domingo, 30 de setembro de 2018

EM LIVRE ADAPTAÇÃO, CHARLTON HESTON ENCARNA A LENDA DE RICHARD MATHESON

Após quase três meses sem atualizações e cinco dias após completar o sexto aniversário, Eugenio em Filmes retorna. Por muito pouco não chegou ao fim em decorrência do desânimo e pessimismo do editor com o processo político brasileiro. A eleição de um fascista para a Presidência da República se concretizou em 28 de outubro. Os próximos anos anunciam o desmonte do Estado, o aviltamento das instituições republicanas, a desvalorização da democracia, o desvirtuamento da educação pública, a subtração dos direitos trabalhistas, o sucateamento das universidades, a rendição da economia ao capital estrangeiro, o frontal desrespeito aos direitos humanos e o estrangulamento das minorias — principalmente das descendências dos povos originários, já submetidos ao implacável e violento cerco de especuladores fundiários e do agronegócio. Diante de sinais tão avassaladores de degradação política, social, cultural e ambiental — inclusive com o emprego de métodos criminosos e do cerco ao conhecimento formal e saber intelectual —, Eugenio em Filmes resolveu continuar. Poderá ser uma trincheira de resistência, ainda que relativamente insignificante. Hoje, 18 de dezembro, publica o texto que iria ao ar em 30 de setembro. Esta data será mantida. Também há o compromisso de recuperar o tempo perdido ao longo de quase 90 dias de inatividade. O reinício traz a apreciação de A última esperança da Terra (The Omega man, 1971). O roteiro é livremente baseado no livro I am legend, de Richard Matheson. O astro Charlton Heston não mediu esforços para viabilizar o projeto da melhor maneira. Mais uma vez se associou ao confiável produtor Walter Seltzer e até sondou Orson Welles para a direção. Infelizmente, o responsável por Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) e A marca da maldade (Touch of evil, 1958) — protagonizado por Heston — já estava envolvido com O outro lado do vento (The other side of the wind), filmado ao longo de lento e complicado processo entre 1970 a 1976 e com muitos acidentes de percurso pela frente. Assim, o pouco criativo Boris Sagal, perito em realizações para a TV, assumiu a batuta. O título tem qualidades, mas no todo deixa a desejar. O início promete uma história repleta de atmosfera e inquietação. Infelizmente, logo descamba para o convencional jogo de gato e rato com muitas situações esticadas além da medida. A apreciação a seguir foi originalmente escrita em 1984. Passou por revisão e atualização (mediante notas de pé de página) em 2018.






A última esperança da Terra

The omega man

Direção:
Boris Sagal
Produção:
Walter Seltzer
Walter Seltzer Productions, Universal
EUA — 1971
Elenco:
Charlton Heston, Rosalind Cash, Anthony Zerbe, Paul Koslo, Lincoln Kilpatrick, Eric Laneuville, Jill Geraldi, Anna Áries, Brian Tochi, De Veren Bookwalter, John Dierkes, Monika Henreid, Linda Redfearn, Forrest Wood e o não creditado Steve Goldstein.



Boris Sagal, o diretor


Esta segunda adaptação cinematográfica do romance I am legend — escrito por Richard Matheson em 1954 — se deve inicialmente ao interesse de Charlton Heston, intérprete de Neville. À primeira vista é o único humano que resistiu incólume aos efeitos colaterais da guerra entre China e URSS no começo dos anos 70. Armas bacteriológicas utilizadas descontroladamente disseminaram germes mundo afora. Populações foram infestadas e praticamente dizimadas. Os sobreviventes evoluíram para mutações, algo como cruzamentos de zumbis com vampiros. São albinos, fotofóbicos e perambulam em bandos às noites. Neville — oficial das forças armadas estadunidenses e biólogo — preserva, ao menos aparentemente, as características originais graças à vacina que tardiamente processou. Porém, a imunização também lhe confere características de mutante. Afinal, teve a constituição genética modificada. É elemento não desejável aos notívagos que o caçam sem quartel. Protege-se em cobertura fortificada e, durante o dia, tenta exterminar as ameaças recolhidas — ferozmente refratárias ao tratamento — enquanto busca provisões e artigos necessários à sobrevivência nos vários estabelecimentos comerciais abandonados e ainda repletos de estoques: roupas, alimentos, automóveis, armas, peças de reposição etc. Los Angeles é o palco dos acontecimentos.


A depender das pistas discretamente oferecidas no decorrer da trama, a narrativa tem lugar em 1977 — aproximadamente três anos após a devastação da humanidade. Como último homem vivo, Neville se vê na situação paradoxal de preservar as características fundamentais de animal social: fala sozinho, dialoga com as coisas, ouve músicas e gravações variadas, assiste aos filmes preservados. Às vezes, no desespero da solidão, é acuado por sons imaginários. Em um dos melhores momentos, ainda no início da história, é surpreendido no centro comercial da metrópole pelo devaneio que o leva a ouvir simultâneas chamadas de vários telefones públicos. Curiosa é a atividade reservada para todos os dias: comparecer ao cinema local — perigoso ambiente escuro — para rever o lá abandonado Woodstock — 3 dias de paz, amor e música (Woodstock, 1970). Por que logo esse documentário de Michael Wadleigh, do qual memorizou diálogos e canções? Não haveria mais salas em Los Angeles, com outros títulos disponíveis?


Charlton Heston como o sobrevivente Neville

Neville (Charlton Heston) no vazio de Los Angeles


Woodstock opera como catarse. Apresenta a juventude em interação na celebração do prazer de viver, confraternizando-se ao som das apresentações musicais e de um ideal de liberdade. Porém, é com um misto de desconforto e desdém que Neville se entrega às imagens dedicadas ao ainda recente evento da contracultura e que podem estar associadas às ameaças noturnas. Os jovens presentes ao festival desfraldavam a bandeira alternativa da vida comunitária em oposição ao individualismo urbano do mundo capitalista e consumista. Opunham-se às guerras e todas as formas de exploração. Os inimigos do protagonista se estruturam comunitariamente em torno de princípios idênticos, valorizadores da simplicidade e do básico para sobreviver. Reconhecem-se como Família — alusão aos assassinos de Sharon Tate, liderados por Charles Manson?[1] — e odeiam ciência, cultura, tecnologia e militarismo — considerados responsáveis pela devastação do planeta. Não para menos o ilustrado Neville, militar e cientista, deve ser eliminado. É a representação de um tempo, lugar e valores perdidos. Lideram os mutantes o racional Matthias (Zerbe) e o mais aguerrido Zachary (Kilpatrick). Defendem um coletivismo pré-capitalista. Todos os membros trajam capuzes e hábitos negros. Assemelham-se aos monges medievais e creem piamente no definitivo poder purificador do fogo, qual a Santa Inquisição.



Acima: Matthias (Anthony Zerbe) ainda com as feições humanas normais
Abaixo: Matthias transformado em mutante

O mutante Zachary (Lincoln Kilpatrick), lugar tenente de Matthias


Neville — solitário contra todos ou um pária entre os eleitos destinados a herdar um mundo reordenado pela hecatombe que varreu qualquer vestígio de humanidade como era conhecida — lembra, de certo modo, o astronauta George Taylor (Charlton Heston) surpreendido na volta à Terra dominada pelos símios em O planeta dos macacos (Planet of the apes, 1968), de Franklin J. Schaffner. Em ambos os títulos sobra a memória incômoda de uma civilização decaída que não soube evitar a destruição e, portanto, não merece deixar vestígios.


A última esperança da Terra tem começo envolvente, marcado pela inquietação. Pela manhã, Neville dirige pela Los Angeles deserta. A produção não usou maquetes ou efeitos de estúdios. Construções inviabilizariam o empreendimento pela elevação exorbitante dos custos. A solução foi a utilização, ao alvorecer, de setores ainda desertos e silenciosos da megalópole durante os fins de semana, o que exigiu inegável esforço da equipe responsável pela pesquisa de locações. Infelizmente, um filme não é feito apenas de atmosferas — logo tornadas rarefeitas. O romance de Richard Matheson, transformado pelo roteiro de John William Corrington e Joyce Hooper Corrington — segundo sugestões de Heston — evolui rapidamente para um pouco interessante jogo de gato e rato carregado de repetições e situações prolongadas além da medida. O original foi de tal modo descaracterizado para atender às exigências do protagonista a ponto de o autor sequer reconhecer a própria obra como fonte inspiradora. A entrada em cena de uma comunidade de sobreviventes liderada pelos aguerridos Lisa (Cash) e Dutch (Koslo) provoca um reaquecimento dos mais convencionais. Exclui-se, logicamente, a deixa para a introdução de uma ainda ousada relação interracial de Neville com a negra Lisa, numa época em que os conservadores EUA conheceram inúmeras mudanças comportamentais. No final das contas, as cenas de intimidade entre ambos não provocaram grandes controvérsias. Inseriam-se numa produção de ficção científica ambientada em época na qual a humanidade estava reduzida a quase nada.


Lisa (Rosalind Cash)


O final é dos mais conservadores. Resgata uma mensagem de redenção cristã. Neville se apresenta como cordeiro imolado em prol da existência dos demais. Encarna a própria imagem do crucificado lancetado e exanguinado. Os notívagos atingiram o objetivo tão perseguido. O personagem é sacrificado para prover vida e esperança. Antes do trágico ato final — encenado de forma um tanto exagerada, até grotesca — Neville finalizou, valendo-se do próprio sangue imunizado, a produção de vacinas para garantir a preservação dos atributos humanos aos amigos que lhe deram nova razão para viver. O último homem é também o ponto de partida ao recomeço da humanidade, cujos representantes partem da devastada Los Angeles ao encontro de paragens mais acolhedoras ao renascimento social.


Em 1964, I am legend foi filmado em esforço conjunto de produtores italianos e estadunidenses, com o protagonismo de Vincent Price no papel do sobrevivente Robert Morgan. A realização Mortos que matam (The last man on Earth) teve a direção de Sidney Salkow (EUA) e Ubaldo Ragona (Itália). O próprio Richard Matheson escreveu o roteiro original sob o pseudônimo de Logan Swanson. A peça recebeu contribuições de William F. Leicester para a parte estadunidense e de Furio M. Monetti e Ubaldo Ragona no que concerne ao setor italiano. De um lado e de outro, Matheson ficou insatisfeito — inclusive com a escolha que julgou equivocada de Price para o papel principal. Comparado ao sorumbático e enlutado Robert Morgan, o Neville de Charlton Heston é muito expansivo e disposto aos monólogos que nem sempre cumprem função adequada. Na maioria das vezes provocam estranhamento, até fastio[2].


Neville (Charlton Heston) e Lisa (Rosalind Cash)


Provavelmente, A última esperança da Terra teria melhor desenvolvimento se Heston tivesse Orson Welles na direção — conforme o inicialmente pretendido. Porém, o pai de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) — que dirigiu o ator em A marca da maldade (Touch of evil, 1958) — já estava envolvido com a complicada realização de The other side of the wind, filmado com muita dificuldade entre 1970 e 1976 e ainda não concluído por uma série de problemas financeiros e judiciais[3].


Infelizmente, a direção ficou com o rotineiro Boris Sagal — mais habituado aos filmes e séries para a televisão. No cinema, fez muito pouco: onze títulos. Os melhores são o policial As duas faces de Caim (The crimebusters, 1962), a comédia A moeda da sorte (Dime with a halo, 1963) e A última esperança da Terra. Os demais são os pouco interessantes As armas do diabo (Guns of diablo, 1965), Loucos por garotas (Girl happy, 1965), Feita em Paris (Made in Paris, 1966), Os espiões do helicóptero (The helicopter spies, 1968), O ataque dos mil aviões (The thousand plane raid, 1969), Esquadrão Mosquito (Mosquito Squadron, 1969) e Ângela (Angela, 1977).


A última esperança da Terra é a quarta das sete associações de Charlton Heston com o produtor Walter Seltzer. Reuniram-se pela primeira vez em 1965 com O senhor da guerra (The war lord), de Franklin J. Schaffner. Na sequência vieram ...E o bravo ficou só (Will Penny, 1967), de Tom Gries; Number one (1968), de Tom Gries; Voo 502: em perigo (Skyjacked, 1972), de John Guillermin; No mundo de 2020 (Soylent green, 1973), de Richard Fleischer; e Os últimos machões (The last hard men, 1976), de Andrew V. McLaglen.


Charlton Heston no papel de Neville


Dentre os valores da produção, merecem destaque as atuações de Rosalind Cash e Anthony Zerbe. A intérprete de Lisa é dinâmica. Faz valer o pouco tempo em cena com uma personagem forte e cínica que esbanja esperança e, ao mesmo tempo, desconfiança com as novidades reveladas pelo conhecimento de Neville. Lisa é cheia de si. Ocupa a cena com orgulho, como se estivesse louvando os esforços dos negros estadunidenses em busca de afirmação durante os anos anteriores à produção — dedicados à causa dos direitos civis. Já a composição de Zerbe para Mathias é um achado. Apesar de irreconhecível sob a pesada caracterização do mutante, o ator soube se impor com discrição e veraz intensidade, como se fosse um racional e cioso dirigente de um tribunal do Santo Ofício.


A primorosa direção de fotografia de Russell Metty responde pelas principais qualidades da história. É atmosférica e vibrante. Transforma as tomadas obtidas da real Los Angeles em algo fantasmagórico, inclusive apocalíptico. Afinal, veem-se criações humanas por todos os lados, porém os criadores não se fazem presentes — a não ser o solitário e vigilante Neville, mais parecido com uma assombração a velar pelo sono da metrópole deserta. A trilha musical de Ron Grainer é funcional e perfeitamente adequada aos cenários. Estes dão a impressão de ocultar um perigo sempre pronto a emergir, inclusive quando exercem o burocrático papel de ilustração incidental.


Neville (Charlton Heston), a última esperança da Terra


Acerca de guerra entre China e URSS, de consequências funestas para a humanidade, cabe lembrar que a ficção de A última esperança da Terra não estava tão distante do factual. Em 1969 e pelos anos seguintes a temperatura decorrente do tenso relacionamento entre os dois países esteve elevada e pronta a explodir, principalmente nas áreas fronteiriças. Houve mesmo o temor real de uma séria e fatal conflagração entre as duas potências nucleares.





Roteiro: John William Corrington, Joyce Hooper Corrington, com base na novela I am legend, de Richard Matheson. Música: Ron Grainer. Direção de fotografia (Technicolor, Panavision): Russell Metty. Montagem: William H. Ziegler. Assistente de montagem: Ralph H. Martin (não creditado). Produção de elenco: Jack Roberts (não creditado). Direção de arte: Arthur Loel, Walter M. Simonds. Decoração: William L. Kuehl. Supervisão de maquiagem: Gordon Bau. Supervisão de penteados: Jean Burt Reilly. Maquiagem: Michael Hancock (não creditado). Penteados: Sherry Wilson (não creditada). Gerente de unidade de produção: Frank Baur. Supervisão de produção: Hal Klein (não creditado). Assistentes da supervisão de produção (não creditados): Don Roberts, Ted Swanson. Assistente da direção: Donald Roberts. Aprendiz de assistente de direção: Barry Steinberg (não creditado). Segundo assistente da direção: Ted Swanson (não creditado). Camareiro: Frank L. Brown (não creditado). Assistente da contrarregra: Robert Lamb (não creditado). Contrarregra: Red Turner (não creditado). Liderança no departamento de arte: Ken Walker (não creditado). Som: Robert Martin. Cabos de som: Gene Lloyd (não creditado). Operador de boom: Norman Webster (não creditado). Efeitos especiais: A. Paul Pollard (não creditado). Coordenação de ação/dublês: Joe Canutt. Dublês (não creditados): Denny Arnold, Fred Brookfield, Joe Canutt, Tap Canutt, Chuck Courtney, Larry Duran, Bud Ekins, Gary Epper, Tony Epper, Richard Farnsworth, Buddy Joe Hooker, Whitey Hughes, Harold Jones, Kim Kahana, Wayne King Sr., Henry Kingi, Glenn Randall Jr., Roy N. Sickner, Jack Williams, Wanda Ann Yates. Fotografia de cena (não creditada): Bernie Abramson, Lydia Clarke. Assistência de câmera: Warren E. Boes (não creditado), William Classen (não creditado), Jack Morrow (não creditado), Gregory Nowak (não creditado), Henry Polito (não creditado). Operador de câmera: Alfred Cline (não creditado). Eletricista-chefe: Lee Wilson (não creditado). Confecção de costumes: Margo Baxley, Bucky Rous. Músicos (não creditados): Robert Bain (violão), George 'Red' Callender (baixo), Victor Feldman (vibrações), Clare Fischer (órgão), Milt Holland (Saxofone), Milton Kestenbaum (baixo), Virginia Majewski (viola), Raymond Turner (piano), Plas Johnson (percussão). Direção musical e orquestração: Ron Grainer (não creditado). Mixagem da trilha musical: Dan Wallin (não creditado). Capitão de transportes: Ed Dutton (não creditado). Assistente de produção: Shirley Cohen. Assistente para o produtor: Michael Rachmil (não creditado). Publicidade: Bill Stern (não creditado). Equipamentos especiais: Ray Tostado (não creditado). Continuidade: Marshall J. Wolins (não creditado). Créditos: Pacific Title. Tempo de exibição: 98 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1984; revisto e atualizado em 2018)



[1] O crime perpetrado pela Família Mason teve lugar em Los Angeles aos 9 de agosto de 1969.
[2] Em 2007, a novela de Richard Matheson deu origem ao filme Eu sou a lenda (I am legend), de Francis Lawrence. Will Smith vive o protagonista Robert Neville. A denominação rende homenagens aos personagens interpretados por Vincent Price e Charlton Heston.
[3] Orson Welles faleceu em 1985, aos 70 anos. Não pode concluir The other side of the wind. Tentou de todas as maneiras liberar os negativos apreendidos por ordem judicial e depositados em Paris em virtude de uma ação demandada pelos produtores. Em 2018, graças aos esforços dos diretores Wes Anderson e Noah Baumbach, o filme foi editado a partir de cópias guardadas pelo diretor de fotografia Gary Graver. Nesse mesmo ano The other side of the wind entrou em cartaz na rede de streaming Netflix.