domingo, 7 de janeiro de 2018

CHAPLIN COMO IMPROVISADO MARUJO DE NAVIO CONDENADO

Considerado em seu todo, Carlitos marinheiro (Shanghaied) não figura entre os títulos notáveis da chapliniana. É o quadragésimo sexto filme estrelado por Charles Chaplin e o vigésimo oitavo que dirigiu. Faz parte do período Essanay, companhia para a qual realizou, em 1915, 14 filmes curtos e lhe serviu como estação de aprendizado. Aí, sempre que podia, burilava o estilo e a linguagem. Com O vagabundo (The tramp) definiu as configurações básicas do personagem que teria por emblema ao longo de quase toda a carreira. Outros títulos dignos de relevo dessa fase são Campeão de boxe (The champion), Carlitos carregador (Work), Senhorita Carlitos (A woman) e O banco (The bank). Os demais, qual Carlitos marinheiro, podem ser classificados como recaídas no terreno das desvairadas comédias físicas características do pioneiro ano de 1914 passado na Keystone de Mack Sennett. Apesar de formalmente pobre, alguns avanços narrativos e estilísticos são observados no título em apreço, principalmente da parte do espectador de boa vontade. O pastelão impera do começo ao fim. Porém, a câmera, sempre fixa, destaca detalhes e vai além das meras composições em planos médios. Os cenários e ambientes se multiplicam sem o temor de confundir o público. Surgem tiradas cômicas, ainda embrionárias, que seriam constantemente retomadas e reelaboradas ao longo da filmografia de Chaplin. Em Carlitos marinheiro o personagem é vítima das velhas e violentas leis de recrutamento marítimo. Para piorar, termina lançado no centro de uma fraude de seguros tramada pelo pai (Wesley Ruggles) da mulher amada (Edna Purviance). Segue apreciação de 1994.







Carlitos marinheiro
Shanghaied

Direção:
Charles Chaplin
Produção:
Jess Robbins
The Essanay Film Manufacturing Company
EUA — 1915
Elenco:
Charles Chaplin, Edna Purviance, Wesley Ruggles, John Rand, Billy Armstrong, Paddy McGuire, Leo White, Fred Goodwins, Lawrence A. Bowes, Bud Jamison, Lee Hill.



Charles Chaplin em 1917


Carlitos marinheiro — também conhecido no Brasil como O marinheiro Carlitos e O herói capataz — é o quadragésimo sexto filme estrelado por Charles Chaplin em um total de 87 e o vigésimo oitavo que dirigiu. Corresponde à décima primeira das 14 realizações de 1915, quando esteve sob contrato da Essanay — companhia que o absorveu ao término da fase pioneira na Keystone Pictures Studio de Mack Sennett em 1914.


Formalmente, Carlitos marinheiro é pobre. Representa uma involução na chapliniana, tendo em vista, acima de tudo, os avanços obtidos em O vagabundo (The tramp) e o imediatamente anterior O banco (The bank), rodados em 1915. Provavelmente, por imposição do público e dos financiadores, Chaplin resolveu retornar à comédia puramente física. São muitos tapas, cacetadas, marretadas, socos e principalmente chutes, sem contar tombos, encontrões, homens lançados ao mar e cargas despencando sobre o lombo de incautos. Não falta ação no sentido mais tosco, característica dos primeiros pastelões ou slapsticks. Ainda assim, considerando-se as peculiaridades da narração e o farto — para a época — emprego de cenários diferenciados em aproximados 27 minutos de exibição, não deixa de ser um empreendimento de relativa complexidade. Para contar a história foram utilizados os exteriores e interiores de uma casa, o cais do porto, um navio — dividido em convés, porão, cozinha e refeitório —, o mar e um pequeno barco de socorro. A câmera, de mirada sempre objetiva e invariavelmente fixa, observa o desenrolar dos eventos em uma sucessão de tomadas de médio alcance no seu quase todo com destaque para alguns planos americanos, primeiros planos e até close-ups.


Carlitos (Charles Chaplin) à espera da garota (Edna Purviance)


Carlitos se apresenta com as configurações do excluído visto em O vagabundo, filme que delineou o personagem. Acidentalmente, protagoniza uma aventura marítima que oculta um golpe tramado por um empreendedor naval desonesto (Ruggles) contra a companhia de seguros. Para entrar na posse da indenização por perdas e danos, pretende provocar o naufrágio de um dos navios da frota que controla. Combina o mal feito com o capitão (Armstrong).


O empreendedor também é pai da garota (Purviance) apaixonada por Carlitos. Evidentemente, não aprova o idílio e o enxota. O frustrado pretendente resolve afogar as mágoas na zona portuária. Sem mais a fazer e desprovido de recursos, é inocentemente cooptado pelo imediato (McGuire) da embarcação visada. Recebe a ingrata e violenta tarefa de arregimentar a força uma tripulação, segundo as convenções das velhas leis marítimas. Estas validavam o alistamento compulsório de desocupados e vagabundos. Os infelizes, postos fora de combate, geralmente recobravam a consciência em alto mar e se viam na situação de aprender os pesados ofícios navais por força de castigos físicos.


Infelizmente, Carlitos também é ludibriado. Finalizada a combinação com o imediato, é compulsoriamente alistado e jogado em uma embarcação condenada. No comando, o despótico capitão utiliza sem piedade o chicote para enquadrar a marujada e forçá-la ao trabalho.



Acima e abaixo: Carlitos (Charles Chaplin) é ludibriado pelo capitão (Billy Armstrong) e o imediato (Paddy McGuire)

Carlitos (Charles Chaplin) e o capitão (Billy Armstrong)


Quase toda a ação de Carlitos marinheiro foi filmada em um cargueiro real. O personagem fracassa em todas as atividades às quais é escalado, de transportador a auxiliar de guincho. É tão inapto que acaba despachando oficiais e marujos ao mar, literalmente. Sobra-lhe a função de ajudante do cozinheiro (Rand), sem melhores resultados. Na hora da refeição, serve aos oficiais a água de lavar pratos — motivo de mais agressões e equívocos. Com Carlitos, a embarcação se transforma em caos. Os melhores momentos decorrem dos efeitos colaterais da agitação marítima sobre o improvisado marinheiro. Desequilibrado com a bandeja, é impulsionado para todos os lados e cômodos sem desperdiçar o conteúdo. Na hora do rancho com os demais desafortunados, é acometido de enjoo. Piora ao ver o companheiro temperar a salada com o combustível da luminária. Algumas dessas gags, posteriormente trabalhadas e aperfeiçoadas, foram utilizadas nos reputados clássicos O imigrante (The immigrant, 1917) e Tempos modernos (Modern times, 1936).


Em meio ao frenético pastelão, Carlitos marinheiro avança para o dramático — se for possível usar esse termo — desfecho. Em terra, a garota tomou ciência do diabólico plano. Embarcou clandestina no navio, na esperança de salvá-lo. Ao descobrir o paradeiro da filha, o pai se desespera. Tomado de remorso, apodera-se de um pequeno barco e parte em alta velocidade na esperança de evitar o pior. Evidentemente, Carlitos e a personagem interpretada por Edna Purviance se encontram a tempo de impedir o desastre. Lançam fora a bomba acionada durante um motim forjado para ocultar a fuga do capitão e do imediato. Estes terminam provando do próprio remédio.


Carlitos (Charles Chaplin) fracassa como auxiliar do operador do guincho

O cozinheiro (John Rand) e o ajudante atrapalhado Carlitos (Charles Chaplin)


Tudo acaba bem. O navio é poupado. Carlitos e a garota são recolhidos pelo empreendedor. Seguem-se manifestações de alívio e admoestações. O humilhado vagabundo aproveita para se vingar. Com um pontapé despacha para o mar o desonesto personagem vivido por Wesley Ruggles.


Carlitos (Charles Chaplin) como garçon é submetido ao desconfortável balanço do navio


Visto hoje, Carlitos marinheiro resiste como relíquia cinematográfica. Para ser convenientemente apreciado, o espectador deve se abstrair e se transportar mentalmente para a época do lançamento — sob o império de outros valores e exigências. A realização faz parte de um período de transição, quando os artistas da tela e respectivos produtos se submetiam às experimentações que resultariam no surgimento de uma gramática e linguagem cinematográficas. Nessa ocasião, o ousado David Wark Griffith começava a colher frutos com o polêmico O nascimento de uma nação (The birth of a nation, 1914). Apesar de representar uma involução na trajetória da formação de Chaplin como cineasta e criador, Carlitos marinheiro não é absolutamente ruim como pretendem os detratores da chapliniana — hoje, legião em crescimento, infelizmente. O filme é um dos recuos que fazem parte dos processos geradores de avanços. Ou, como dizem alguns, está em acordo à "ordem natural das coisas".


A garota (Edna Purviance), o pai trapaceiro (Wesley Ruggles) e Carlitos (Charles Chaplin)

  
No livro Charles Chaplin[1], Carlos Heitor Cony informa que a direção de fotografia de Carlitos marinheiro é de Roland "Rollie" Totheroh. No entanto, segundo o Internet Movie Database (IMDb)[2], Harry Ensign é o responsável pelo ofício.


Vale destacar a atuação de John Rand como cozinheiro.



  
Roteiro: Charles Chaplin. Direção de fotografia (preto e branco): Harry Ensign. Música (inserida em 1999): Robert Israel. Montagem: Charles Chaplin. Assistente de direção: Ernest Van Pelt. Cenários: E. T. Mazy. Som e efeitos sonoros (posteriores): Philip Calvert, Peter Hitchcock. Tempo de exibição: 27 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1994)




[1] CONY, Carlos Heitor. Charles Chaplin. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 67.
[2] INTERNET MOVIE DATABASE. http://www.imdb.com/title/tt0006032/fullcredits?ref_=tt_cl_sm#cast. Acessado em 6 jun. 1994.