domingo, 21 de outubro de 2018

LIBERDADE RELIGIOSA E DE CONSCIÊNCIA NA REVOLUÇÃO FRANCESA: AS MÁRTIRES DE COMPIÈGNE

A Revolução Francesa está em curso. O movimento atinge o auge da radicalização durante o Período de Terror imposto por Robespierre. O clero e as ordens religiosas sofrem dura perseguição. Templos, conventos e terras da Igreja são nacionalizados. Em 17 de julho de 1794, vinte e uma freiras carmelitas acusadas como contrarrevolucionárias e fanáticas são conduzidas a Paris e guilhotinadas na Place de la Nation. O acontecimento, jamais esquecido, galvanizou o imaginário popular. As religiosas, passadas à História como Mártires de Compiègne, foram imortalizadas no livro La dernière à l'echafaud, de Gertrud von Le Fort, publicado em 1931. Na segunda metade dos anos 40 o célebre intelectual católico francês Georges Bernanos é contratado pelos cineastas Philippe Agostini e Raymond Leopold Bruckberger para adaptar a obra ao cinema. O roteiro, concluído em 1947, é rechaçado por ser excessivamente pessimista e trágico. Pretendia-se abordagem mais sóbria e realista dos eventos. Bernanos, falecido em 1948, nada pode fazer. O trabalho intitulado Le dialogue des Carmélites foi publicado em 1949. Atraiu de imediato os interesses do teatro e da ópera. Transformado em libreto, mereceu sucessivas encenações nos palcos italianos e franceses durante os anos 50. Diante de tanta visibilidade, Agostini e Bruckberger retomaram, em 1959, o projeto do filme. Eliminaram a angustiante densidade dramática do script original em prol de tratamento menos emotivo e estilizado. Assim veio à luz a interessante e atualmente rara coprodução franco-italiana Assim Deus mandou (Le dialogue des Carmélites/I dialoghi delle Carmelitane, 1960). Valorizado pelo trabalho de câmera e desempenho das atrizes, é libelo a favor da liberdade de consciência e elogio à coragem em tempos politicamente conturbados e dominados pelo medo. Por mais que o desenvolvimento peque pelo excesso de contenção, jamais deixa o espectador indiferente — mesmo aquele dominado pelo mais duro posicionamento anticlerical.






Assim Deus mandou

Le dialogue des Carmélites/I dialoghi delle Carmelitane

Direção:
Philippe Agostini, Raymond Leopold Bruckberger
Produção:
Jules Borkon
Champs-Élysées Productions, Titanus
França, Itália — 1960
Elenco:
Jeanne Moreau, Alida Valli, Madeleine Renaud, Pascale Audret, Pierre Brasseur, Jean-Louis Barrault, Anne Doat, Georges Wilson, Pierre Bertin, Claude Laydu, Judith Magre, Simone Angèle, Pascale de Boysson, Jacqueline Dane, Paula Dehelly, Hélène Dieudonné, Yvette Etiévant, Anouk Ferjac, Sophie Grimaldi, Lydia Lester, Margo Lion, Nicole Polack, Hélène Vallier, Lucien Arnaud, Camille Guérini, Renaud Mary, Lucien Raimbourg, Albert Rémy, Daniel Ceccaldi e os não creditados Franca Bettoia, Pascal Mazzotti, Claire Olivier, Julien Verdier, Dominique Zardi.



Os diretores Philippe Agostini e Raymond Leopold Bruckberger; à direita, o escritor e roteirista Georges Bernanos 


Premiado na católica Espanha franquista — Jeanne Moreau assegurou os Fotogramas de Prata de Melhor Atriz Estrangeira e André Bac recebeu o Sant Jordi pela Melhor Direção de Fotografia em Filme Estrangeiro —, Assim Deus mandou é filme discreto, sóbrio sincero e despojado. A arquitetura descarta efeitos, como se estivesse de acordo com as rígidas condições da clausura das freiras carmelitas retratadas. A Ordem do Carmo protagoniza capítulo dos mais tensos e violentos da Revolução Francesa, por contradizer as disposições anticlericais do movimento — acentuadas durante o Período de Terror imposto pelo “Incorruptível” Maximilien François Marie Isidore de Robespierre.


Ao norte de Paris, na cidade de Compiègne, as carmelitas do convento local são despejadas e aprisionadas depois de suportar aproximados cinco anos de assédio dos revolucionários. Apesar dos riscos, não juram fidelidade à República. Permanecem obedientes aos ordenamentos religiosos e às próprias convicções. Acusadas como contrarrevolucionárias e fanáticas, foram conduzidas à Place de La Nation, em Paris, e guilhotinadas em 17 de julho de 1794 — dez dias antes da queda do gabinete de Robespierre. Vinte e uma freiras ofereceram as cabeças aos executores. Passaram à história como as Mártires de Compiègne.


Jeanne Moreau no papel de madre Marie de l'Incarnation
Imagem de divulgação 


Os antecedentes factuais do caso são obscuros. A rotina monástica descrita pelo filme é fictícia. Sobreviveram poucos registros escritos. Porém, a tradição oral acerca do drama se perpetuou — alimentada pelas reminiscências de dois observadores privilegiados: o conselheiro espiritual do convento (Wilson) e a madre Marie de l'Incarnation (Moreau). Esta é escolhida pelas circunstâncias para o desconfortável papel de testemunha expiatória do supremo sacrifício das companheiras. Também simbolizará o ideal de resistência da ordem.


Em geral, Assim Deus mandou louva a liberdade de consciência em situações dominadas por intensas convulsão e repressão políticas. Infelizmente, questões específicas da Revolução foram relegadas à superfície em decorrência da origem católica do texto que alimentou o roteiro final elaborado pelos diretores Philippe Agostini e Raymond Leopold Bruckberger: o script de Georges Bernanos adaptado da novela La dernière à l'echafaud, de Gertrud von Le Fort.


A realização de Agostini e Bruckberger conta história de martírio no sentido cristão do termo e em acordo com variados exemplos registrados pela História. Mal habituadas às contradições profanas do mundo exterior convulsionado que as rodeia, as carmelitas de Compiègne se mostram humanamente frágeis quando se julgavam fortalezas talhadas pela sacralidade da clausura. Cada qual, de maneira específica, teme a insegurança proporcionada pela mudança político-social e a concreta possibilidade da morte. O medo, sempre presente, as envolve cruelmente. Enfrentam duras provações. Intimamente sabem: ao lado da vulnerabilidade, do terror e do desconforto, há o dado da fé que as encoraja e fortalece com altivez. Além do mais, formam uma comunidade integrada em que pesem os diferentes atributos individuais.


Pascale Audret como Blanche de La Force ou noviça Blanche de l'Agonie du Christ

  
Por mais que a realização amargue os problemas decorrentes do desenvolvimento morno, jamais deixa o espectador indiferente — mesmo aquele revestido pelo mais duro anticlericalismo. As freiras enfrentam dilemas próprios de toda a humanidade. Suportam as agruras do século conturbado, pouco propenso à compreensão e à tolerância.


As origens literárias do filme se devem inicialmente à romancista alemã Gertrud von Le Fort. Nascida e educada no protestantismo, converteu-se à fé católica aos 50 anos. É comumente relacionada entre os grandes autores cristãos. Atraída pela história das Mártires de Compiègne, publicou, em 1931, o livro Die letzte am schafott, mais conhecido pelo título francês La dernière à l'echafaud — “A última no cadafalso”, conforme tradução literal. Na segunda metade dos anos 40, o texto atraiu a atenção dos cineastas Philippe Agostini (francês) e Raymond Leopold Bruckberger (suíço). Encomendaram, em 1947, um roteiro ao renomado intelectual e escritor católico francês Georges Bernanos. Daí surgiu peça que enfatiza os diálogos centrados nos dilemas de consciência. Também se presta, em sentido mais lato, como manifesto em prol da liberdade de culto de qualquer credo religioso.


Desafortunadamente, Agostini e Bruckberger refutaram o roteiro. Bernanos faleceu no ano seguinte. Em benefício de sua família, o texto foi publicado em 1949 com o título Le dialogue des Carmélites pelo editor Albert Béguin. Em 1952 chama a atenção do diretor teatral Jacques Hébertot e chega aos palcos pelo esforço do encenador Marcelle Tassencourt. Em pouco tempo o dramaturgo italiano Flavio Testi produziu o libreto que servirá de base à celebrada ópera de três atos e 12 cenas de Francis Poulenc, encenada no Scala de Milão em 1957, com aproveitamento de muitos diálogos originais de Bernanos. Poulenc, nesse mesmo ano, monta na Ópera de Paris a versão francesa adaptada integralmente de Le dialogue des Carmélites.


Madre Marie de l'Incarnation (Jeanne Moreau)


É notória a visibilidade alcançada pelo roteiro de Bernanos ao longo dos anos 50. Diante dessa evidência, Philippe Agostini e Raymond Leopold Bruckberger retomam o projeto do filme abortado com a morte do escritor. Após alterações no script original — o pessimismo trágico característico do autor cede lugar à abordagem mais realista —, iniciaram as filmagens em 1959. A angustiante densidade dramática da exposição foi reduzida. Privilegiou-se um tratamento mais direto, pouco emotivo — quase seco — e menos estilizado.


Maio de 1789: a Revolução está em curso. As jovens Blanche de La Force (Audret) e Marie-Geneviève Meunier (Doat) entram como noviças para o convento das carmelitas de Compiègne. Adotam os nomes de Blanche de l'Agonie du Christ e Constance de Saint-Denis. Esta, alegre e jovial, sente-se feliz pela oportunidade de dedicar a vida à rígida austeridade monástica. A outra, insegura e temerosa, tem, desde a infância, dificuldades para conviver com a realidade e é sobressaltada pelo sempre presente medo da morte. O convento lhe oferece a oportunidade de um refúgio seguro. Para agravar a situação, é filha do Marquês de La Force (Bertin), — perseguido pelos revolucionários.


As freiras celebram a chegada das noviças Blanche de l'Agonie du Christ (Pascale Audret) e Constance de Saint-Denis (Anne Doat)


Blanche é confiada aos cuidados pessoais da Madre Superiora (Renaud), que logo a adverte: o convento não é refúgio e a existência do lugar é função das religiosas no esforço de preservá-lo como se isso fosse missão divina. É local de louvação e provação diárias. Porém, um fato inesperado abala a confiança das noviças e demais freiras. A priora adoece sem possibilidades de cura. Ao contrário do esperado, não se conforma à situação. Enfrenta o desafio da morte aos gritos, horrorizada com a incerteza quanto à recompensa celeste. Lança imprecações a Deus do qual se sente abandonada. O desenlace, considerado indigno, aumenta as incertezas de Blanche e o temor à morte se afirma de forma mais enfática. Ainda assim, põe-se à prova — conforme revela ao irmão Chevalier de la Force (Laydu): alega que encontrou a felicidade entre as carmelitas.


A Revolução se aprofunda. Os De La Force são perseguidos e desapropriados de todas as posses. O Marquês é guilhotinado; o filho foge. As relações dos familiares de Blanche com o convento levantam suspeitas do Comissário da República (Brasseur). A vigilância aumenta depois da destituição do pároco e conselheiro espiritual das carmelitas. Preocupadas, as freiras tomam ciência do medo que domina a França e da insegura situação dos religiosos. Constance estranha o fato de ninguém ajudá-los. A nova superiora, madre Thérèse de Saint-Augustin (Valli), afirma: é o tempo dos mártires. Por sua vez, madre Marie de l'Incarnation advoga para as carmelitas o sacrifício das próprias vidas em prol da salvação do país do vendaval revolucionário. É advertida por Thérèse: “Ninguém tem o direito de se tornar mártir; tal escolha cabe exclusivamente a Deus”.


Pascale Audret, Jeanne Moreau e Pierre Brasseur nos respectivos papéis de Blanche de l'Agonie du Christ, Marie de l'Incarnation e o Comissário da República

  
Os acontecimentos se atropelam. Proíbem-se as ordens religiosas. As propriedades da Igreja são nacionalizadas. Lançadas ao mundo, as freiras são obrigadas a abandonar os trajes habituais e jurar fidelidade à República. Diante da arrogância zombeteira do Comissário, madre Marie de l'Incarnation assegura que as carmelitas continuarão a servir, não importam os trajes, muito menos a crescente necessidade de mártires reivindicada pelo clamor popular. “Em tempos como agora, a morte nada significa”, assegura a autoridade. Ela retruca: “A vida não é nada quando está tão degradada”.


Diante da ausência de madre Thérèse, Marie aproveita os últimos momentos no convento para propor um voto unânime de martírio às companheiras. Inicialmente, Constance vacila. Muda de posição ao se ver como única posição destoante. Diante da aprovação da moção, Blanche foge e busca abrigo na mansão confiscada da família. É procurada por Marie. Esta se vale das relações com o mundo profano para providenciar junto à atriz de teatro Rose Ducor (Magre) refúgio mais seguro à jovem. No entanto, é demasiado tarde quando retorna à companhia das demais carmelitas. Foram condenadas à morte e levadas a Paris.


Madre Marie de l'Incarnation (Jeanne Moreau) e noviça Blanche de l'Agonie du Christ

  
Marie vai ao encontro das companheiras. Porém, nada mais poderá fazer. Na Place de la Nation a lâmina da guilhotina cai ininterruptamente e oferece dolorosa pontuação à trilha sonora enquanto as condenadas entoam os cantos Salve, Regina e Veni Creator Spiritus. Este é um hino tradicional do catolicismo. Ilustra o oferecimento da vida a Deus por uma comunidade religiosa. Amparadas uma a uma por madre Thérèse, as carmelitas de Compiègne obedecem ao chamado do arauto e sobem inabaláveis ao patíbulo. Para surpresa geral, Blanche aparece e se une ao grupo. Supostamente, é “A última no cadafalso” segundo o título do romance de Gertrud von Le Fort. No entanto, o trágico cortejo é fechado por Thérèse.


Madre Marie quis se juntar às companheiras. Porém não tinha o nome inscrito no rol dos condenados. Ao perceber suas intenções, Thérèse a repreende com o olhar. O pároco de Compiègne, também presente, afirma que Deus a poupou. Assim não poderia, por vontade própria, optar pelo destino de mártir.


A priora Madre Thérèse de Saint-Augustin (Alida Valli) prepara Blanche de l'Agonie du Christ (Pascale Audret) para a execução na guilhotina

  
A direção da Agostini e Bruckberger mais o trabalho de câmera de Jean-Marie Maillols marcam com felicidade a oposição entre as realidades exterior e interior ao convento — onde se passa a maior parte da história. Nas dependências monacais reina a segurança da rotina. As freiras estão habituadas ao lugar e aos afazeres cotidianos. A câmera observa eventos e rostos com o rigor da objetividade. Pouco se move. Está sempre à altura dos olhos das personagens. Os planos obedecem a um ponto de vista praticamente impessoal. Já além dos muros do convento rolam os grandes acontecimentos remodeladores da História. Aí os indivíduos parecem impulsionados pelos desígnios incertos da Fortuna. A câmera se move com mais liberdade ou se abre ao ponto de vista ampliado. Logo no início, após a consagração das noviças pelo confessor e a apresentação dos créditos, ousado zoom seguido de travellings captam a procissão que conduz Constance e Blanche à entrada do convento. Porém, a mobilidade do aparato cinematográfico é interrompida quando as jovens de fato rompem com o mundo e são recebidas alegremente pelas demais religiosas. A câmera estanca fixa do lado de fora, como observadora indevida do campo sagrado. Recupera o dinamismo quando as curiosas noviças sobem ao muro para acompanhar a evolução das tropas revolucionárias ao som de A Marselhesa. Adquire ares nervosos diante da turba que ameaça invadir o convento ao compasso da furiosa Ah! Ça Ira. Ao final, na Place de la Nation, é novamente notada ao testemunhar os cuidados finais prestados por madre Thérèse às companheiras; quando as acompanha na escalada do cadafalso; e na exposição do entorno para localizar os impotentes e compungidos padre confessor e madre Marie.


Blanche de l'Agonie du Christ (Pascale Audret) sobe ao cadafalso

  
Nos momentos mais sóbrios, marcados pela objetividade do enquadramento, a montagem de Gilbert Natot garante fluidez à narrativa e evita ao espectador o peso dos diálogos.


Quanto às intérpretes, destaca-se a curta participação de Madeleine Renaud. Jeanne Moreau faz atraente, enigmática e desafiadora Marie de l'Incarnation. Alida Valli incorpora a madre no pleno sentido do termo. É compreensiva e sensata, transmite segurança e conforto. A frágil Pascale Audret revela firmeza e desenvoltura enquanto o filme avança e lança sua personagem no turbilhão das piores agruras.


Assim Deus mandou tem a capacidade de se fixar na memória por mais que o tempo passe. Tal se deve principalmente à câmera e ao desempenho das atrizes.





Roteiro: Philippe Agostini, Raymond Leopold Bruckberger, a partir de roteiro de Georges Bernanos adaptado da novela La dernière à l'echafaud, de Gertrud von Le Fort. Música: Jean Françaix. Direção de fotografia (preto e branco, Dyaliscope): André Bac. Montagem: Gilbert Natot. Assistente de montagem: Colette Leloup. Desenho de produção: Maurice Colasson. Decoração: Albert Volper. Figurinos: Anne-Marie Marchand. Penteados: Marc Blanchard. Maquiagem: Jean-Paul Ulysse. Gerência de unidade: Margot Capelier. Gerência de produção: Pierre Laurent. Assistente de direção: Fernand Marzelle. Assistentes de direção de arte: Jean Forestier, Jacques Paris. Som: Antoine Archimbaud. Assistência de câmera: Jean Castagnier, Valery Ivanow. Fotografia de cena: Jean-Louis Castelli. Operador de câmera: Jean-Marie Maillols. Supervisão de guarda-roupa: Jean Zay. Mestre do coro: René Alix. Direção musical: Marc Lanjean. Assessoria de imprensa: Richard Balducci. Continuidade: Madeleine Santucci. Companhia de efeitos especiais: Lax. Sistema de mixagem de som: Western Electric Recording. Tempo de exibição: 112 minutos.

(José Eugenio Guimarães, 2016)