domingo, 16 de setembro de 2018

O ANO DA PREVISÃO PASSOU, MAS A POSSIBILIDADE PERMANECE

A última criança (The last child, 1971), de Jonh Llewellyn Moxey, é modesto e inquietante telefilme algumas vezes exibido pela TV Globo nas noites de sábado. Era parte do programa Premiere Mundial. Assustava o espectador atento às conjecturas lançadas pelo economista britânico Thomas Malthus nos primeiros anos do século XIX. Na centúria passada, estiveram na ordem do dia de fins dos anos 60 e por quase toda a década seguinte. Os atualmente clássicos No mundo de 2020 (Soylent green, 1973), de Richard Fleischer, e o menos conhecido A mais cruel batalha (No blade of grass, 1970), de Cornel Wilde, também são reflexos das catastróficas antecipações malthusianas. Em futuro próximo o mundo estará praticamente inviabilizado pela explosão demográfica. Esse tempo em A última criança é 1994. Os Estados Unidos tomam medidas drásticas para limitar nascimentos e impedir aos idosos o tratamento médico-hospitalar e acesso às farmácias. A Polícia de Controle Populacional atua com rigor. Gestantes fora-da-lei são encaminhadas às clínicas de aborto. Se a gravidez estiver avançada, aguarda-se o parto para a pronta eliminação do bebê. O casal refratário Alan Miller (Michael Cole) e Karen (Janet Margolin) é descoberto pelas autoridades e tenta escapar para o menos populoso e mais liberal Canadá. Apesar de se entregar às rotinas do filme de perseguição e da concepção pobre, a direção é competente na obtenção de climas e atmosferas. Se porventura resistiu à implacável passagem dos anos, A última criança permanece como realização sombria e angustiante. Contém a última atuação do veterano Van Heflin e apresenta Edward Asner como um cioso burocrata que não merece reparos. Segue apreciação escrita em 1977.






A última criança

The last child

Direção:
Jonh Llewellyn Moxey
Produção:
William Allyn
American Broadcasting Company (ABC), Aaron Spelling Productions Inc.
EUA — 1971
Elenco:
Michael Cole, Van Heflin, Janet Margolin, Harry Guardino, Edward Asner, Kent Smith, Michael Larrain, Philip Bourneuf, James A. Watson Jr., Barbara Babcock, Sondra Blake, Roy Engel, Phyllis Avery, Ivor Francis, Jason Wingreen, Bill Walker, Victor Izay, Frank Baxter.



O diretor John Llewellyn Moxey


O argentino Jonh Llewellyn Moxey consolidou carreira de diretor nas praças estadunidenses e inglesas, principalmente na televisão — em filmes e séries. Para o cinema fez, até o momento, apenas Emboscada no Cairo (Foxhole in Cairo, 1960), Ricochet (Ricochet, 1963), Strangler's Web (Strangler's Web, 1965) e O circo do medo (Circus of fear, 1966). Por ora, merece notoriedade entre os telespectadores brasileiros das noites de sábado: é um dos melhores e mais presentes diretores de telefilmes exibidos pelo programa Premiere Mundial da TV Globo. Os títulos, em geral, pecam pela falta de ousadia — limitação imposta pelo veículo — e condução burocrática. Dentre os destaques está o inquietante A última criança.


Pode-se dizer que é ficção científica com implicações políticas, familiares e demográficas. Apóia-se, de certo modo, nas teorias do economista britânico Thomas Robert Malthus (1766-1834) acerca de uma provável explosão populacional que deixaria em risco a sobrevivência das espécies, principalmente a humana, em futuro não muito distante. Esse tempo chegou em A última criança. Corre o ano de 1994 nos Estados Unidos. As pessoas mal conseguem caminhar pelas ruas sem esbarrar umas nas outras. A superpopulação obrigou um governo de rosto anônimo e draconiano — para não dizer fascista — a baixar medidas severas de controle demográfico. Os nascimentos estão restritos a um filho por casal. Os refratários deverão se entender com a rigorosa Polícia de Controle Populacional. As gestações indevidas são interrompidas. Caso o desenvolvimento fetal esteja muito adiantado, aguarda-se o parto para a consequente eliminação do recém-nascido. Além disso, idosos a partir dos 65 anos estão impedidos de receber qualquer assistência médico-hospitalar e acessar farmácias.



Acima e abaixo: Janet Margolin e Michael Cole nos papéis de Karen Miller e Alan Miller


As imagens de abertura são simples e impactantes. Contribuem para segurar a atenção por todo o resto do filme, mesmo com o arrefecimento da tensão quando a narrativa é tomada pelos clichês do rotineiro drama de perseguição. Apresentados os créditos, a câmera enquadra em plano fechado a movimentação da multidão nervosa e apressada em uma espécie de longa galeria. No fluxo, uma mulher (Sondra Blake) perde o filho John (Frank Baxter). O desespero dura pouco. O garoto é prontamente encontrado pelos amigos Sandy (Michael Larrain) e Alan Miller (Michael Cole). Porém, ao devolvê-lo à mãe a polícia intervém. Descobre uma fora-da-lei, grávida do segundo filho. É aprisionada e nada pode ser feito. A ação é implacável. Ciosos funcionários das agências de controle populacional atuarão com todo o rigor, principalmente Barstow (Edward Asner). É o duro vilão da história dividida entre bons e maus.


O implacável agente Barstow (Edward Asner)


Os espectadores estadunidenses provavelmente assistiram horrorizados a A última criança. São cidadãos socialmente organizados segundo o credo liberal. Aos indivíduos é concedida plena autonomia nas decisões com respeito à esfera privada, inclusive as relacionadas ao corpo e à natalidade. A proibição estatal da gravidez e a obrigatoriedade do aborto — inclusive a condenação do recém-nascido não autorizado à morte —, certamente soaram como os piores anátemas à centralidade dos indivíduos. São atos que ferem frontalmente o direito considerado sagrado e inviolável à liberdade de escolha. Entretanto, a premissa de A última criança — por mais cruel e autoritária que possa ser — não deixa de ser possibilidade muito real. Não para agora, muito menos brevemente — como antecipa o pessimista Jonh Llewellyn Moxey a partir do roteiro de Peter S. Fischer. Porém, em algum momento medidas impopulares e pouco benevolentes — autoritárias ou democráticas — serão tomadas pelos governos e estados quando a explosão demográfica descontrolada se revelar arriscada à sobrevivência.


Em A última criança o drama gira em torno do casal Alan Miller (Michael Cole) e Karen Miller (Janet Margolin). Perderam o filho autorizado. A concepção de outro não é permitida. Não obstante, planejaram nova gravidez e estão sob risco. Descobertos, fogem depois de aprisionados e encaminhados ao departamento médico sob cuidados do Dr. Young (Ivor Francis). Este, apesar dos problemas de consciência que o atormentam, avisa friamente ao casal: a gravidez está avançada e não pode ser interrompida; seguirá um parto normal e imediata morte do bebê.


Alan Miller (Michael Cole) e Karen Miller (Janet Margolin)

Harry Guardino no papel de Howard Drumm

Van Heflin no papel do Senador Quincy George


A partir daí A última criança se converte em filme de fuga e perseguição. O casal ludibria a vigilância e tenta embarcar para o liberal e menos populoso Canadá. Barstow parte na perseguição. Qualquer pessoa é potencial denunciante. Rotas de fuga e meios de transporte são vigiados. Por sorte, contam com a acidental proteção do respeitável ex-Senador Quincy George (Van Heflin), contrário às políticas de controle. Além de abrigar Karen e Alan, oferece-se para ajudá-los na fuga. Entretanto, logo são descobertos e acuados. Apesar da respeitabilidade pessoal do protetor, a residência é cercada. Ainda há um complicador. Aos 72 anos, Quincy George é diabético. Precisa de medicação constante, proibida à idade. A insulina que receberia por contrabando é bloqueada pelo cerco policial. A ajuda chega de forma inesperada, da parte do legalista Howard Drumm (Harry Guardino).


Karen Miller (Janet Margolin)



A concepção visual de A última criança é pobre. A sociedade do futuro antecipada em 1971 — ano da produção — é muito parecida à realidade presente, principalmente em trajes e cenários. A produção, pelo visto, não teve recursos para ousar. Vale a atmosfera sombria. Jonh Llewellyn Moxey soube traduzir com adequadas doses de inquietação e angústia o bom roteiro de Peter S. Fischer, mesmo quando a história se torna corriqueira.


Karen Miller (Janet Margolin) e Alan Miller (Michael Cole) em fuga


Indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme de TV em 1972, A última criança traz o derradeiro desempenho de Van Heflin. Faleceu em 1971, aos 62 anos, poucos meses antes de a produção receber as primeiras veiculações pelas emissoras da rede ABC (American Broadcasting Company). Michael Cole, o protagonista, ganhou notoriedade graças ao papel de Pete Cochran — um dos jovens auxiliares da polícia de Los Angeles no combate ao crime, principalmente o tráfico de drogas, na série Mod Squad[1]. Tinha por parceiros Linc Hayes e Julie Barnes, vividos por Clarence Williams III e Peggy Lipton. Edward Asner também ganhou notoriedade nas séries de TV, notadamente pelo papel de Lou Grant em Mary Tyler Moore[2].


Os atores de A última criança:
Ao centro, Van Heflin; à esquerda, Edward Asner (acima) e Harry Guardino; à direita, Michael Cole e Janet Margolin


Roteiro: Peter S. Fischer. Direção de fotografia (cores): Archie R. Dalzell. Direção de arte: Paul Sylos. Assistente de direção: Wesley Barry. Montagem: Art Seid. Decoração: Ken Swartz. Costumes: Robert "Bob" Harris Sr., Vou Lee Giokaris. Nolan Miller. Maquiagem: Howard Smith. Penteados: Pat Whiffing. Supervisão de script: Helen Parker. Coordenador de construções: Jesse Stone. Engenheiro de som: Tommy Thompson. Edição musical: Rocky Moriano. Edição de som: Gene Elliot. Gravação de som: Glen Glen Sound Company. Gerente de produção: Norman Henry. Supervisão de produção de elenco: Bert Remsen. Fornecimento de veículos: Chrysler Corporation, General Motors Corporation. Música: Lawrence Rosenthal. Contrarregra: Jerry MacFarland. Produção executiva: Aaron Spelling. Tempo de exibição: 73 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1977)



[1] Ao todo, a série é formada por cinco temporadas e 124 episódios, cada qual com aproximados 60 minutos. Teve Bud "Buddy" Ruskin na criação e, no desenvolvimento, Tony Barrett, Harve Bennett e Sammy Hess. Foi produzida por Thomas-Spelling e veiculada originalmente pela Worldvision Enterprises para a American Broadcasting Company (ABC) de 24 de setembro de 1968 a 23 de agosto de 1973.
[2] Série de sete temporadas e 168 episódios, cada qual com aproximados 30 minutos. Criação de James L. Brooks e Alan Burns para a rede CBS (Columbia Broadcast System). Originalmente exibida de 19 de setembro de 1970 a 19 de março de 1977.