domingo, 5 de outubro de 2014

O MODERNO CINEMA NARRATIVO NASCE NO BERÇO DO MAIS VIL E GROTESCO RACISMO — SEGUNDA PARTE

A realização de Judith of Bethulia (1914) é um revés na carreira de Griffith. Devido a isso, sofre sanções na Biograph. Confiante, procura trabalho com maior independência para suas pesquisas. É contratado pela Mutual Films Corporation. The Clansman, do pastor presbiteriano-fundamentalista Thomas Dixon, apresenta-se como possibilidade a um filme único, no qual consolida em escala épica suas invenções e aperfeiçoamentos. O nascimento de uma nação retira o cinema da infância envergonhada e o eleva ao patamar de adulto e respeitável meio de expressão, mas às expensas do mais desabrido racismo. Transforma o diretor, apesar das reações negativas, no mais importante cineasta dentro e fora dos Estados Unidos. Anos mais tarde será comparado a "Deus" pelo soviético Sergei M. Eisenstein. As principais contribuições de O nascimento de uma nação (The birth of a nation, 1914) serão agora abordadas, junto com a percepção da história estadunidense, pelo realizador, carregada de apelo sentimental, ressentimento e mistificação frente à imagem do “Velho Sul” derrotado na Guerra de Secessão. A peça é arrojada evocação ao doloroso parto dos Estados Unidos como nação moderna. Porém, para horror dos horrores, quem possibilita tal nascimento é a terrorista Ku-Klux-Klan, apontada como guardiã da pureza racial branca contra a barbárie perpetrada por abolicionistas e negros defensores de uma improvável e incômoda igualdade. Ao mostrar o drama de um país esfacelado pela guerra civil, Griffith a um só tempo exibe sua maturidade como artista e faz a vingança dos confederados derrotados militar e moralmente. O nascimento de uma nação apela à concórdia na forma de uma inconcebível impostura ideológica referendada pelo próprio Jesus Cristo.







O nascimento de uma nação
The birth of a nation

Direção:
David Wark Griffith
Produção:
David Wark Griffith, Thomas F. Dixon
David Wark Griffith Corporation, Epoch Productions Corporation, Reliance-Majestic, Mutual Films Corporation
EUA — 1914
Elenco:
Lillian Gish, Henry B. Walthall, Mae Marsh, Ralph Lewis, George Siegmann, Josephine Crowell, Mirian Cooper, Donald Crisp, Wallace Reid, Elmer Clifton, Joseph Henabery, Spottiswoode Aitken, Robert Harron, Walter Long, J. A. Beringer, Jennie Lee, Maxfield Stanley, Mary Alden, Howard Gaye e os não creditados Eugene Pallete, Bessie Love, Raoul Walsh, Elmo Lincoln, Erich von Stroheim, Sean Aloysius "John Ford/Jack Ford" O’Feeney, Alberta Franklin, Alberta Lee, Allan Sears, Alma Rubens, Betty Marsh, Bob Burns, Charles Eagle Eye, Charles King, Charles Stevens, D. W. Griffith, Dark Cloud, David Butler, Donna Montran, Edmund Burns, Edward Burns, Fred Burns, Fred Hamer, George Walsh, Gibson Gowland, Harry Braham, Jules White, Lenore Cooper, Madame Sul-Te-Wan, Mary Wynn, Monte Blue, Olga Grey, Peggy Cartwright, Russell Hicks, Sam De Grasse, Tom Wilson, Vester Pegg, Violet Wilkey, Walter Huston, William De Vaull, William E. Cassidy, William Freeman. 



David Wark Griffith

  
Fundamental à carreira de Griffith é o impacto de Quo Vadis? nos cinemas estadunidenses. Diante da grandiosidade da encenação italiana, propõe uma contrapartida ousada, um épico bíblico de quatro rolos, Judith of Bethulia. Desenvolve a produção contrariando os maiorais da Biograph. No final, a obra fica a dever em magnitude na comparação ao produto italiano. Ressentida, a companhia impede o lançamento. Também fere a susceptibilidade do cineasta, rebaixando-o à função de supervisor[1]. Diante disso, demonstrando plena confiança em sua capacidade, Griffith deixa a Biograph. Oferece serviços em "anúncio de página inteira no The New York Dramatic Mirror". Proclama-se "Fundador da moderna técnica da arte fílmica por ter inventado figuras em grande plano, planos longos utilizados pela primeira vez em Ramona, o retrospecto, o suspense, o escurecimento e o controle de expressão"[2].


Logo é contratado com carta branca pela Mutual, companhia que abrigará também o gênio em ascensão de Charles Chaplin. A ideia de superar qualitativamente a produção épica italiana não o abandona. É quando tem a atenção despertada por Frank Woods[3] para o romance The Clansman, do reverendo presbiteriano sulista Thomas Dixon. A peça, medíocre segundo os que a leram, é uma monstruosidade histórica sem tamanho. Lamenta a derrota dos Estados Confederados na Guerra de Secessão. Responsabiliza diretamente os abolicionistas e os próprios negros recém-emancipados da escravidão — em luta pela igualdade civil — como diretamente responsáveis pela ruína moral e econômica do "Velho Sul". Furiosamente racista, não titubeia em glorificar os feitos da criminosa e terrorista Ku-Klux-Klan, apontada como guardiã da pureza branca contra a barbárie. O autor dedica The Clansman ao tio, Coronel Leroy McAfee, a quem chama de "Grande Titã" da organização.


O fracasso de Judith of Bethulia impõe novos rumos à carreira de David Wark Griffith


A desagregação do Sul após a guerra civil sempre repercutiu negativamente em Griffith. Quando criança, ouvia do pai Jacob Wark Griffith, médico e coronel confederado, inúmeras histórias a respeito do modo de vida aristocrático e cavalheiresco que se perdeu, passagens sobre um tempo e um mundo mais míticos que reais, levados pelo vento, como dirá metaforicamente outra sulista nostálgica, Margareth Mitchell, em famoso romance escrito anos depois[4]. O livro de Dixon reaviva as lembranças do cineasta. Casa-se perfeitamente com as memórias paternas. Essa questão de fundo sentimental leva-o a endossar positivamente The Clansman. Por isso não é possível concordar com John Howard Lawson que simplesmente lhe atribui "mau juízo artístico e histórico" pela escolha do argumento[5]. Ora, Griffith foi socializado ouvindo loas sobre os "bons e velhos tempos" de outrora. Imagens míticas  passadas pelo pai, por Thomas Dixon e Woodrow Wilson  e não propriamente históricas, moldaram-lhe a visão de mundo. Junte-se a isso o ressentimento provocado pela derrota, prolongado por gerações, afetando muita gente, inclusive Griffith.


Ao preço de dois mil e quinhentos dólares, mais participação nos lucros, Dixon vende os direitos de filmagem. Também contribui ativamente na adaptação, o que conserva o espírito do original. Mesmo assim, revela Arthur Knight, Griffith toma o cuidado de eliminar e/ou atenuar as passagens mais furiosamente racistas[6]. Seis semanas são despendidas no planejamento (pré-produção). As filmagens, iniciadas em 4 de julho de 1914, consomem dois meses. O trabalho de montagem se prolonga por outros três. Há controvérsias sobre se Griffith filmou com ou sem roteiro. Alguns afirmam que ele redigiu cuidadosamente um script, detalhando cada um dos 1500 planos que compõem a produção. Outros alegam que nenhum tipo de guião foi utilizado, pois desde o começo o filme estava pronto na sua cabeça.



Lillian Gish no papel da heroína Elsie Stoneman de The birth of a nation


Em 8 de fevereiro de 1915 acontece a premiere em Los Angeles. The Clansman ainda é o título. Somente quando estreia em Nova York, em 3 de março do mesmo ano, passa a se chamar, mais apropriadamente, O nascimento de uma nação, não se sabe se por sugestão de Lewis Jacobs ou do próprio Griffith. O filme evoca justamente o parto doloroso dos Estados Unidos da América como nação moderna. Nisso, a Guerra de Secessão é um divisor de águas. A clássica declaração de Daniel Webster, "Liberdade e União, únicas e inseparáveis, agora e sempre", é recorrente no filme. Griffith se serve dela para mostrar como o desejo de união, simbolizado pelo Norte, teve que se ajustar com a vocação à autodeterminação da qual o Sul nunca abriu mão. Só que, no filme, para espanto geral, esse casamento é selado sob chancela da Ku-Klux-Klan.


O italiano Quo vadis? (1912), de Enrico Guazzoni, exerce considerável influência na carreira de Griffith

  
Os letreiros de abertura são significativos. Lê-se que a chegada dos africanos aos Estados Unidos plantou as sementes do ódio que esfacelaria o país. A seguir são apresentadas as famílias Stoneman (nortista) e Cameron (sulista), polos fundamentais da narrativa. São ajuntamentos que defendem interesses diferentes. Servem de metáfora à encenação da divisão que desemboca na fratricida Guerra de Secessão. Antes do conflito, apesar de separados pela distância, Stoneman e Cameron estão afetivamente próximos, tanto que se visitam. Em Piedmont, na Virgínia, a casa dos Cameron recebe calorosamente os filhos de Austin Stoneman (Lewis). Phil Stonemam (Clifton) enamora-se de Margaret Cameron (Cooper). Por sua vez, Ben Cameron (Walthall)  mais tarde chamado de "o pequeno coronel"  encanta-se por Elsie (Gish), irmã de Phil, após vê-la num retrato.



Margtaret Cameron é interpretada por Miriam Cooper


Os Cameron são mostrados como felizes e unidos. A mãe (Crowell) é afetuosa e o pai (Aitken) está sempre presente. Austin Stonemam, por sua vez, aparenta viuvez. Pouco convive com os filhos. É um deputado nortista identificado como radical, mais preocupado com a campanha abolicionista e a defesa intransigente dos direitos à igualdade civil que prega para os negros. Tem por amante uma mulata, a manhosa Lydia (Austin), imediatamente apontada como responsável pelo seu modo de ser. Dessa forma, logo no começo, fica exposto o principal motivo de temor dos brancos conscienciosos do filme: a mistura de raças, a miscigenação, o “inaceitável” contato sexual entre brancos e negros.


Os Stoneman e os Cameron poderiam compor única e imensa família se nenhuma fatalidade impedisse a união de seus filhos. Entretanto a guerra explode, gerando infelicidade para ambos os lados. Separadas pelo conflito, as casas nortista e sulista enviam respectivamente dois e três filhos para o confronto. Eufórico e em festejos, o Sul comemora a partida dos soldados para o front. São vistos como combatentes da liberdade e da autodeterminação. Mas a dura realidade é logo sentida. A guerra entre irmãos resulta num morticínio sem precedentes. Um filho de Stoneman e dois de Cameron são mortos em combate. A miséria se acerca dos lares sulistas. A ampla e ricamente decorada sala da mansão dos Cameron fica vazia e triste. Quase tudo é levado como contribuição ao esforço de guerra. As irmãs Margaret e Flora (Marsh) — a caçula —, premidas pelas dificuldades, trajam-se grosseiramente. Mas não basta a privação econômica. O pior é a provação moral: o lar dos Cameron é violado e saqueado por destacamento negro comandado por oficial branco.



Mae Marsh como Flora Cameron

Antes da guerra, os Stoneman e os Cameron eram próximos, apesar de defenderam visões opostas sobre o país

Eclode a guerra - Os sulistas, confiantes e festivos, comemoram a secessão
Sobre o cavalo, de partida para a frente de combate, o Coronel Ben Cameron (Henry B. Walthall)


A guerra está prestes a terminar com a total derrota e incorporação do Sul à União. Ben Cameron, ferido aos pés de Phil Stoneman e por este socorrido, convalesce num hospital militar nortista sob o beneplácito do próprio Abraham Lincoln (Henabery)[7] e aos cuidados da dedicada enfermeira Elsie Stoneman. Apoiado em fontes históricas precisas, Griffith reconstitui a assinatura do tratado de paz entre os generais Ulisses S. Grant (Crisp) e Robert Lee (Gaye), no qual o Sul aceita a rendição incondicional. A região torna-se presa fácil para negociantes e políticos inescrupulosos do Norte — Austin Stoneman entre eles —, que querem a região de joelhos, amortizando todos os custos do conflito. Lincoln, observado simpaticamente por Griffith, contém os especuladores e patrocina a reconstrução do Sul. Novamente o destino conspira. O presidente é assassinado no Teatro Ford durante uma encenação. Esta é uma das sequências mais eficazes do filme, devido ao rigor e fidelidade de Griffith na reconstituição do fato. Com base nas fotografias tomadas por Mathew Brady[8] logo após o atentado, o Teatro Ford foi todo reconstruído em estúdio, com exatidão, da forma em que se encontrava na noite do crime. É, até hoje, um dos maiores cenários erguidos para um filmagem[9].



Ben Cameron (Henry B. Walthall), internado no hospital de campanha, recebe a visita da mãe Mrs. Cameron (Josephine Crowell) e de Elsie Stoneman (Lillian Gish) 

Os generais Robert Lee (Howard Gaye) e Ulisses S. Grant (Donald Crisp) na assinatura do tratado de paz

À direita, no Teatro Ford, o Presidente Abraham Lincoln (Joseph Henabery)

O Presidente Lincoln (Joseph Henabery) é assassinado no Teatro Ford por John Wilkes Booth (Raoul Walsh)

  
O apreço do diretor por Lincoln é confirmado pelo patriarca dos Cameron (alter ego de Jacob Wark Griffith), que recebe consternado a notícia da morte do Presidente. Transmite-a aos familiares da seguinte forma: "Nosso melhor amigo morreu, o que será de nós agora?". Encerra-se aí a primeira parte de O nascimento de uma nação. A segunda, com o nome de Reconstrução: a agonia do Sul enquanto nasce uma nação, acintosamente racista e temerosa quanto à miscigenação, é francamente baseada no romance de Dixon. A primeira recebeu mais influências das Notas autobiográficas do pai do cineasta. Poderia haver uma terceira parte com o nome, por exemplo, de Reação: o Sul se levanta com a Ku-Klux-Klan. Mas esta se incorpora à segunda.


Sem Lincoln, o Sul sofre seguidos reveses. Está nas mãos de especuladores e oportunistas de todos os tipos. Os piores são os políticos integracionistas como Austin Stoneman, insuflando negros a ocupar espaço no seio da comunidade branca. O mulato Silas Linch (Siegman)  fruto do pecado original que envergonha o puritano  é o agente nomeado por Stoneman para organizar politicamente os negros em Piedmont. Nos letreiros, lê-se: "Os negros instigados pelo gavião branco e sagaz do Norte são instados a tripudiar sobre os despojos do Sul". No filme há negros bons e maus. Os primeiros preferem continuar servindo a seus senhores, como Mammy (Lee), governanta dos Cameron, sempre pronta a se sacrificar por eles. Os que procuram a autodeterminação e se organizam politicamente, intrometendo-se no negócio dos brancos, são apresentados como invejosos, dissimulados, vis, intriguentos, manhosos, fingidos, venais, vingativos, truculentos e praticantes de desmandos. Em suma, estão ao léu, sem nada que os controle. Constituem perigo à continuidade do mundo erguido pela civilização branca. Griffith enfatiza essa diferença em duas sequências grotescamente constrangedoras: na primeira, Mammy, aquela que conhece seu lugar, trava diálogo ríspido com o criado negro de Austin Stoneman e o chama de "lixo negro nortista". Na outra, após a eleição de Silas Linch a Vice-Governador, a maioria negra do parlamento atua sem o menor decoro, como símios em plena selva. Durante as eleições os negros controlam o pleito e sabotam a participação branca.


Uma das partes mais significativas de O nascimento de uma nação resulta da retirada de Austin Stoneman para temporada de descanso. A conselho de Phil e Elsie, viaja a Piedmont. Hospeda-se, a princípio, na casa dos Cameron. O que segue comprova o quanto Griffith  apesar de seu arraigado sentimento sulista e da visão estereotipada e preconceituosa do negro  lamentava a divisão do país. A maneira encontrada para representar essa cisão é não mostrar o encontro do visitante com o anfitrião, Dr. Cameron. Por outro lado, as possibilidades de romance entre Phil-Margaret e Ben-Elsie não se concretizam. São anuladas pelas dolorosas lembranças da guerra e pela hostilidade demonstrada por Ben com a missão desenvolvida pelo pai da pretendente. Com o tempo, os Stoneman ocupam casa defronte à residência dos Cameron. Apenas uma rua os separa, mas mal se comunicam. Nesse símbolo do espaço público reside o perigo e a razão de todas as diferenças. Na rua os brancos se ofendem com a insolente desenvoltura dos negros segundo a visão de Griffith. Estes mostram acintosamente que são, agora, portadores de direitos, entre os quais a igualdade.


Na rua, Ben Cameron é humilhado e repreendido por Silas Linch. Preocupado com a situação, recomenda a Flora que não saia desacompanhada. Quando testemunha uma brincadeira, na qual crianças brancas disfarçadas sob lençol da mesma cor assustam as negras, recebe a inspiração que faltava. Reúne-se a brancos igualmente insatisfeitos e funda a Ku-Klux-Klan com o claro objetivo de aterrorizar os negros e resguardar as tradições aristocráticas sulistas. As palavras do letreiro são claras. Griffith torna seu o elogio que Woodrow Wilson endereçou aos cavaleiros encapuzados: "...A grande Ku-Klux-Klan, o verdadeiro império do Sul, protegerá o povo sulista". Recupera também uma definição da época: "A Ku-Klux-Klan, organização que salvou o Sul das regras anarquistas dos negros não sem antes derramar mais sangue que em Gettysburg".


No Sul derrotado de Griffith, o Dr. Cameron (Spottiswoode  Aitken), à direita, é humilhado por negros - um dos fatores que  desencadeia a reação da Ku-Klux-Klan

  
No filme a Ku-Klux-Klan é criada para assustar. Mas radicaliza as ações quando os negros reagem e matam componentes do bando. Ou quando as ameaças de contato sexual inter-racial ficam mais evidentes. Nisso, a família Cameron colhe vítima fatal. Flora esquece as recomendações e vai ao campo em busca de água e frutos. É seguida e assediada por Gus (Lang), negro andarilho que manifesta clara intenção de desposá-la. Foge apavorada. Perseguida, é encurralada no alto de um penhasco. Prefere saltar para a morte a ser violentada. Encontrada pelo irmão, falece a tempo de revelar o nome do perseguidor.


A bandeira confederada que Flora guardava desde criança, com extremo zelo e dedicação, torna-se emblema de um juramento solene que fazem Ben Cameron e toda a Ku-Klux-Klan. Diz o "pequeno coronel": "Esta bandeira será o clamor das almas sulistas e de uma mulher que teve sua vida sacrificada no altar da vergonhosa civilização". Gus é encontrado, sumariamente julgado e enforcado. Tem o corpo atirado à porta da residência de Silas Linch, que ordena a busca aos culpados. Espiões negros vigiam as residências brancas. Descobrem um uniforme da Ku-Klux-Klan na casa dos Cameron. O patriarca é preso, conduzido pelas ruas e exposto à zombaria dos negros. Margaret busca socorro junto a Elsie Stoneman. Enquanto isso, a fiel Mammy, auxiliada por Phil, resgata o patrão. Fogem para o campo, junto com Margaret e a Senhora Cameron. Abrigam-se no casebre de um sitiante, ex-soldado da União que aí mora com a filha menor e um companheiro. Logo estarão cercados pelos perseguidores.


Enquanto isso, Elsie Stoneman intercede pelos Cameron. Na ausência do pai recorre diretamente a Silas Linch. O líder mulato, bêbado, aproveita para externar a atração que sente por ela, absurdo que decorre de outra subversão moral na visão de Griffith: a relação entre Austin Stoneman e a mulata Lydia. Silas deve ter pensado: se um branco vive com uma mulata por que não posso viver com uma branca? Horrorizada, Elsie recusa o pedido de casamento. É aprisionada. Na rua, os negros em polvorosa festejam a decisão do líder. Temerosas, as famílias brancas se isolam nas casas. Austin retorna no auge dos acontecimentos. Parabeniza Silas quanto às suas futuras núpcias. Mas reage furiosamente ao saber que Elsie é a noiva. Também é aprisionado.


O terror à miscigenação está explícito nessas cenas. A dubiedade de caráter resultante da união inter-racial também. O mulato Linch demonstra não ser confiável. Trai Austin Stoneman, seu principal mentor. Não defende nem mesmo a causa dos negros. Utiliza-a apenas como meio à construção de um império próprio.


Mas a Ku-Klux-Klan está alerta. Agentes seus, disfarçados de negros, testemunham os eventos. A organização cavalga para reinstalar a ordem em sequências que provam o poder da montagem paralela. Planos que mostram Austin e filha aprisionados, mais o casebre acuado, são intercalados com o galope dos encapuzados rumo ao salvamento que acontece no último minuto, quando tudo parecia perdido, como manda o figurino tornado clássico pelos filmes de perseguição e suspense. No casebre, desprovidos de munição, os homens tentam conter a derrubada das portas e janelas Deixam as coronhas das armas descarregadas pairando sobre as cabeças das mulheres. Estão prontos a sacrificá-las, num ato de misericórdia.


A triunfante entrada de Ku-Klux-Klan em Piedmont: a organização racista impõe a paz branca e, segundo Griffith, consolida a união entre Sul e Norte.


Todos os negros são postos a correr. Vitoriosa, a Ku-Klux-Klan entra triunfante em Piedmont, num desfile que reúne nortistas e sulistas salvos da selvageria e finalmente irmanados. Os Cameron e os Stoneman agora somam um: "Liberdade e união, juntas e inseparáveis, agora e sempre". Mas do somatório desse contrato social os negros são excluídos, impedidos de votar inclusive. Nas imagens finais fica coroada a segregação. O racismo está legitimado. O Sul branco, derrotado na Guerra de Secessão, sai vencedor na encenação de Griffith. Ao Norte não resta outra alternativa senão a de se espelhar na imagem do oponente. Ambos têm por inimigo comum o "negro vil, traiçoeiro e ambicioso" contra o qual devem unir forças[10]. Para celebrar a paz branca, Griffith lançou mão de outra cena constrangedora: nela, o próprio Cristo abençoa o pacto. Pode-se dizer que foi transformado em membro da Ku-Klux-Klan.







Acesse a primeira parte em: 
O MODERNO CINEMA NARRATIVO NASCE NO BERÇO DO MAIS VIL E GROTESCO RACISMO — PRIMEIRA PARTE

Acesse a terceira e última parte em:
O MODERNO CINEMA NARRATIVO NASCE NO BERÇO DO MAIS VIL E GROTESCO RACISMO — TERCEIRA E ÚLTIMA PARTE


Direção de fotografia (preto-e-branco): G. W. "Billy" Bitzer. Roteiro: David Wark Griffith, Frank E. Woods, Thomas Dixon, com base nas novelas de Thomas Dixon Jr., The Clansman: An historical romance of the Ku Klux Klan, The leopard's spots, e nas Notas autobiográficas de Jacob Wark Griffith. Produção executiva: Harry E. Aitken. Montagem: David Wark Griffith, Joseph Henabery, James Smith, Rose Smith, Raoul Walsh. Assistentes de direção (não creditados): Erich von Stroheim, Woody S. Van Dyke, Jack Conway, Raoul Walsh, George Siegman, Monte Blue, Christy Cabanne, Elmer Clifton, Donald Crisp, Allan Dwan, Howard Gaye, Fred Hamer, Robert Harron, Joseph Henabery, Thomas E. O'Brien, Herbert Sutch, Baron von Winther, Henry B. Walthall, Tom Wilson. Compositores do acompanhamento musical à época do lançamento: Joseph Carl Breil, David Wark Griffith. Supervisão da restauração: Paul Killiam, curador do espólio de David Wark Griffith. Organização da trilha musical e arranjos pela Killiam Shows: Fraser MacDonald. Figurinos (não creditados): Robert Goldstein, Clare West. Contrarregra (não creditado): Ralph M. DeLacy. Carpintaria (não creditada): Shorty English. Assistência de carpintaria (não creditada): Jim Newman. Pintura (não creditada): Cash Shockey, Edificações (não creditadas): Joseph Stringer. Assistência de contrarregra (não creditada): Hal Sullivan. Planejamento do set (não creditado): Frank Wortman. Supervisão de efeitos especiais (não creditada): Walter Hoffman. Efeitos especiais (não creditados): 'Fireworks' Wilson. Dublês (não creditados): Monte Blue, Charles Eagle Eye, Leo Nomis. Operador de câmera (não creditado): Karl Brown. Assistente de câmera (não creditado): Frank B. Good. Confecção de figurinos (não creditados): Robert Goldstein. Restauração dos negativos pela Killiam Shows: Karl Malkames. Arranjos musicais do relançamento em 1921 em New York (não creditado): William Axt. Músico (não creditados): Harry Berken (trumpete). Direção musical (não creditada): Carli Elinor. Adaptação musical à versão de som sincronizado em 1930 (não creditado): Louis F. Gottschalk. Arranjo musical da reapresentação de 1921 em New York (não creditado): Herman Hand, Erno Rapee. Compositor da abertura na premiere em Los Angeles (não creditado): Joseph Nurnberger. Apresentação: David Wark Griffith. Segurança (não creditado): Jim Kidd. Técnico de laboratório (não creditado): Abe Scholtz. Companhia de confecção de figurinos: Goldstein and Company. Guarda-roupa: Western Costume Company. Tempo de exibição: 190 minutos na velocidade original de 16 fotogramas por segundo; 170 minutos na versão analisada; há versões com 160 e 154 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1985)






[1] LAWSON, John Howard. O processo de criação no cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p 43.
[2] Ibidem. "A inclusão desses termos técnicos num anúncio de jornal indica a popularização da linguagem cinematográfica, já nos primórdios de seu desenvolvimento" (Ibidem.).
[3] Ibidem. p. 45.
[4] Trata-se de ...E o vento levou (Gone with the wind), evocação do "Velho Sul" que originará o filme do mesmo nome, superprodução de David O. Selznick com direção creditada a Victor Fleming e realizada em 1939.
[5] LAWSON, John Howard. Op. Cit. p. 45.
[6] KNIGHT, Arthur. Uma história panorâmica do cinema: a mais viva das artes, Rio de Janeiro: Lidador, 1970. p. 25.
[7] Lincoln era considerado feio segundo os padrões ocidentais de aferição de beleza. Mas essa característica é exagerada em O nascimento de uma nação: o Presidente aparenta feições de bode.
[8] Brady é fonte permanente de inspiração. Com base em suas fotografias Griffith atingiu o realismo também na encenação das batalhas da Guerra Civil. Cf. LAWSON, John Howard. Op. cit. p. 48.
[9] Outro cuidado foi revelado na "reprodução histórica do Salão Presidencial" segundo fotografia mostrada em Lincoln: a history, de Nicholas e Hay.
[10] "O nascimento de uma nação é o Velho Testamento que exclui os negros do processo histórico, como raça primitiva, elegendo em construtores da Nação as classes brancas protestantes" Cf. ROCHA, Glauber. O século do cinema. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme/Secretaria da Cultura do MEC, 1983. p. 10.