domingo, 18 de dezembro de 2016

MAIS DUAS PREMIAÇÕES PARA O BLOG "EUGENIO EM FILMES"

Eugenio em Filmes foi agraciado com os prêmios de duas comunidades do Google+:



1) Inspiración sin Barreras, por "Reconhecimento ao Blog Mais Inspirado".






2) Vientos Estelares, com o "Prêmio Estelar Pela Contribuição à Cultura e à Arte".






Da parte de quem se lançou neste espaço sem nada saber de blogs e blogosfera e, consequentemente, nunca pensou em premiações, ouso dizer que me sinto muito feliz e honrado.


Muito obrigado.



José Eugenio Guimarães

Niterói/RJ, 18 de dezembro de 2016

PETER BOGDANOVICH ESTREIA NA DIREÇÃO DE CINEMA AMPARADO POR ROGER CORMAN

Um filme simples, bom, barato, inteligente, rodado com uma rapidez impressionante: é Na mira da morte (Targets, 1968), primeira incursão de Peter Bogdnovich na realização cinematográfica e um dos precursores da onda de nostalgia que percorreu o cinema estadunidense do final dos anos 60 à década seguinte. O próprio diretor se faz personagem da história contada em duas frentes narrativas que avançam paralelas, aparentemente desconectadas, para convergir apenas no final. Interpreta Sammy Michaels, diretor e roteirista sentimentalmente inspirado pelo cinema de outrora. Pronuncia estes famosos dizeres: "Todos os grandes filmes já foram feitos". Boris Karloff faz uma representação de si mesmo: o ator Byron Orlok, prestes a se aposentar, nome referencial do velho cinema de terror que não assusta a mais ninguém na atualidade. O pavor, agora, é assumidamente real e mortal, parece concluir diante da visão de uma sociedade totalmente mecanizada e acuada pelo crescente número de matadores seriais na forma de franco-atiradores representados por Bobby Thompson (Tim O'Kelly). Quanto a isto, é um filme atualíssimo. Põe em questão as causas da violência urbana nos Estados Unidos, país que evita qualquer discussão acerca da aprovação de medidas de controle sobre a posse de armamento individual. Na mira da morte está apoiado em roteiro inteligentíssimo que lamenta a decadência do cinema — inclusive como espaço de exibição — e, concomitantemente, das próprias instâncias de socialização em época de celebração do mais desatado individualismo egoísta. Os momentos finais, primorosos, combinam à perfeição ilusão e realidade em exemplar trabalho de montagem executado pelo próprio diretor. Segue apreciação escrita em 1975, revista e ampliada em 1988.







Na mira da morte
Targets

Direção:
Peter Bogdanovich
Produção:
Peter Bogdanovich
Paramount Pictures, Saticoy Productions
EUA — 1968
Elenco:
Boris Karloff, Tim O'Kelly, Tim Burns, James Brown, Nancy Hsueh, Arthur Peterson, Mary Jackson, Tanya Morgan, Sandy Baron, Monty Landis, Paul Condylis, Mark Dennis, Stafford Morgan, Daniel Ades, Peter Bogdanovich, Warren White, Geraldine Baron, Gary Kent, Ellie Wood Walker, Frank Marshall, Byron Betz, Mike Farrell, Randy Quaid, Carol Samuels, Jay Daniel, James Morris, Susan Douglas, Kirk Scott, Diana Ashley, Raymond Roy, Kay Douglas, Robert Cleaves, Anita Poree, James Bowie, Pete Belcher, Elaine Partnow, Timothy Burns, Susan Douglas Rubes, Jay Daniel, Git Luboviski, Milton Luboviski, Don Steele.


o ator Boris Karloff e o diretor Peter Bogdanovich quando das filmagens de Na mira da morte



Peter Bogdanovich vinha de um documentário à base de entrevistas, o pouco visto The great professional: Howard Hawks (1967), realizado para a TV, quando estreou na direção cinematográfica com Na mira da morte, estrelado por Boris Karloff. Automaticamente associado ao cinema de terror, o ator percorria as telas desde os anos 30, interpretando criaturas de Frankenstein, múmias, assassinos perversos, dementes perigosos, lobisomens, vampiros... Toda sorte de entidades maléficas daqui e do além. Em Na mira da morte compõe basicamente um retrato de si próprio. É Byron Orlok, reconhecido ator de filmes de terror já no inverno de seu tempo, prestes a se aposentar. Percebe, com triste resignação, que os malignos personagens aos quais deu vida no celulóide perderam completamente o interesse. Inclusive, deixaram de assustar. Hoje, sustenta, o verdadeiro horror está nas ruas das grandes metrópoles, estampado nas páginas dos jornais; é verdadeiro, machuca e mata em vez de simplesmente assustar para distrair, como faziam os filmes de antanho — simulacros de luzes, sombras e maquiagem. Orlok teme o mundo real que o tornou antigo e desatualizado. Por isso, quer abandonar o cinema o quanto antes, para desalento do diretor e roteirista Sammy Michaels (Bogdanovich).



Acima e abaixo: Boris Karloff no papel do ator Byron Orlok, basicamente uma representação dele mesmo

  
Bobby Thompson (O'Kelly) simboliza o horror real tão temido por Orlok. É vendedor de seguros afeiçoado às armas de fogo. Possui um vasto e diversificado arsenal. O roteiro de Peter Bogdanovich e do não creditado Samuel Fuller — baseado em história de Polly Platt em parceria com o diretor — não se aprofunda na psicologia do personagem. Porém, revela o suficiente aos propósitos do filme: é um quadro de carência, individualismo, fastio, ociosidade e desprezo pela vida. Move-o a compulsão assassina; o simples prazer de matar. Começa em casa. Com frieza e indiferença, como se praticasse um ato corriqueiro, elimina a esposa Ilene (Tanya Morgan), a mãe Charlotte (Jackson) e o entregador do supermercado (White). Em seguida, aquartela-se sobre o tanque de uma refinaria às margens de autoestrada e dispara nos veículos. Foge com a chegada da polícia. Esconde-se no cine drive-in prestes a ser inaugurado com a exibição de The terror — último filme dirigido por Sammy Michaels e protagonizado por Byron Orlok[1]. O ator marcará presença na ocasião, quando receberá homenagens. Entrincheirado na armação que sustenta a tela, Bobby aguarda o apagar das luzes para executar sua sinfonia particular de terror: disparar sobre a plateia. Fere, mata e provoca pânico.



Acima e abaixo: o terror real representado pelo franco-atirador Bobby Thompson (Tim O'Kelly)


Bogdanovich é, provavelmente, o principal deflagrador da onda de nostalgia que dominou o cinema estadunidense do fim da década de 60 ao decênio seguinte. O período determinou o revival de temas e gêneros caros aos anos 30 e 40, épocas áureas de Hollywood. No exercício da crítica redescobriu John Ford, Howard Hawks, Raoul Walsh, Leo McCarey, Allan Dwan, George Cukor e outros mestres. Transformou-os em motivos de culto permanente. Materializou a paixão por esses nomes em livros, entrevistas e filmes que cumpriram a louvável tarefa de impedir que o véu do esquecimento baixasse sobre eles. Sobre o diretor de No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), Rastros de ódio (The searchers, 1956) e O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valence, 1962), rodou o elogiadíssimo e fundamental documentário Directed by John Ford (1971).


Como muitos companheiros de geração, Bogdanovich começou a dirigir amparado por Roger Corman, de quem foi assistente em Os anjos selvagens (The wild angels, 1967). Com invejável competência realizou de imediato um conjunto sedutor e referencial de filmes nos quais homenageia ídolos e a produção de antanho: A última sessão de cinema (The last picture show, 1971) é amarga visão, em tom de balada, sobre uma América que se esvai; Essa pequena é uma parada (What’s up doc?, 1972), refaz com felicidade a screwball comedy no melhor estilo de Howard Hawks em Levada da breca (Bringing up baby, 1938); e Lua de papel (Paper moon, 1973) redescobre o período da grande depressão na estrada que a família Joad percorreu em As vinhas da ira (The grapes of wrath, 1940), de John Ford. A seguir, fracassos sucessivos lhe desfizeram a reputação: Daisy Miller (Daisy Miller, 1974), Amor, eterno amor (At long last love, 1975) e No mundo do cinema (Nickelodeon, 1977).


Além de financiar Na mira da morte, Corman cedeu equipamentos, instalações e Boris Karloff a Bogdanovich. O ator estava a três dias do vencimento do contrato que o ligava ao patrocinador. Essa é a principal explicação para a rapidez das filmagens e da aparente desigualdade narrativa, fatores que de modo algum constituem problema. Na mira da morte vale pelo argumento instigante e atual, transformado em roteiro inteligente e eficaz. Começa com a apresentação dos números de assassinatos cometidos por destrambelhados franco-atiradores estadunidenses nos últimos anos. A seguir, questiona a ultraliberal legislação do país sobre a posse de armamento individual. Pergunta: qual a razão de tantos crimes? Por que, apesar de tudo, os Estados Unidos não têm leis para a regulamentação e controle da posse de armas?


Bogdanovich lança mão dessas evidências para discutir a qualidade do horror em suas vertentes cinematográficas e fictícias, cotidianas e reais. Orlok conclui, prestes a se retirar de cena: o horror mudou. Bobby Thompson é prova disso. O velho ator e o franco-atirador protagonizam duas frentes narrativas que convergem apenas no desfecho. Enquanto isso, o cinema confronta a si e a realidade. Os mitos da tela de outrora são homenageados, a começar pelo próprio Karloff/Orlok. A narrativa apresenta o espectador a trechos do primeiro filme importante do ator e do personagem que interpreta em Na mira da morte: O Código Penal (The Criminal Code, 1931), de Howard Hawks. Diante das cenas, Sammy Michaels — apaixonado por cinema como o Peter Bogdanovich que o representa — entra em êxtase. Em seguida pronuncia a famosa frase: “Todos os grandes filmes já foram feitos”. É como se a decadência do cinema testemunhada por Orlok e confirmada por Michaels explicasse a degradação do cotidiano; é como se a superação de uma série de monstros de fantasia que pululavam nas telas estivesse por trás do surgimento de insanos de verdade como Bobby Thompson.


Byron Orlok (Boris Karloff) com o diretor e roteirista Sammy Michaels (Peter Bogdanovich)
"Todos os grandes filmes já foram feitos"


Após as imagens de O Código Penal segue uma sequência particularmente significativa. Bêbado, sem condições de voltar para casa, Michaels adormece na cama de Orlok. Este, contrariado, ocupa o outro lado do leito. É uma passagem simbólica. Informa tudo a respeito do gosto de Bogdanovich por cinema e de sua íntima relação com o meio. Ele, que resgatou filmes e mestres de ontem, e tentou, no começo da carreira, refazer antigos e imortais sucessos, paga tributo às suas referências deitando-se literalmente na cama de um digno representante do passado ao qual tanto deve e valoriza. Michaels e Orlok ou Bogdanovich e Karloff, estirados lado a lado, formam a síntese entre o velho e o novo proposta pelo realizador de Directed by John ford, A última sessão de cinema e este Na mira da morte. Protagonizam, quando acordam, o único momento de humor da realização. Michaels leva um susto ao se deparar com Orlok na mesma cama. Diante do protesto do velho, responde: “Como não ficar assustado se a primeira coisa que vejo de manhã é o rosto de Byron Orlok” (ou de Boris Karloff)? Este por sua vez, apavora-se com a própria imagem projetada no espelho.


Byron Orlok (Boris Karloff) se assusta com a própria imagem espelhada

  
No drive in, local do desfecho de Na mira da morte, Bogdanovich aproxima três paixões estadunidenses: automóveis, armas e cinema. As duas primeiras são as mazelas do país, acredita. Provavelmente, nelas pensava Orlok ao comentar sobre a violenta e congestionada Los Angeles: “Meu Deus, como essa cidade ficou feia!” Horrível também é o drive in, mais estacionamento que cinema, mau gosto que só poderia vingar num país que tem os automóveis como extensões dos animais de estimação, os cães sobre rodas. A visão que o filme fornece do lugar é desoladora: algo como o cemitério da sétima arte. Não deixa de ser irônico e sintomático homenagear o mito Orlok num lugar como esse.



Acima e abaixo: o terror real, Bobby Thompson (Tim O'Kelly, é confrontado pelo ator que encarnou o terror cinematográfico, Byron Orlock (Boris Karloff)


No entanto, o cinema vence o confronto com a barbárie. Após disseminar o pavor, o franco-atirador é descoberto, justamente por Orlok. Somente a personificação do terror cinematográfico, naquele momento protagonista de The terror, poderia vencer a indiferente demência do assassino serial. A montagem do próprio Bogdanovich ordena tudo à perfeição, ao costurar realidade e cinema, às vezes interpenetrando-os, iludindo assassino e espectador. No pátio Orlok avança rumo ao matador; um deslocamento que se confunde com a movimentação executada na tela do drive-in pelo personagem que interpreta. Bobby avista um e outro, Orlok e o ator caracterizado em The terror. Assusta-se, entra em desespero e se descontrola. São duas figuras idênticas indo ao seu encontro. Uma é real; a outra, fictícia. Começa a atirar a esmo, para todos os lados. Fere Orlok, mas não o detém. O assassino do drive in se apavora com a dupla imagem do horror, oferecida pela ficção e por aquele que tão bem soube representá-la. De repente, o peso da bengala do ator cai sobre Bobby. Este se agacha, chora, protege o rosto com as mãos qual criança apavorada e prestes a levar uma surra. Depois desse final, exemplo de grande cinema, Bogdanovich não precisaria fazer mais nada para demonstrar competência. Mas então ficaríamos sem as imagens evocativas de Rio Vermelho (Red River, 1948), de Howard Hawks, no centro do também evocatório A última sessão de cinema: aí o gigante Tom Dunson, interpretado com incomparável naturalidade por John Wayne, pede ao filho adotivo Math Garth (Montgomery Clift) para levar a boiada do Texas ao Missouri na epopeia de abertura da mítica trilha Chisholm.





Direção de fotografia (Pathécolor): László Kovács. Roteiro: Peter Bogdanovich com a co-autoria de Samuel Fuller (não creditado), baseado em história de Polly Platt e Peter Bogdanovich. Música: Charles Greene, Brian Stone. Desenho de produção: Polly Platt. Figurinos: Polly Patt. Montagem: Peter Bogdanovich. Produção associada: Daniel Selznick. Eletricista-chefe: Raymond L. Aguilar. Contrarregra: James Campbell. Assistente de direção: Gilles De Turenne. Edição de som: Verna Fields. Assistente de direção de arte: Scott Fitzgerald. Maquiagem: Scott Hamilton. Continuidade: Joyce King. Som: Sam Kopetzky. Gerente de produção: Paul Lewis. Assistente para o diretor: Frank Marshall. Assistente de produção: James Morris. Técnico-chefe: Tom Ramsey. Assistente de câmeras: Peter Sorel. Bill Pecchi (não creditado). Assistente de montagem: Mae Woods. Créditos: Cinema Research. Regravação de som: Ryder Sound Service. Produção da música de rádio: Charles Greene, Brian Stone. Produção executiva: Roger Corman (não creditado). Efeitos especiais: Gary Kent (não creditado). Agradecimentos à: Columbia Pictures Corporation por ceder as imagens de O Código Penal (The Criminal Code, 1931), de Howard Hawks. Tempo de exibição: 91 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1975; revisto e ampliado em 1988)


[1] As imagens desse filme são da realização homônima que Roger Corman rodou em 1963, protagonizada por Boris Karloff e Jack Nicholson. No Brasil foi exibido com título que traduz fielmente o original.