domingo, 18 de novembro de 2018

PAI, FILHO E DEPENDÊNCIA NA ADVERTÊNCIA DE GRIFFITH EM 1912

Muitos filmes exploram a temática da dependência química: Vício que mata (The pace that kills, 1928), de William A. O'Connor e Norton S. Parker; A porta da loucura (Tell your children/Reefer madness, 1936), de Louis J. Gasnier; Farrapo humano (The lost weekend, 1945), de Billy Wilder; Vício maldito (Days of wine and roses, 1962), de Blake Edwards; Os viciados (The panic in needle park, 1971), de Jerry Schatzberg; Drugstore cowboy (Drugstore cowboy, 1989), de Gus van Sant; Trainspotting: sem limites (Trainspotting, 1996), de Danny Boyle; e, entre outros tantos, Réquiem para um sonho (Requiem for a dream, 2000), de Darren Aronofsky. Fazem parte de um subgênero cujas raízes podem ser encontradas nos pioneiros curtas de David Wark Griffith para a Biograph Company, particularmente em For his son (1912) — por sua vez tributário do mais primitivo Les victimes de l’alcoolisme (1902), de Ferdinand Zecca. Aborda o vício em cocaína e a alienação provocada pelo acúmulo de riqueza segundo a particularíssima visão de mundo do diretor. É um conto moral. Problematiza a relação entre pai e filho além de fornecer munição aos inimigos de refrigerantes como a Coca-Cola. Formalmente, é uma produção convencional diante dos avanços obtidos pelo cineasta no período. Não obstante, se convenientemente apreciada do ponto de vista histórico ainda se revela impactante e assustadora. Segue apreciação escrita em 2001.





For his son


Direção:
David Wark Griffith
Produção: 
Biograph Company
EUA — 1912
Elenco:
Charles Hill Mailes, Alfred Paget, Blanche Sweet, Charles West, Dorothy Bernard e os não creditados William Bechtel, Christy Cabanne, Edward Dillon, Edna Foster, Robert Harron, Dell Henderson, Grace Henderson, Harry Hyde, J. Jiquel Lanoe, Gus Pixley, W.C. Robinson, Ynez Seabury, Kate Toncray.



O diretor David Wark Griffith (à direita) com Douglas Fairbanks, Mary Pickford e Charles Chaplin
Foto de 5 de fevereiro de 1919, quando da fundação da United Artists



David Wark Griffith dirigiu 72 curtas para a Biograph Company em 1912. Dentre os que conheço, destacam-se The massacre; The New York hat; O dilema do assaltante (The burglar's dilemma); The musketeers of Pig Alley; The painted lady; So near, yet so far; Two daughters of Eve; Um Inimigo Invisível (An unseen enemy); The narrow road; The sunbeam e A sister's love. Percebem-se nessas realizações, da parte do cineasta, a vontade de se emancipar das limitações impostas pela empresa produtora e conferir maior dinamismo à câmera, inclusive ultrapassar as restrições espaciais dos cenários invariavelmente estáticos e captados de um único ponto de vista. O quinto curta do período, For his son, está entre os mais convencionais se comparado aos avanços de Griffith na consolidação de uma expressão própria para a narrativa cinematográfica.


For his son é mais um conto moral tão caro ao diretor. As intenções se manifestam logo na cartela de abertura. Durante aproximados 15 minutos o espectador é apresentado ao “Terrível resultado do egoísmo criminoso”. Decerto é tributário das influências de Ferdinand Zecca em Les victimes de l’alcoolisme (1902). Especificamente, For his son trata da dependência das drogas de forma direta e pouco sutil. Talvez sequer houvesse tempo para uma abordagem menos aguda e intensa do problema. Afinal, narra uma história complexa com pretensões à verossimilhança em exíguos quinze minutos. A deflagração do drama do vício encenado pelo título decorre da excessiva permissividade paterna na educação filial e da ambição desmedida que percebe as pessoas pela ótica do mais vil e imediato cálculo instrumental.


Charles Hill Mailes como o médico

A cocaína surge como resposta imediata aos problemas financeiros


For his son é pioneiro do subgênero “cinema de advertência”. Na sua esteira vieram Vício que mata (The pace that kills, 1928), de William A. O'Connor e Norton S. Parker; Narcotic (1933), de Dwain Esper e Vival Sodar't; The pace that kills ou Cocaine fiends (1935), de William A. O'Connor; A porta da loucura (Tell your children/Reefer madness, 1936), de Louis J. Gasnier; Farrapo humano (The lost weekend, 1945), de Billy Wilder; Na voragem do vício (Something to live for, 1952), de George Stevens; Vício maldito (Days of wine and roses, 1962), de Blake Edwards; Os viciados (The panic in needle park, 1971), de Jerry Schatzberg; e, entre outros, os mais recentes Drugstore cowboy (Drugstore cowboy, 1989), de Gus van Sant; Vício frenético (Bad lieutenant, 1992), de Abel Ferrara; Trainspotting: sem limites (Trainspotting, 1996), de Danny Boyle; e Réquiem para um sonho (Requiem for a dream, 2000), de Darren Aronofsky.


Apesar de figurar entre as realizações formalmente mais pobres da griffithiana, For his son apresenta muitas frentes narrativas levando-se em conta o momento da realização. Há o consultório médico, a casa da noiva (Blanche Sweet), a antessala, o laboratório, a botica, o pátio da transportadora, o escritório, a rua e a residência da secretária (Dorothy Bernard). Ao espectador contemporâneo, principalmente o mais impressionável, o roteiro de Thomas McWilliams parte do aterrador pressuposto que ainda oferece munição aos inimigos dos refrigerantes, principalmente da Coca-Cola: muitos acreditam na adição de cocaína à composição dessa bebida. Não adiantam os muitos desmentidos da The Coca-Cola Company e de instituições governamentais voltadas ao controle de drogas e alimentos. Porém, não era bem assim quando Griffith realizou For his son. Inclusive, a cocaína era comercializada sem maiores entraves nas farmácias e drogarias.


O médico (Charles Hill Mailes) eufórico com a solução dos problemas financeiros


O refrigerante Dopokoke é sucesso de vendas, inclusive entre crianças

A cocaína, elemento básico do Dopokoke


Por meio da montagem paralela e de alguns enfáticos primeiros planos reveladores, For his son apresenta a relação temerária, de consequências devastadoras, entre um médico (Charles Hill Mailes) e o filho jovem, improdutivo e irresponsável (Charles West). O pai é um profissional remediado. Direciona os parcos ganhos às necessidades do exigente herdeiro. Para solucionar o problema da falta de dinheiro, resolve, após algumas hesitações morais, misturar pequenas doses de cocaína terapêutica a um xarope medicinal. O resultado é uma bebida atraente e estimulante denominada Dopokoke. Produzida em larga escala, torna-se sucesso de vendas. O agora milionário médico pode arcar folgadamente com as despesas do filho. Porém, conforme o esperado, a ambição fala mais alto. Logo se impõe a vontade de enriquecer mais, como se isso fosse um estupefaciente. Os negócios são expandidos. Exigem o apoio de contabilidade e secretaria. Por descuido, o segredo da bebida é revelado. O filho, curioso e volúvel, logo é alcançado pelo vício. A secretária se faz dependente por obra do contador (Alfred Paget). Cenas da crescente procura ao refrigerante por populares, inclusive crianças, são alternadas com a progressiva decomposição física e moral dos viciados. A relação afetiva do herdeiro é interrompida quando a noiva, horrorizada, toma conhecimento da situação. Ele já apela para injeções. Abandonado, busca consolo com a secretária. Unidos na miséria, brigam pela posse de agulhas. Quando o pai adquire ciência do problema é demasiado tarde.


A noiva (Blanche Sweet) horrorizada com a dependência do noivo (Charles West)

A secretária (Dorothy Bernard) e o jovem filho do patrão (Charles West) degradados pelo vício


Griffith explicita o excesso de indulgência paterna na educação do filho. Paralelamente, expõe a cegueira provocada pelo acúmulo de riqueza. O rápido momento no qual o vitorioso médico avança de punhos cerrados em direção à câmera, sorrindo e fumando euforicamente, revela como se alienou à dependência do dinheiro. Nada mais interessa. Até ser cruelmente devolvido à terrível realidade em virtude dos próprios atos impensados. Os letreiros de encerramento alertam: “Ele não se importava com quem vitimava, até encontrar o resultado da própria desonra em sua porta”.


É demasiado tarde para o pai (Charles Hill Mailes) e o filho (Charles West)


Apesar da simplicidade da exposição, Griffith demonstra domínio da narrativa. Isso se percebe sobretudo na gestão do tempo de duração dos planos que conferem vigor à montagem alternada, principalmente quando expõem o crescente consumo de Dopokoke em concomitância à decrepitude das vítimas. Também merecem menção, em função da história e da época da realização, os impactantes primeiríssimos planos que revelam o frasco de cocaína marcado como “veneno” e os dedos em contato com a substância.



  
Roteiro: Emmett C. Hall (não creditado). Direção de fotografia (preto-e-branco) e operador de câmera: G. W. Bitzer. Tempo de exibição: 15 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2001)