poeira que assolaram o centro-oeste dos Estados Unidos. O diretor revela a América de raízes profundas, na maioria das vezes esquecida, substituída que é, normalmente, pela vibrante pulsação observada nas metrópoles das costas leste e oeste. O filme é um road movie a avançar por trechos abandonados, emoldurados por paisagens desoladas, habitados por pessoas que ficaram à margem dos caminhos, como Red Stovall (Eastwood).


O personagem não foi bafejado pela sorte. É cantor e compositor de country music. Ganha a vida na itinerância, apresentando-se nas beiras de estradas, em postos de gasolina e bares. Passou dos cinquenta anos. Sabe que não terá mais tantas oportunidades. Além do mais, é viciado em álcool e sofre de tuberculose avançada, mal que só se agrava na Oklahoma devastada pelas tempestades de poeira. A tosse crônica prejudica-o no canto. Apesar de consciente do problema, não muda o jeito de ser. Leva a existência no limite, ou conforme afirma — mais para o final do filme —, “Vou viver nos meus próprios termos”.



Red Stovall (Clint Eastwood) com o sobrinho Whit (Kyle Eastwood, filho do ator)


A última chance de sucesso de Red está no Tennessee, em Nashville, capital estadunidense do country: o concurso de canções do Grand Ole Opry. Enquanto parte da família abandona a propriedade condenada e ruma para o oeste — na tentativa de se viabilizar no trabalho errante da colheita de frutas e algodão —, Red, acompanhado do sobrinho de 15 anos, Whit (Kyle Eastwood), e do avô materno deste (McIntire), toma o rumo do leste a bordo de um Lincoln conversível que apresentará muitos problemas. Três gerações estão unidas nesta jornada amarga, ao mesmo tempo expiatória (para o avô); esperançosa (para Red), e de aprendizado (para Whit). À medida que avançam, o filme desenvolve uma narrativa repleta de episódios que mesclam dor e poesia de versos rudes mas ternos na exposição de um país à deriva. Clint Eastwood tem segurança para tratar do assunto. Nascido em 1930, passou a infância durante a Grande Depressão. Acompanhava o pai itinerante que vivia de expedientes. Parte dessa criança está projetada no personagem interpretado por Kyle, não para menos, seu filho. Quanto ao pai do ator-diretor, este sobrevive nas reminiscências do avô e nas esperanças entrecortadas por decepção de Red.



Uma jornada de expiação, esperança e aprendizadoWhit (Kyle Eastwood) ao volante,   seu avô materno (John McIntire) e Red Stovall (Clint Eastwood)

Uma parada é a oportunidade para o avô — pioneiro que desbravou o oeste — relembrar o sonho da terra prometida no episódio de ocupação, por colonos, da Faixa Cherokee. “Não éramos caçadores de terras. Éramos caçadores de sonhos. Agora tudo acabou, tudo está destruído”, diz ao neto, enquanto Red, indiferente, aproveita a parada para um banho.


Esperança e desilusão: Whit (Kyle Eastwood) e seu avô materno (John McIntire)


Se o avô faz parte da geração que domou a terra segundo os anseios do colonizador branco e puritano, Red simboliza os herdeiros desse sonho de conquista que fracassou por conta de inúmeras circunstâncias que lhe escampam ao entendimento. Ele, durante a jornada, está mais preocupado em compor novas canções. Sintomaticamente, cabe ao jovem Whit o papel de motorista, apesar da pouca idade, na viagem que lhe serve de iniciação e conhecimento. O próprio patrulheiro rodoviário (Thomerson), depois de convencido por Red a deixar seguir a jornada irregular, reconhece que o melhor é Whit permanecer no volante. Ele, simbolicamente, faz parte de uma geração que ainda não foi testada ao passo que as anteriores, do avô e do tio, conheceram o fracasso em diversas formas.



Red Stovall (Clint Eastwood) com o sobrinho Whit (Kyle Eastwood)


O tempo do avô chegou ao fim. Ele sabe disso e prepara a saída de cena na viagem que o devolve às origens, no Tennessee, de onde partiu em busca de sonhos e terras. Red, no seu laconismo, procura, por sua vez, viver o tempo que lhe resta enquanto tenta agarrar nova chance. Mas apesar da amargura e das frustrações que o acompanham, não foge às responsabilidades de seu papel de iniciador e, de certa forma, guia de Whit na apresentação deste à vida e aos seus percalços, embora muitas vezes pareça ser o contrário. E lá vão eles, conhecendo cidades ocultas habitadas por tipos singulares, todos esquecidos e largados à beira dos caminhos, como os mecânicos interpretados por Tracey Walter e Steve Autry, o patrulheiro vivido por Tim Thomerson e a dupla de policiais caipiras que lança Red na prisão, da qual escapa com ajuda do sobrinho, como nos velhos filmes de farwest. E não se pode esquecer da destrambelhada Marlene (Kenin): pretende ser cantora e força sua entrada na comitiva. Sua voz, infelizmente, não é garantia de futuro, ao menos nesse contexto. Ao final do filme, com a inevitável morte de Red, ficarão ela e Whit, jovens e à deriva num país desencontrado.


Marty Robbins, lendário intérprete de canções country e western, faleceu antes do lançamento do filme


 O fragilizado Red Stovall (Clint Eastwood) sob o olhar atento de Marty Robbins


Finalmente, chegam a Nashville. Mas é demasiado tarde para Red. De início, as canções que pretende interpretar não combinam com as regras moralistas do Grand Ole Opry. Sobra-lhe a belíssima composição que dá título ao filme, a autobiográfica Honkytonk man — ‘cantor de bar’ em português. A tosse interrompe a apresentação classificatória. Daí em diante, a saúde de Red só piora e exige intervenção médica. Mesmo assim, caçadores de talento lhe oferecem a oportunidade de gravar disco em regime de empreitada. Apesar de fragilizado, assume o compromisso. Se falharam as previsões do Grand Ole Opry, nada melhor que gravações capazes de ganhar o país. O esforço é grande. Red morre pouco depois da tentativa final de registrar a última canção, Honkytonk man. É substituído pelo lendário Marty Robbins, um dentre os vários intérpretes de músicas country e western que fazem participações especiais no decorrer da jornada, sem esquecer a blues singer Linda Hopkins em apresentação no Top Hat Club da Beale Street, em Memphis, acompanhada por Red ao piano. Robbins, infelizmente, morreria antes do lançamento do filme.



Red Stovall (Clint Eastwood) na tentativa de se classificar ao Grand Ole Opry


A fotografia de tonalidades fortes de Robert Surtees é responsável por muito da verdade e autenticidade exaladas de Honkytonk man. Outro achado é o elenco de apoio: exibe rico naipe de participações curtas de grandes talentos. O papel de Red cai como uma luva em Eastwood. De certa forma o personagem possui o ethos dos cowboys lacônicos e marginais que o ator tantas vezes interpretou. Com a diferença de que, desta vez, canta. Eastwood solta a voz pequena e rouca, no entanto apropriada às canções de Red Stovall.






Roteiro: Clancy Carlile, com base em novela de sua autoria. Produção executiva: Fritz Manes. Música: Steve Dorff. Direção de fotografia (Technicolor): Robert Surtees. Montagem: Joel Cox, Michael Kelly, Ferris Webster. Produção de elenco: Susan Arnold, Phyllis Fuman. Desenho de produção: Edward C. Carfagno. Decoração: Gary Moreno. Maquiagem: David Dittmar. Penteados: Marlene D. Williams. Gerente de unidade de produção: Steve Perry. Primeiro assistente de direção: Tony Brown. Segundo assistente de direção: Tom Seidman. Contrarregra: Edward Aiona. Pintura: Bob Lawless. Coordenação de construções: Michael Muscarella. Edição de efeitos sonoros: Bub Asman, Bob Henderson, Alan Robert Murray. Mixagem da regravação de som: David E. Campbell, Joe Citarella, John T. Reitz. Primeiro assistente da edição de som para a restauração de 2003: William Cawley. Mixagem de som: Donald F. Johnson. Operador de boom: Jules Strasser. Edição de som: Paul C. Warschilka (não creditado). Efeitos especiais: Wayne Edgar. Assistentes de câmera: Ed Ayer, Marc Margulis, Leo J. Napolitano, Charles Saldana, Bruce D. Spellman. Operador da dolly: Kirk E. Bales. Operador de câmera: Jack N. Green. Fotografia de cena: Michael Douglas Middleton. Eletricista: Tom Stern. Primeiro assistente de câmera em Nashville: Jeff Wolf. Produção executiva de elenco: Marion Dougherty. Guarda-roupa feminino: Aida Swinson. Supervisão de figurinos: Glenn Wright. Direção musical e arranjos: Steve Dorff. Supervisão musical: Snuff Garrett. Edição musical: Donald Harris. Coordenação de transportes: Billy Miller. Capitão de transportes: Paul Youds. Publicidade: Marco Barla. Secretárias para os produtores: Betty Endo, Judie Hoyt. Secretaria de produção: Linda Sony. Auditoria: Michael Maurer. Lutas: Jimmy Medearis. Primeiros socorros: Richard Morgan, Jim Porter. Continuidade: Lloyd Nelson. Equipamentos de câmera: Chapman/Leonard Studio Equipment. Sistema de mixagem de som: Dolby. Tempo de exibição: 122 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2012)