domingo, 14 de maio de 2017

O VAGABUNDO DE CHAPLIN EM TRÊS FILMES ANTOLÓGICOS REUNIDOS PELO CRIADOR

Charles Spencer Chaplin foi banido dos Estados Unidos em 1952, no auge das perseguições macarthistas, por uma traiçoeira manobra do todo poderoso John Edgar Hoover, diretor-fundador do FBI. Fixou residência na Europa, inicialmente na Inglaterra natal e definitivamente na Suécia. Em 1958, um ano após Um rei em Nova York (A king in New York) — primeiro trabalho realizado na condição de exilado —, organizou Carlitos em desfile (The Chaplin revue), preciosa peça de antologia. É a reunião de três dos mais significativos filmes que produziu e dirigiu para a First National Pictures, companhia que o abrigou de 1917 a 1923: Vida de cachorro (A dog’s life, 1918), Carlitos nas trincheiras (Shoulder arms, 1918) e Pastor de almas (The pilgrim, 1923). Representam pontos de inflexão na trajetória do cineasta e criador de Carlitos. Com elas, passou à condição de artista plenamente adulto. Deixou de lado a identidade de simples comediante para se tornar senhor no domínio absoluto de sua arte, sensibilizado com as questões sociais, aberto ao humanismo e pacifismo. Também começam, com esses três filmes, os embates com a vertente mais tacanha, retrógrada e oportunista da mentalidade puritana estadunidense, abrigada no conservadorismo religioso, militarismo belicista e nas organizações políticas da extrema direita, que o terão como alvo preferencial durante todo o tempo em que permaneceu nos Estados Unidos. Segue apreciação escrita em 1980.







Carlitos em desfile
The Chaplin revue

Direção:
Charles Chaplin
Produção:
Charles Chaplin
The Roy Export Company
Inglaterra — 1958
Elenco:
Charles Chaplin, Edna Purviance, A. North, A. D. Blake, A. J. Hartwell, Agnes Lynch, Albert Austin, Alfred Reeves,  Anna Hicks, Bert Appling, Beth Nagel, Billy Dul, Bob Wagner, Brand O'Ree, Brownie the Dog, Bruce Randall, Bud Jamison, C. L. Dice, Callie Frey, Carl Herlinger, Carl Jensen, Carlyle Robinson, Catherine Parrish, Cecile Harcourt, Charles Hafler, Charles Knuske, Charles Reisner, Cliff Brouwer, Clyde McAtee, Dave Anderson, Dean Riesner, Della Glowner, Donnabelle Ouster, Dorothy Cleveland, E. Brucker, E. B. Johnson, E. H. Devere, Ed Hunt, Edith Bostwick, Edna Rowe, Edward Miller, Ella Eckhardt, Emily Lamont, Ethel Kennedy, F. F. Guenste, F. S. Colby, Fay Holderness, Florence Latimer, Florence Parellee, Frank Antunez, Frank Liscomb, Fred Everman, Fred Graham, Fred Starr, G. A. Godfrey, G. E. Marygold, George Bradford, George Carruthers, Georgia Sherart, Grace Wilson, Granville Redmond, Guy Eakins, H. Wolfinger, H. C. Simmons, Harry Goldman, Harry Hicks, Henry Bergman, J. Espan, J. Miller, J. Parks Jones, J. F. Parker, J. H. Shewry, J. H. Warne, J. L. Fraube, J. T. Powell, Jack Duffy, Jack McCredie, Jack Shalford, Jack Willis, Jack Wilson, James Griffin, James J. Smith, James McCormick, James T. Kelley, Janet Sully, Jean Johnson, Jerry Ferragoma, Jim Habif, Jim O'Niall, Joe Van Meter, John Lord, John Rand, Kitty Bradbury, L. A. Blaisdell, L. S. McVey, Laddie Earle, Lee Glowner, Lillian Morgan, Lottie Smithson, Louis Fitzroy, Louis Orr, Louis Troester, Loyal Underwood, M.J. Donovan, M. J. McCarthy, Mabel Shoulters, Mack Swain, Mai Wells, Margaret Cullington, Margaret Dracup, Marion Davies, Mark Faber, Martha Harris, Mary Hamlett, Mel Brown, Mickey Daniels, Mildred Pitts, Minnie Chaplin, Minnie Eckhardt, Miss Evans, Monta Bell, Mrs. C. Johnson, Mrs. Rigoletti, Mut, N. Tahbel, O. E. Haskins, Oliver Hall, Paul Mason, Paul Wilkins, Phyllis Allen, Ray Hanford, Raymond Lee, Richard Dunbar, Rob Wagner, Robert McKenzie, Robert Traughbur, Rose Wheeler, S. D. Wilcox, S. W. Williams, Sam Lewis, Sarah Barrows, Sarah Rosenberg, Slim Cole, Syd Chaplin, Ted Edwards, Theresa Gray, Thomas Riley, Tiny Ward, Tom Hawley, Tom Madden, Tom Murray, Tom Ray, Tom Wilson, W. Herron, W.E. Graham, W. G. Wagner, W. J. Allen, Wellington Cross, William Carey, William Hackett, William White.



Charles Chaplin e o francês que o influenciou: Max Linder



Charles Chaplin foi banido dos Estados Unidos em 1952. Nessa condição, realizou na sua Inglaterra natal, em 1957, Um rei em Nova York (A king in New York). No ano seguinte organizou Carlitos em desfile — uma das mais preciosas peças de antologia do cinema. Reúne três absolutas obras mestras, por ele dirigidas, roteirizadas, produzidas, montadas e, posteriormente, musicadas: Vida de cachorro (A dog’s life, 1918), Carlitos nas trincheiras (Shoulder arms, 1918) e Pastor de almas (The pilgrim, 1923). Formam com Idílio campestre (Sunnyside, 1919), Dia de prazer (A day’s pleasure, 1919), O garoto (The kid, 1921), Os ociosos (The idle class, 1921) e Dia de pagamento (Pay day, 1922) o conjunto de oito títulos realizados para a First National Pictures, companhia que o acolheu após encerramento do contrato com a Mutual.


Vida de Cachorro — também conhecido no Brasil como Uma vida de cão — inaugura a parceria de Chaplin com a First National. A estrutura simples não impediu Louis Delluc de classificá-lo como a “Primeira obra de arte consumada de toda a cinematografia”. Carlitos nas trincheiras — outro título no Brasil é Ombro, armas — é um grito bem-humorado contra o absurdo da guerra. É o primeiro libelo antibelicista e antimilitarista do cinema. Fez o maior sucesso entre os soldados que lutaram no primeiro grande conflito mundial. Pastor de almas — ou O peregrino para os brasileiros — encerra a participação de Chaplin na First National. Carlos Heitor Cony o aponta como o melhor trabalho do criador de Carlitos, por evitar os “desvios discursivos” que conduziam a “derramanentos” carregados de sentimentalismo e emocionalismo[1]. Um dos pontos altos, com o personagem na encenação de um sermão sobre Davi e Golias, é autêntico suprassumo da mímica e poesia em imagens. É das sequências mais marcantes de todo o cinema e da pantomima.


Vida de cachorro, Carlitos nas trincheiras e Pastor de almas estão entre as peças centrais da chapliniana. Representam um ponto de inflexão na trajetória do criador e personagem. Com elas, pode-se dizer, Chaplin se torna de fato artista adulto, total, socialmente sensível e pleno senhor de sua criação. O humor e o drama ganham o apoio da visão crítica, carregada de preocupações humanistas e pacifistas. Também começam, com essa tríade, os problemas com a vertente mais tacanha, retrógrada e oportunista da consciência puritana estadunidense. O embate lhe custará caro: incontáveis ataques na imprensa por moralistas, patriotas aguerridos, falcões militaristas e o banimento no auge da perseguição macarthista. Chaplin acabava de partir em excursão pela Europa em 1952, com a finalidade de promover Luzes da ribalta (Limelight). Recebeu no navio a informação de que fora expulso dos Estados Unidos por pressão de John Edgar Hoover, diretor do FBI.


Vida de Cachorro apresenta o Carlitos ingênuo, justo, sofredor e esperançoso[2], pronto a atingir diretamente as emoções do espectador. É a primeira vez que aparece “Como personagem social, (...) como réplica à sociedade. A partir daí (...) vai ser exatamente o cão abandonado, o inadaptado, posto à margem da sociedade como o vagabundo e o poeta que nele também existem. (...). Será o rafeiro para quem se fecham todas as portas, que geme de gozo sempre que encontra uma mão carinhosa, e que já não se espanta, quando, passados alguns instantes, volta a encontrar-se sozinho”[3].


Carlitos (Charles Chaplin) e o cão Brownie


O começo o apresenta desempregado e desamparado. Tenta adormecer num terreno baldio, mas é despertado e acossado por um policial (Wilson). Adiante, numa agência de trabalho, disputa ferozmente uma vaga, espremido por um batalhão de desempregados. Todos lhe passam a frente. Quando pensa que será, enfim, atendido, o expediente é bruscamente encerrado. O tumulto na repartição encontra paralelo na rua. Uma matilha faminta disputa ferozmente um osso. O cão mais fraco leva a pior. Carlitos o salva e adota. Juntos, lutarão pela sobrevivência. Une-os a condição de abandonados e perseguidos. Quando adormecem, apresentam idênticos sonhos e delírios. Famintos, roubam salsichas em um restaurante enquanto assistem ao número de uma cantora decadente (Purviance), com a capacidade de provocar torrencial choradeira nos presentes. Logo ela se unirá ao vagabundo e ao cão no infortúnio.


No retorno ao terreno baldio, uma carteira recheada de dinheiro é encontrada. Eufórico, Carlitos volta ao restaurante. Chama a atenção de dois ladrões (Riesner e Austin), que se apoderam do achado. Segue-se a luta para reavê-lo.


Edna Purviance como a cantora lírica, o cão Brownie e Charles Chaplin no papel de Carlitos


O final, feliz e irônico, é precedido por um letreiro: “Quando o sonho se torna realidade”. Carlitos, agricultor, semeia o campo. Casou-se com a cantora. O cão é pai feliz de uma prole numerosa. Tranquilos, felizes e seguros gozam a vida à qual todos por direito deveriam ter. O epílogo é a imagem da utopia chapliniana.


Muitas cenas e sequências de Vida de cachorro são antológicas: Carlitos dorme ao relento e veda o buraco da cerca por onde passa o vento frio; desamarra as botas do policial; sofre com o tumulto na agência de empregos; derrama-se em lágrimas diante da apresentação dramática da cantora; o cão, aconchegado nas vestes do personagem, com a cauda descoberta a tamborilar o corpo de uma mulher; a rajada de metralhadora no restaurante, causando a circense destruição de todos os pratos; e a semeadura da terra.


Mas nada se compara à mímica executada por Carlitos — a mais longa da carreira de Chaplin — na tentativa de reaver a carteira roubada. Encontra os ladrões jogando cartas. Protegido por uma cortina, desacorda um dos deles. Rápida e sorrateiramente o equilibra, passando seus próprios braços sob as axilas do meliante. O outro, nada percebe. Continua a jogar normalmente com o comparsa desmaiado. Este, inclusive, segue bebendo. As mãos de Carlitos manuseiam cartas, copos, imitam gestos e tentam retirar a carteira do bolso do gatuno.


Carlitos (Charles Chaplin) e o cão Brownie


Carlitos nas trincheiras segue a Vida de cachorro. A princípio, não contava com o apreço de Chaplin. Chegou a pensar em lançá-lo à lata do lixo. Se essa obra máxima foi concluída, os agradecimentos devem ser creditados a Douglas Fairbanks. Este ficou totalmente sensibilizado e alegre diante do material. Assim, Chaplin se convenceu de que suas suspeitas sobre a qualidade do filme eram infundadas. Ironicamente, graças a Carlitos nas trincheiras, recebeu o primeiro grande elogio: Louis Delluc e Elie Faure o compararam a Shakespeare.


Carlitos nas trincheiras não é um filme de guerra segundo as convenções. Mais propriamente, é uma realização a respeito da guerra. Realizado no último ano da primeira grande conflagração mundial, estreou em 1919 — três meses antes da assinatura do Tratado de Versalhes. Não faz a apologia do militarismo e do belicismo como desejavam os falcões patriotas. Caíram com garras afiadas sobre a peça e o criador. Antes de tudo, aborda o cotidiano nada glorioso dos soldados nas trincheiras e quartéis, sem se importar com nacionalidades. A eles o filme é dedicado. Os combatentes compreenderam imediatamente, mais que qualquer agenciador de recrutamentos, as intenções do realizador.


Durante a Segunda Guerra Mundial, Chaplin se engajou de corpo e alma contra a barbárie nazista. Fez corajosa campanha pela abertura de uma frente a favor do fortalecimento da Rússia — que suportava sozinha o peso maior do conflito — e com o fim de aliviar o sufoco dos aliados no ocidente, praticamente engolfados pelos alemães. Por isso, terminada a guerra, será acusado de simpatizante do comunismo. Entretanto, "Não se sentiu comprometido" com a Primeira Grande Guerra, segundo Carlos Heitor Cony: Chaplin “Não tinha lados. Era uma guerra dos outros. Mas não ficaria insensível e alheio ao horror do sangue derramado. Fez a sua luta, travou sua batalha. Apesar de sua visceral fobia a tudo o que veste farda, (...) faria um filme dedicado ao soldado. Não ao (...) aliado, mas (...) ao homem-soldado, independente de (...) pátria e (...) missão. A revolta contra os aproveitadores do sentimento patriótico, que impelem chefes de família a matar outros chefes de família — é cruelmente analisada e ridicularizada”[4].


Charles Chaplin, à esquerda, como combatente da Primeira Guerra Mundial


A noção do homem comum, marido e pai, transformado em matador, foi, de início, a identidade inicial pensada para o personagem. John Howard Lawson lembra que o projeto inicial de Carlitos nas trincheiras considerou a necessidade de uma introdução que apresentasse o cotidiano do recrutado: um trabalhador com família para sustentar. Abriu mão da ideia por considerá-la chocantemente contraditória com o tratamento da guerra como “loucura fantástica”[5]. Substituiu-a por uma sequência rápida: o protagonista, totalmente exaurido pelo treinamento militar, retorna cambaleante à caserna e desaba sobre a cama para um merecido repouso. A seguir, um fade-out se abre em íris e revela uma trincheira em algum campo de batalha na Europa.


A partir daí o espectador assiste ao sonho do soldado Carlitos. É a deixa para Chaplin fazer humor com a guerra e revelar o cotidiano nada heróico e glorioso dos homens atirados ao front, como se fossem buchas de canhão. Carlitos nas trincheiras é sátira ousada e violenta. Para Louis Delluc, é ”Um filme de morder as mãos, na falta de alguém para morder, um filme que uivava para a lua, terrivelmente, mas ao mesmo tempo uma obra que justifica tudo o que se pode esperar do cinema. Estamos no domínio faustoso do ilimitado”[6].


Chove ininterruptamente. A trincheira úmida é invadida pela lama. Passam-se os dias e nada acontece. Os soldados se sentem abandonados, principalmente Carlitos. É o único que não recebe cartas. Contenta-se com a leitura das notícias que chegam aos camaradas. Somente a entrega do correio quebra a rotina do cotidiano aborrecido. Por fim, uma missão, apesar de arriscada, voluntaria o personagem vivido por Chaplin. Sozinho, deve adentrar, como espião, o coração do território inimigo.


O combatente (Charles Chaplin) equipado para as batalhas


Carlitos rasteja e se disfarça de árvore. Em sonho, avança rumo à glória e ao heroísmo, para se tornar homem pleno segundo a propaganda do recrutamento. Derrota o inimigo. Aprisiona todo um destacamento e o Estado Maior Alemão, inclusive o Kaiser e herdeiro. É o herói absoluto do conflito. Sozinho pôs fim à guerra. De quebra, como convém às melhores narrativas épicas, salva uma jovem (Purviance) prisioneira. Porém, é tudo imaginação. O supersoldado não existe. Não passa de um pobre e comum infante, perdido entre iguais, lançado em condições degradantes e distantes da glória. Continua solitário e triste, acantonado na trincheira úmida. Pensa na paz, no lar, na família e no trabalho que lhe foram tomados. Teve a vida totalmente anulada pela guerra.


Realismo, lirismo e farsa se somam em Carlitos nas trincheiras. Chaplin mostra a guerra como ilusão cruel, inútil, ceifadora de sonhos e vidas. Com destemor e contra a corrente do patriotismo armado, revela: “A ilusão do vagabundo é a maior mentira da sociedade burguesa, a mentira de que a guerra é heróica e moralmente justificável”[7].


Infelizmente, Carlitos nas trincheiras não pode ser realizado conforme o pretendido. O argumento logo se tornou público. Imediatamente, pressões de todos os lados tentaram inviabilizar o projeto. Cecil B. De Mille, notório falcão da direita em Hollywood, alertou Chaplin sobre a temeridade de se realizar uma comédia passada no front — premissa que se mostrou falsa quando o filme se tornou o preferido dos soldados. Ainda assim, muitas passagens foram eliminadas; outras tiveram a veemência atenuada. As alterações devem ser creditadas ao próprio Chaplin — inseguro diante das acusações de antipatriotismo — e à First National — que recusou a primeira montagem. Ao fim do processo, as cinco bobinas originais — cerca de 50 minutos — foram reduzidas a três, finalizando em aproximadamente meia hora de exibição quando do lançamento.


O bravo combatente (Charles Chaplin) pronto para sair em missão no território inimigo

  
O epílogo — glorioso e irônico — foi totalmente alterado. Na origem, as últimas cenas mostrariam um banquete no qual lideranças aliadas e outras sumidades renderiam homenagem ao herói. O matemático Henri Poincaré o saudaria com discurso. Seguiria o agradecimento de Carlitos. Porém, seria atropelado, com toda a falta de cerimônia, pelo Rei da Inglaterra. O Monarca lhe arrancaria um botão da farda para guardar como lembrança.


O vagabundo de Vida de cachorro, convertido em agricultor, é desapropriado de seus sonhos em Carlitos nas trincheiras. Desmobilizado, retorna à pátria e não encontra lugar. Permanece excluído, como sempre. É o que se vê em O pastor de almas. Carlitos é presidiário condenado a trabalhos forçados. Consegue escapar e roubar as vestes de um pregador (Lee). Chega à estação ferroviária e, ao acaso, escolhe uma cidade para refúgio. Viaja sobressaltado, ao lado de um xerife (Murray). No destino, é reconhecido como o pastor aguardado por todos, inclusive pelo diácono (Swain). Entre a comitiva de boas-vindas está a mocinha (Purviance) por quem se apaixona. É filha da senhora (Bradbury), que o hospeda.


Charles Chaplin: de presidiário evadido ao papel de pregador religioso

  
Sem escapatória ao beco sem saída no qual se meteu, só resta mostrar que é um clérigo respeitável. Dá o melhor de si. Conquista a credibilidade dos fiéis. Resolve muitos problemas espirituais. No púlpito, durante o culto, assombra a todos com um sermão vivamente ilustrado sobre o embate entre Davi e Golias, pelo qual recebe muitas congratulações e uma recepção festiva na casa da anfitriã. Ninguém desconfia de nada. Porém, mostra que continua o mesmo ao verificar com avidez o peso do saco de moedas arrecadadas durante a função religiosa.


Tudo corre muito bem, até o aparecimento de um ladrão (Riesner) — antigo companheiro de prisão que o reconhece de pronto. Apresenta-se publicamente como amigo e parabeniza-o pelo "genial golpe" aplicado na comunidade. Julga-se protegido a ponto de tomar liberdades excessivas com os fiéis, principalmente as mulheres. Assim, levanta a desconfiança do xerife.


Charles Chaplin como pastor


Após a festa, invade a casa da hospedeira para roubar as contribuições do rebanho. Carlitos o aguardava. Domina-o e recupera o dinheiro. Entretanto, a essa altura o xerife descobriu tudo. Aprisiona o pastor que, sem saída, revela a identidade, inclusive para a mocinha que intercede por ele.


O xerife percebe algo de bom no vagabundo. Ao invés de prendê-lo, escolta-o à fronteira com o México. Manda-o ao outro lado, para colher uma flor. Aliviado, pensa que Carlitos entendeu o recado para aproveitar a deixa e escapar. Mas ele é a plena personificação da inocência. Volta com a flor e alcança o já distante xerife. São necessárias novas explicações até o entendimento do plano. Porém, ironicamente, Carlitos não vai a lugar algum. Se não pode permanecer nos Estados Unidos, no México também não. É afugentado por um tiroteio. O pastor de almas termina com a imagem ambígua do personagem caminhando “equilibrado” na fronteira, um pé no lado estadunidense, outro no mexicano. O vagabundo é, na forma mais dura e crua, um homem sem pátria. Aliás, como Chaplin sempre foi.


O pastor de almas valeu a Chaplin a acusação de anticlerical e mais um conjunto de sólidas inimizades. Os puritanos fundamentalistas se lançaram contra ele. Em nada gostaram da sátira. Na Pensilvânia, as exibições foram proibidas sob a alegação de que sacerdotes e fiéis eram gratuitamente ridicularizados. Os religiosos encontraram oportunidade para se vingar quando os rumorosos casos de divórcio de Chaplin vieram a público, com ampla repercussão na imprensa.


Na fronteira dos EUA com o México: o xerife (Tom Murray) e o pastor desmascarado (Charles Chaplin)


Charles Chaplin e Edna Purviance atuaram juntos pela última vez em O pastor de almas. A seguir, no mesmo ano, seria apenas o diretor do lendário e pouco visto Casamento ou luxo (A woman of Paris: a drama of fate, 1923) — também chamado, no Brasil, de Opinião pública e A mulher de Paris — concebido especialmente para ela.


Chaplin domina integralmente a cena em O pastor de almas. Mas não a ponto de ofuscar a ótima caracterização de Mack Swain como o diácono.



  
Música: Charles Chaplin. Arranjos: Eric James, Eric Spear. Assistente de Charles Chaplin: Jerome Epstein (não creditado). Montagem: Derek Parsons, Paul Davies. Gravação de som: Bob Jones, Eric Stokl, J. J. Y. Scarlett, Wally Milner. Narração: Charles Chaplin. Roteiro: Charles Chaplin. Direção musical: Eric Rogers. Mixagem de som: Westrex Recording System e RCA Sound System. Tempo de exibição: 128 minutos.

Vida de cachorro/A dog’s life — First National Pictures, EUA, 1918. Direção, produção, roteiro e montagem: Charles Chaplin. Direção de fotografia (preto e banco): Roland “Rollie” Totheroh. Música (1957): Charles Chaplin. Cenografia: Charles D. Hall (não creditado). Assistente de direção: Charles Reisner (não creditado). Segundo operador de câmera: Jack Wilson (não creditado). Confecção de figurinos: Mother Vinot (não creditada). Motorista de Charles Chaplin: Toraichi Kono (não creditado). Secretária de Charles Chaplin: Nellie Bly Baker (não creditada). Publicidade: Elsie Codd (não creditado). Mut: Charles Gee. Assistente para Charles Chaplin: Tom Harrington. Elenco: Charles Chaplin e os não creditados J. L. Fraube, Jim Habif, Oliver Hall, Fay Holderness, Bud Jamison, Jean Johnson, J. Parks Jones, James T. Kelley, John Lord, M.J. McCarthy, James McCormick, L. S. McVey, Edward Miller, J. Miller, Lillian Morgan, Mut, Jim O'Niall, Brand O'Ree, Florence Parellee, J.F. Parker, Edna Purviance, Bruce Randall, Granville Redmond, Alfred Reeves, Charles Reisner, Mrs. Rigoletti, Thomas Riley, Sarah Rosenberg, H. C. Simmons, Lottie Smithson, Fred Starr, Janet Sully, N. Tahbel, Loyal Underwood, Bob Wagner, Rob Wagner, William White, Grace Wilson, Tom Wilson, Brownie the Dog. Sistema de mixagem de som (1958): Westrex Rcording System. Tempo de exibição: 36 minutos.






Carlitos nas trincheiras/Shoulder arms — First National Pictures, EUA, 1918. Direção, produção e roteiro: Charles Chaplin. Direção de fotografia (preto e branco): Roland “Rollie” Totheroh. Música (1957): Charles Chaplin. Montagem: Charles Chaplin (não creditado). Cenografia: Charles D. Hall (não creditado). Assistente de direção: Charles Reisner (não creditado). Segundo operador de câmera: Jack Wilson (não creditado). Confecção de figurinos: Mother Vinot (não creditado). Compilação musical para os créditos (1957): Eugene Conte (não creditado). Motorista de Charles Chaplin: Toraichi Kono (não creditado). Secretária de Charles Chaplin: Nellie Bly Baker (não creditada). Publicidade: Elsie Codd (não creditada). Assistente para Charles Chaplin: Tom Harrington (não creditado). Sistema de mixagem musical (1958): Westrex Recording System. Elenco: Edna Purviance, Charles Chaplin, Syd Chaplin, Loyal Underwood, Henry Bergman, Tom Wilson, Albert Austin, Jack Wilson e os não creditados W. J. Allen, L. A. Blaisdell, A. D. Blake, Cliff Brouwer, E. Brucker, F. S. Colby, Slim Cole, Wellington Cross, E. H. Devere, C. L. Dice, M. J. Donovan, Guy Eakins, Fred Everman, Mark Faber, G. A. Godfrey, Harry Goldman, Fred Graham, W. E. Graham, James Griffin, William Hackett, Ray Hanford, A. J. Hartwell, O. E. Haskins, Tom Hawley, Carl Herlinger, W. Herron, Ed Hunt, E. B. Johnson, J. Parks Jones, Charles Knuske, Sam Lewis, Tom Madden, G. E. Marygold, Clyde McAtee, Robert McKenzie, A. North, Louis Orr, J. T. Powell, John Rand, Jack Shalford, J. H. Shewry, Joe Van Meter, W. G. Wagner, Tiny Ward, J. H. Warne, Jack Willis. Tempo de exibição: 45 minutos.







Pastor de almas/The pilgrim — First National Pictures, EUA, 1923. Direção, produção e roteiro: Charles Chaplin. Direção de fotografia (preto e branco): Roland “Rollie” Totheroh. Montagem: Charles Chaplin. Cenografia: Charles D. Hall (não creditado). Assistente de direção: Charles Reisner (não creditado). Segundo operador de câmera: Jack Wilson (não creditado). Confecção de figurinos: Mother Vinot (não creditado). Motorista de Charles Chaplin: Toraichi Kono (não creditado). Secretária de Charles Chaplin: Nellie Bly Baker (não creditada). Publicidade: Elsie Codd (não creditada). Assistente de Charles Chaplin: Tom Harrington (não creditado). Sistema de mixagem de som (1958): Westrex Recording System. Elenco: Edna Purviance, Charles Chaplin, Syd Chaplin, Mai Wells, Dean Riesner, Charles Reisner, Tom Murray, Kitty Bradbury, Mack Swain, Loyal Underwood, Henry Bergman e os não creditados Phyllis Allen, Frank Antunez, Sarah Barrows, Monta Bell, Edith Bostwick, George Bradford, William Carey, George Carruthers, Mickey Daniels, Marion Davies, Laddie Earle, J. Espan, Miss Evans, Callie Frey, Della Glowner, Lee Glowner, Theresa Gray, F. F. Guenste, Charles Hafler, Mary Hamlett, Cecile Harcourt, Martha Harris, Anna Hicks, Harry Hicks, Carl Jensen, Mrs. C. Johnson, Ethel Kennedy, Emily Lamont, Florence Latimer, Raymond Lee, Frank Liscomb, Agnes Lynch, Paul Mason, Jack McCredie, Beth Nagel, Donnabelle Ouster, Catherine Parrish, Mildred Pitts, Tom Ray, Carlyle Robinson, Edna Rowe, Georgia Sherart, Mabel Shoulters, James J. Smith, Robert Traughbur, Louis Troester, Joe Van Meter, Rose Wheeler, S.D. Wilcox, Paul Wilkins, S.W. Williams, H. Wolfinger. Tempo de exibição: 47 minutos.






(José Eugenio Guimarães, 1980)



[1] CONY, Carlos Heitor. Charles Chaplin. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p 98.
[2] Cabe lembrar que nem sempre o personagem do vagabundo apresenta personalidade assim tão nobre.
[3] ESCUDERO, Garcia. Cinema e problema social. Lisboa: Aster, sd. p. 278. Parênteses de José Eugenio Guimarães.
[4] CONY, Carlos Heitor. Op. Cit. p. 44.
[5] LAWSON, John Howard. O processo de criação no cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 63.
[6] Ibidem.
[7] Ibidem.