domingo, 5 de maio de 2013

UM MARCO ESQUECIDO DO CINEMA DE ANTECIPAÇÃO

Discreto e eficaz, No mundo de 2020 (Soylent green, 1973), de Richard Fleischer, une ficção científica e investigação policial. Deixa de lado alienígenas monstruosos e aventuras espaciais para se ocupar com os rumos da Terra, degradada por consumismo desenfreado, descontrole populacional, desemprego maciço, degradação ambiental e crise alimentar. Realizado numa época anterior ao surgimento dos partidos verdes — quando os discursos sobre preservação de ecossistemas, tecnologias alternativas e desenvolvimento sustentado sequer estavam na ordem do dia —, No mundo de 2020 é, atualmente, um marco do cinema de antecipação, um grito de alerta compreensivelmente relegado a um injusto mas conveniente esquecimento. 






No mundo de 2020
Soylent green

Direção:
Richard Fleischer
Produção:
Walter Seltzer, Russel Thatcher
Metro-Goldwyn-Mayer
EUA — 1973
Elenco:
Charlton Heston, Leigh Taylor-Young, Edward G. Robinson, Joseph Cotten, Chuck Connors, Brock Peters, Paula Kelly, Stephen Young, Mike Henry, Lincoln Kilpatrick, Roy Jenson, Leonard Stone, Whit Bissell, Celia Lovsky, Dick Van Patten, Morgan Farley, John Barclay, Belle Mitchell, Cyril Delevanti, Forrest Wood, Faith Quabius, Jane Dulo, Tim Herbert, John Dennis, Jan Bradley, Carlos Romero, Pat Houtchens, Joyce Williams, Erica Hagen, Beverly Gill, Suesie Eejima, Cheri Howell, Kathy Silva, Jennifer King, Marion Charles.




O diretor Richard Fleischer

Em 1981 Ridley Scott assombrou o cinema e o imaginário com Blade runner, o caçador de androides (Blade runner), feito de imagens que antecipam, para breve, cenário cinzento e aterrador para a Terra. Poluída e superpovoada, diariamente bombardeada por chuva ácida, torna-se inviável. Será como uma sucata orbitando o Sol, largada à população sem possibilidades de migrar para paragens siderais mais acolhedoras. A dura racionalidade instrumental orienta as relações sociais. Paradoxalmente, são robôs concebidos à imagem e semelhança do homem  convertido em Deus decaído e alienado , os depositários dos últimos resquícios de humanidade.


Hoje, com sua encenação poderosa, Blade runner, o caçador de androides é um marco da ficção científica. Provavelmente, até o momento, é a peça cinematográfica que melhor problematizou o futuro próximo do planeta. Faz parte de um seleto grupo de filmes que deixou de lado alienígenas monstruosos e aventuras espaciais para se voltar às questões atuais, que povoam o cotidiano de considerável parcela de pessoas preocupadas com os rumos do planeta. O discreto e eficaz No mundo de 2020 pode não ter inaugurado essa tendência do cinema de antecipação, mas é, certamente, um dos pioneiros mais dignos e justamente lembrados. Principalmente porque, na época da realização, sequer existiam organizações políticas como os partidos verdes. Em 1973, os movimentos sociais voltados à preservação da natureza, ou que propunham a exploração racional do meio ambiente, ainda engatinhavam e recebiam mais zombaria que atenção. “Ecologia”, “tecnologias alternativas”, desenvolvimento sustentado”, “preservação de ecossistemas”, “biodiversidade”, “reservas extrativistas” eram conceitos novos, polêmicos, mal definidos, brandidos por um pequeno grupo de militantes exaltados, insistentes e abnegados que pretendiam inclui-los nas agendas governamentais para desespero dos defensores do desenvolvimento a qualquer preço. Richard Fleischer realizou No mundo de 2020 quatro anos antes da estreia do então publicitário Ridley Scott na direção cinematográfica com Os duelistas (The duellists, 1977), separado de Blade runner, o caçador de androides pela mesma quantidade de tempo.


O trabalho de Fleischer mistura os gêneros policial e ficção científica, tomando por base o livro de Harry Harrison, Make room! Make room!, roteirizado por Stanley R. Greenberg. Ganhou o prêmio de Melhor Filme no Festival de Avoriaz. Localiza a história em New York, dois anos à frente da data do título. O futuro se tornou apenas continuação piorada do presente. A cidade é uma megalópole de 40 milhões de habitantes, a maior parte largada à própria sorte, destituída de empregos, moradias e acossada, nas 24 horas do dia, por calor e poluição. À noite, o toque de recolher provoca o congestionamento de escadarias, passagens subterrâneas, automóveis abandonados, qualquer espaço que puder ser convertido em abrigo. Medidas de segurança abolem a liberdade de ir e vir. O consumismo desenfreado, o aumento descontrolado da população e o progresso a qualquer preço transformaram a Terra num inferno de amplas proporções. Vive-se apenas por viver. No campo restam poucas fazendas, transformadas em fortalezas bem guardadas, incapazes de produzir alimento suficiente à sobrevivência da população. A empresa de comestíveis Soylent Corporation supre precariamente essa carência, abastecendo o mercado com produtos sintéticos, os tradicionais soylents vermelho e amarelo  extraídos de vegetais energéticos, conforme a mensagem publicitária  e o recente soylent verde  produzido do plâncton, segundo a embalagem. De enorme sucesso, o soylent verde esgota-se imediatamente tão logo chega às prateleiras dos postos de venda. É distribuído uma vez por semana numa operação que exige policiamento reforçado nas ruas, além da mobilização de uma patrulha de escavadeiras e caminhões basculantes adaptados para controlar distúrbios urbanos. Os produtos Soylent são praticamente destituídos de gosto e cheiro. Carne e vegetais in natura, raríssimos, sobrevivem na lembrança dos mais velhos ou são privilégio da reduzida casta abastada que ainda desfruta de moradias requintadas e confortáveis, da proteção de guarda-costas e do atendimento permanente de prostitutas de luxo — as “mobílias” — pertencentes às unidades residenciais. Os remediados vivem em apertados apartamentos e são obrigados a despender esforço físico para garantir o suprimento de energia elétrica.



Desemprego, crise habitacional e desabastecimento geram distúrbios em No mundo de 2020

De boina preta, o personagem Sol Roth (Edward G. Robinson) na fila para o abastecimento de água

A vida foi destituída de qualquer significado no drama encenado em No mundo de 2020. Dessacralizada ao extremo, tornou-se pura imanência. A mesma situação de plena descaracterização envolve a morte. O processo de desumanização aboliu as vigílias, cerimônias e rituais fúnebres. Os cadáveres, tratados como lixo, são simplesmente recolhidos e despachados. Não são chorados por ninguém. Mas, paradoxalmente, o governo oferece gratuitamente os serviços do Lar, instituição que proporciona ao cidadão cansado e/ou impossibilitado de viver, a oportunidade de uma eutanásia indolor e digna, antecedida por vinte minutos de belíssima e elevada sublimação, preparada segundo os desejos do interessado.


O prólogo de No mundo de 2020 é uma sucessão de fotografias que ilustra a acelerada decomposição da qualidade de vida no planeta desde a consolidação da Revolução Industrial. Mostra a paulatina destruição da natureza, paralela à crescente desumanização do espaço. A seguir começa propriamente o filme. As primeiras imagens revelam de pronto a plataforma narrativa de Richard Fleischer. O diretor optou por uma cenografia sombria, seca, desencantada e deprimente, sugestiva de uma atmosfera carregada e envenenada.


O assassinato de William R. Simonson (Cotten)   sócio da Soylent Corporation mal informado sobre o sistema de produção da companhia  dá partida à trama. O policial Thorn (Heston), responsável pelo caso, descobre: a vítima estava ciente de que seria morta e, mesmo assim, conformou-se à situação. De fato, diante do assassino Gilbert (Young), Simonson classificou o próprio fim como necessário, único modo de evitar uma provável catástrofe. Ao investigador, a “mobília” Shirl (Taylor-Young) revela que o patrão entrara recentemente em estado de profunda e inexplicável depressão. Na verdade, o empresário tomou conhecimento de um processo de horror. Em busca de alívio, confessou suas angústias a um padre (Kilpatrick): o segredo da fabricação do soylent verde. A revelação deixa o religioso desesperado. Thorn o procura em busca de pistas, mas esbarra na barreira ética do sigilo de confissão. Mesmo assim, percebeu que o assunto deixou o sacerdote visivelmente abalado. Este, logo é assassinado, a mando da Soylent Corporation.


O policial Thorn (Charlton Heston), na residência do empresário assassinado, fascinado com o perfume do sabonete e as comodidades da água corrente

O vigilante Tab Fielding (Chuck Connors) e a "mobília" Shirl (Leigh Taylor-Young)

O padre (Lincoln Kilpatrick)

Thorn divide o apartamento com um amigo, o velho Sol Roth (Robinson) que o auxilia na retaguarda das investigações, como se fosse uma central de inteligência. Roth pesquisa evidências, esclarece pistas, complementa informações. É o personagem que, pode-se dizer, humaniza o mundo aviltado de 2020. Traz na lembrança a vida na Terra anterior à atual fase de degradação. Implacável, formula um julgamento desesperançado: “As pessoas sempre foram podres, mas o mundo era lindo”. Diante das raras folhas de papel em branco que recebe de Thorn, recorda emocionado a época em que as editoras funcionavam e imprimiam os mais variados livros. Sol Roth marca presença nos melhores momentos de No mundo de 2020. É antológica a sequência em que degusta uma refeição à base de alguma carne, legumes mirrados e poucas frutas, alimentos de verdade que há anos não provava e que Thorn confessa nunca ter experimentado. O mesmo Sol deixa o espectador com água na boca quando extravasa sincero prazer ao provar restos de geleia de morango retidos numa colher. Mas nada se compara à seqüência de sua morte. Desgostoso após descobrir a verdadeira composição do soylent verde, o personagem de Robinson resolve ir para o Lar. Encomenda uma eutanásia ao som de música clássica ligeira, ilustrada durante um terço de hora por delirantes imagens de montanhas nevadas, fundos de mar repletos de cardumes coloridos, crepúsculos, horizontes ocupados por pássaros em revoada, florestas verdejantes, animais convivendo em seu habitat. São vistas de uma Terra que não existe mais, cenas que a memória confrontada pela dura realidade converteu em Paraíso. Alertado por um bilhete, Thorn chega a tempo de acompanhar o falecimento consentido de Sol. Extasia-se diante da beleza das imagens projetadas para o amigo. Enquanto isso, ouve a verdade sobre o caso que investiga. A revelação está fechada à audição do espectador.


Thorn (Charlton Heston e Sol Roth (Edward G. Robinson)

Sol Roth (Edward G. Robinson) prestes a saborear uma rara e fresca maçã

Controlando as emoções diante da partida de Sol, Thorn parte em busca de provas que sustentem as informações recebidas. É no Lar que começa a agir, acompanhando a movimentação de caminhões que recolhem os mortos até a fábrica da Soylent Corporation onde confirma: o soylent verde é feito de cadáveres. Essa é a verdade descoberta por Simonson, que resultou na sua morte e do padre; provocou o desgosto de Sol e sua consequente ida para o Lar. Agora ameaça Thorn. O teimoso detetive conduz a investigação por conta própria. A polícia, pressionada pela Soylent Corporation e pelo governador Santini (Bissell), afastou-se do caso.


Thorn (Charlton Heston) nas dependências da Soylent Corporation

Descoberto nas dependências da Soylent, Thorn escapa, mas é perseguido. Entra em contato com Hatcher (Peters), seu chefe imediato, a quem pede ajuda, antes de buscar abrigo no interior do congestionado albergue da Igreja. O socorro chega quando é localizado e ferido pelos assassinos. Desesperado, o detetive conta a verdade a Hatcher. Seu braço parado no ar depois do grito “o soylent verde é feito de gente” encerra No mundo de 2020, sem dúvida, um dos melhores filmes da irregular e prolífica carreira de Richard Fleischer.


Se a narrativa não é plenamente satisfatória, tal se deve à opção que privilegiou mais o aspecto policial que o da ficção científica. Dessa maneira, a denúncia da degradação ambiental e da completa dessacralização da vida é posta à reboque da investigação que corre de modo corriqueiro, obediente ao andamento dos mais burocráticos seriados televisivos. Apesar disso, o filme provoca impacto. A situação pintada em No mundo de 2020 é tão desesperadora que ao filar um cigarro Thorn diz: “Se eu tivesse dinheiro fumava dois ou três desses por dia”. Momentos antes, na mansão de Simonson, ao iniciar a investigação, ele se deleitava com a sensação de água corrente despejada à vontade sobre seu corpo, com o frescor do sabonete e a maciez de uma toalha perfumada — prazeres e produtos também raros no futuro anunciado pelo filme. Charlton Heston faz um personagem convincente, adequado a uma época de crescente instrumentalização da vida, que resulta na perda de sentido dos mais elementares princípios morais. Thorn é um policial que não tem pudor em abusar do poder e de suas imunidades. Colhe mais que as necessárias provas na cena do crime. Retira da disponível “mobília” Shirl o prazer que dela se espera.


Chefe Hatcher (Brock Peters)

Apesar de pertencer a Charlton Heston o papel principal de No mundo de 2020, quem brilha em cena é Edward G. Robinson. O velho ator  que deu vida a tantos personagens duros e malvados desde que estreou no cinema em Alma no lodo (Little Caesar, 1930), de Mervin LeRoy  morreu duas semanas após o encerramento das filmagens. Não teve a oportunidade de se ver num dos seus mais generosos e sensíveis desempenhos.




Roteiro: Stanley R. Greenberg, com base na novela Make room! Make room!, de Harry Harrison. Direção de fotografia (Panavision, Metrocolor): Richard H. Kline. Música: Fred Myrow. Música adicional: Peer Gynt, de Edvard Grieg; Sinfonia n. 6, de Pyotr Ilyich Tchaikovsky; Sexta Sinfonia, Opus 68Pastoral, de Ludwig Van Beethoven. Direção de música sinfônica: Gerald Fried. Figurinos: Pat Barto. Montagem: Samuel E. Beetley. Gerente de unidade de produção: Lloyd Anderson. Contra-regra: Terry Ballard. Produção de elenco: Jack Baur. Decoração: Robert R. Benton. Consultor técnico: Professor Frank R. Bowerman. Confecção de vestuário: Norman A. Burza, Betsy Cox. Coordenação de seqüências de ação: Joe Canutt. Direção de arte: Edward C. Carfagno. Condução de música sinfônica: Gerald Fried. Efeitos fotográficos especiais: Robert R. Hoag, Matthew Yuricich. Efeitos visuais especiais: A. J. Lohman. Segundo assistente de direção: Gene Marum. Primeiro assistente de direção: Daniel S. McCalley. Som: Harry W. Tetrick, Charles M. Wilborn. Maquiagem: Bud Westmore. Penteados: Sherry Wilson. Seqüências especiais: Braverman Productions. Fotografias do prólogo: Magnun. Tempo de exibição: 97 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1976; revisto e ampliado em 1986)