domingo, 24 de setembro de 2017

INCESTO E ASSASSINATO EM PARAGEM MEXICANA RECRIADA NAS ILHAS CANÁRIAS

Do cineasta francês Georges Lautner — o descobridor de Mireille Darc — conheço apenas a coprodução franco-italiana A trilha de Salina (Road to Salina/Sur la route de Salina/Quando il sole scotta, 1969), drama psicológico conduzido com relativa frouxidão. Mais curioso e instigante é o pano de fundo: o relevo escuro, vulcânico e banhado de sol das Ilhas Canárias, suporte à recriação de fictício lugarejo mexicano no qual se ocultam segredos inconfessáveis. O principal cenário, onde quase tudo acontece, é o misto de posto de gasolina, restaurante e hospedaria de Mara (Rita Hayworth) — mãe transtornada pelo inexplicável desaparecimento do filho Rocky Salerno (Marc Porel) há cerca de quatro anos. Ao lugar chega por acaso o jovem andarilho Jonas (Robert Walker Jr.), imediatamente apanhado em misteriosa teia de eventos graças à envolvente sensualidade de Billie (Mimsy Farmer) e ao poder de convencimento do muito interessado vizinho Warren (Ed Begley). Carências afetivas, solidão, incesto, manipulação, sentimento de posse e assassinato são os ingredientes da inusitada trama contada em A trilha de Salina. Considerada a época da realização, a trilha musical é das mais magnéticas e contemporâneas: ouvem-se composições de Christophe, Ian Anderson (do grupo Jethro Tull), Clinic (Alan Reeves, Phil Trainer, Philip Brigham) e Bernard Gérard & Orquestra. Junta-se a esse atrativo a funcional direção de fotografia de Maurice Fellous e Alain Boisnard, em tudo condizente com a aridez do cenário. Segue apreciação escrita em 1974.






A trilha de Salina
Road to Salina/Sur la route de Salina/Quando il sole scotta

Direção:
Georges Lautner
Produção:
Robert Dorfmann, Yvon Guézel
Les Films Corona, Selenia Cinematografica, Transinter Films, Aliance Films, Fono Roma
França, Itália — 1969
Elenco:
Ed Begley, Bruce Pecheur, Rita Hayworth, Mimsy Farmer, Robert Walker Jr., Sophie Hardy, David Sachs, Marc Porel, Ivano Staccioli, Albane Navizet, Dada Galloti, Jaime, Ellie, Oswaldo D'Allo, El Pollo, Sierra, Dada Gallotti.



O diretor Georges Lautner


Produção ambientada no México, porém rodada na singular paisagem vulcânica das Ilhas Canárias. Apesar do diretor francês e regime de produção franco-italiano, os diálogos são originalmente em inglês. Conta imprevisível e misteriosa história de alto teor erótico, repleta de reviravoltas e estruturada em flashbacks. Envolve incesto, identidades trocadas, assassinato e desaparecimento. Valeu à jovem atriz Mimsy Farmer, em 1971, o Prêmio Especial David di Donatello pela interpretação de Billie Salerno. O roteiro, escrito pelo diretor a partir da novela Sur la route de Salina, de Maurice Cury — adaptada e dialogada por Pascal Jardin e Jack Miller —, prende razoavelmente a atenção, por mais absurdas que pareçam determinadas situações e diálogos. A trilha musical, das mais instigantes, tem as contemporâneas e onipresentes contribuições — ao menos na primeira metade da exibição — de Christophe, Ian Anderson (do grupo Jethro Tull), Clinic (Alan Reeves, Phil Trainer, Philip Brigham) e Bernard Gérard & Orquestra. Junta-se a esse atrativo a funcional direção de fotografia de Maurice Fellous e Alain Boisnard, condizente com a aridez lunar do cenário.


No papel de Mara Salerno, Rita Hayworth tem a penúltima vez no cinema

Mimsy Farmer com a controladora e possessiva Billie


Cansado de perambular sem rumo pelo deserto, o faminto e sedento Jonas (Walker Jr.) vai ao encontro de destino dos mais improváveis. Depara-se, para alívio imediato, com as instalações de Mara (Hayworth) — misto de restaurante, pousada e posto de gasolina situado a poucos quilômetros da cidade litorânea de Salina. Sujo, suado e sedento, resolve se valer das convidativas instalações hídricas locais. É surpreendido pela proprietária que o toma por alguém familiar: o filho Rocky Salerno (Porel), misteriosamente desaparecido há quatro anos. Atônito e penalizado com a situação da mulher de aparência carente e desvairada, Jonas entra no jogo. Considera que nada tem a perder com a inusitada circunstância. Ainda mais quando se apresenta a irrecusável oportunidade de descansar sobre teto seguro e desfrutar de alimentação gratuita por alguns dias, até decidir pela volta à estrada. Porém, não será tão simples. As conjunções se fazem mais surreais quando Billie, filha de Mara, entra em cena. Também reconhece no andarilho o irmão desaparecido.


O andarilho Jonas (Robert Walker Jr.) é "reconhecido" por Mara (Rita Hayworth)

Jonas (Robert Walker Jr.) e Billie (Mimsy Farmer)


A esta altura, tanto Jonas como o espectador estão tomados pela perplexidade. Principalmente por haver algo mais que a simples e efusiva demonstração de alegria da parte de Billie com o reencontro. Entre a garota e o suposto irmão se evidencia relação de profunda intimidade, muito além do esperado amor fraternal. A completa desinibição da mana com o estupefato "mano" não se apresenta problemática para ela. Na praia, desnudam-se completamente e as interdições firmadas pelo tabu do incesto são derrubadas com a maior naturalidade. Manipuladora e possessiva, Billie se oferece completamente ao estranho, apesar do visível descontentamento da mãe. Mara é impotente para frear situação aparentemente bizarra, consolidada desde os tempos em que Rocky se fazia presente.



Acima e abaixo: Jonas (Robert Walker Jr.) nas malhas da possessiva Billie (Mimsy Farmer)


Algumas questões de imediato se apresentam. Mãe e filha sabem que Jonas não é Rocky? O que pretendem? A quem querem enganar? Que havia de fato entre Billie e o irmão? Até onde vai a alienação de Mara? Os aspectos insólitos da trama se ampliam quando o prestativo vizinho Warren (Begley), afetivamente interessado por Mara e não correspondido, toma ciência dos acontecimentos. Apesar de manifestar desconfiança, pede ao rapaz para levar adiante a encenação em prol do equilíbrio emocional da personagem vivida por Rita Hayworth, mesmo sabendo das relações pouco convencionais firmadas entre os irmãos antes e agora. Jonas desconfia que Warren sabe mais do que aparenta. Quais as intenções do vizinho? O que aconteceu ao verdadeiro Rocky (Porel)? Por que e como desapareceu sem deixar vestígios? Até quando o recém-chegado se deixará levar no papel de cúmplice relativamente passivo de uma eventualidade cada vez mais envolvente, desconfortável e inexplicável? Ainda mais após descobrir, por fotografias, que em nada se parece com o desaparecido? Tudo fica mais nebuloso quando Linda (Hardy), filha de Warren, não o reconhece como Rocky, de quem foi noiva até o misterioso desaparecimento.


Billie (Mimsy Farmer)

Mara (Rita Hayworth)


Apesar de curiosa, a história tem desenvolvimento frágil. Os atrativos decorrem da ambientação, principalmente em virtude dos raros e insólitos cenários revelados pelas boas tomadas externas: a paisagem ensolarada e de relevo acidentado esculpido por rochas vulcânicas, as praias de areias negras e as cenas de extração de sal. Como criador de climas, Georges Lautner é displicente. Os atores dão a impressão de estarem largados aos próprios imperativos. Os mais convincentes são os veteranos Ed Begley e Rita Hayworth, respectivamente na derradeira e penúltima aparição em cinema. Não demoraria para a protagonista de Gilda (Gilda, 1946), de Charles Vidor, ser totalmente engolfada pela doença de Alzheimer. A invulgar beleza de Mimsy Farmer é ressaltada pela movimentação lânguida da atriz, o que também serve para ocultar as deficiências da interpretação. Robert Walker Jr. compõe um personagem envolvido pelos ares da indiferença, absolutamente pouco condizentes com a situação na qual foi envolvido e, desgraçadamente, o dominará por completo. Será demasiado tarde quando os segredos forem revelados, com A trilha de Salina deixando o perfil de drama psicológico para se tornar um caso de polícia. Felizmente, tudo termina antes da concretização dessa opção.





Diretor de segunda unidade: Paul Nuyttens. Roteiro: Georges Lautner, baseado na novela Sur la route de Salina, de Maurice Cury, adaptada e dialogada por Pascal Jardin, Jack Miller. Direção de fotografia (Panavision, Eastmancolor): Maurice Fellous, Alain Boisnard. Cenografia: Jean D'Eaubonne. Música: Bernard Gérard, Christophe, Clinic, Ian Andersen. Montagem: Michèle David. Produção de elenco: Harvey Clermont. Figurinos: Jean Bouquin, Marie-Thérèse Le Guillochet. Gerentes de unidade: Francisco Ariza, Paco Escobar, Lucien Lippens. Gerente de produção: Louis Wipf. Assistentes de direção: Robin Davis, Vicente Escrivá hijo, Claude Vital. Assistente da direção de arte: Adolfo Cofiño. Gravação de som: Louis Hochet, René Longuet. Associado à edição de combinação de sons: John Marshall (não creditado). Operador de câmera da segunda unidade: Alain Boisnard. Assistente de câmera: Roland Dantigny. Fotografia de cena: Alain Dejean. Operador de câmera: Yves Rodallec. Assistente de montagem: Elisabeth Guido. Direção musical: Bernard Gérard. Administração da produção: Michel Chauvin. Continuidade: Annie Maurel. Tempo de exibição: 91 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1974)