domingo, 23 de dezembro de 2012

NAZISTAS NO SUL DO BRASIL

Aleluia, Gretchen (1976) é, seguramente, o melhor filme de Sylvio Back e uma das grandes realizações do cinema nacional em qualquer tempo. Poucos cineastas conseguiram, de modo tão acurado, discutir as influências da tradição e do peso do passado na formação dos indivíduos e na permanência das ideias. Se ainda não o viu, veja! É realização de visão obrigatória. Acompanhe, ao longo de 40 anos, a saga dos alemães da família Kranz e seus agregados. Junte-se a eles na elaboradíssima sequência final, ao som de A cavalgada das valquírias. A apreciação a seguir foi escrita em 1979.








Aleluia, Gretchen

Direção:
Sylvio Back
Produção:
Sylvio Back
Sylvio Back Produções Cinematográficas Ltda., Embrafilme
Brasil — 1976
Elenco:
Kate Hansen, Selma Egrei, Sérgio Hingst, Miriam Pires, Carlos Vereza, José Maria Santos, Lilian Lemmertz, Elizabeth Destefanis, Lourival Gipiella, Narciso Assumpção, Lauro Hanke, Lala Schneider, Maurício Távora, Sale Wolokita, Edson D’Ávila, Abílio Mota, Rafael Pacheco, Joel de Oliveira, Lúcio Weber, Irineu Adami.




Sylvio Back



Certamente, no presente momento ao menos, Sylvio Back[1] é o único cineasta de renome em atividade no Sul do Brasil[2]. Desde a estreia no cinema com o curta Moradas (1964), dedica-se, com raras exceções, ao sistemático mapeamento cinematográfico da região, privilegiando a parte compreendida pelos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Aborda temas os mais diversos, dispersos por curtas — Os imigrantes (1965), Curitiba amanhã (1965), Curitiba, uma experiência em planejamento urbano (1974), Teatro Guaíra (1976), Um Brasil diferente? (1978) e Crônica sulina (1979) — e longas-metragens — Lance maior (1970), A guerra dos pelados (1971), Aleluia, Gretchen (1976) e República Guarani, em andamento.


Aleluia, Gretchen, empreendimento ambicioso e bem sucedido, é exercício de ficção alimentado por fatos. O roteiro está apoiado em informações obtidas nos arquivos das Secretarias de Estado da Segurança Pública do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, sobre a movimentação de simpatizantes do nazismo e membros da Quinta Coluna no Brasil. Recupera também a memória familiar e afetiva do diretor, descendente de imigrantes europeus: é filho de pai húngaro e mãe alemã. Aborda questões até então praticamente ausentes da temática geral do cinema brasileiro: a imigração alemã contra um pano de fundo histórico no qual se cruzam referências ao nacional-socialismo e ao seu correlato brasileiro, o integralismo. Registra, ao longo de 40 anos, a saga dos Kranz, fugitivos de Hitler instalados, desde 1937, em cidade paranaense onde exploram o Hotel Flórida. Para alegria de alguns familiares e relativa tristeza de outros, principalmente do patriarca Ross (Hingst), ex-professor universitário de ideias liberais, o local é transformado em ponto de encontro de simpatizantes do nazismo.



O Hotel Flórida, da família Kranz, hostilizado durante os anos da Segunda Guerra Mundial


Ross pertence a uma geração de alemães formada sob o signo da frustração. Apoia, sem muita convicção, a subida de Hitler ao poder. Optará pela omissão política tão logo a serpente desponte do ovo que a gerou. Horrorizado com a prática nazista de queimar livros “não recomendados” em praça pública, prefere emigrar.


Acompanham-no a esposa Frau Lotte (Pires), os filhos Josef (Gipiella), Gudrum (Egrei) e Heike (Hansen), a governanta Frau Minka (Schneider) e o filho desta, Wilhelm (Pacheco). Excluindo o professor, os demais vieram contra a vontade. Heike chega grávida de membro da SS. Ostenta as características arianas segundo a cartilha de Hitler. Fora agraciada pelo fuhrer como mãe privilegiada dos filhos da “nova Alemanha”. Dará a luz a Gretchen, saudada euforicamente por Frau Lotte como a primeira ariana nascida em solo brasileiro. Porém, com saúde frágil, a criança logo falece, trazendo profunda depressão aos Kranz. Josef é a esperança de recomposição do orgulho familiar. Jovem, entra em contato com grupos nazistas locais. Recebe treinamento militar e doutrinação política. Retornará à Alemanha para lutar ao lado das forças do Reich.


Velório de Gretchen

  
Circulam próximos aos Kranz, de certa forma complementando-os em estilo bem brasileiro, o serviçal negro Repo (Assumpção), quase um animal de estimação de Frau Lotte; o integralista Dr. Aurélio (Santos), simbolizando o cruzamento entre os ideais de superioridade germânica e o meio local; e Eurico (Vereza), caixeiro-viajante apolítico e ambicioso, hóspede regular do hotel e futuro marido de Gudrum.



Miriam Pires como Frau Lotte

Carlos Vereza no papel de Eurico



O Hotel Flórida, com o fim da guerra, torna-se referência para nazistas em fuga, principalmente para a Argentina. Assim, nos anos 50 os Kranz hospedam os casais SS Rose Marie (Lemmertz)/Kaput (Távora) e Merts (Wokolita)/Bruckner (Mota), que preenchem o ambiente de tensão física e psicológica. Eurico, refratário em lhes fornecer auxílio, recebe na carne, de forma crua, fria e brutal, mostras da superioridade e do poder de convencimento dos estrangeiros. Com eles os Kranz são obrigados a rememorar um passado dolorido, repleto de glórias efêmeras e ilusões perdidas.


O passado, que muitos preferem esquecer ou, no máximo, rememorar silenciosamente na solidão dos ambientes reservados, é o ponto central das preocupações de Sylvio Back em Aleluia, Gretchen. Motivo de orgulho ou vergonha, é o passado que alimenta os sobreviventes, fornecendo-lhes força para a continuidade da vida, ainda que a duras penas. Do passado ninguém escapa, parece dizer o diretor. É a raiz de nossa ligação com o mundo; contém os germes da nossa formação e os elementos que nos humanizam, apreciados ou não. E passado quer dizer História. Impõe lembranças constantemente reatualizadas, sobrevivências ou estruturas que nos embasam, que independem de nós e resistem à passagem do tempo.


Acima e abaixo, o treinamento da Juventude Hitlerista





Aleluia, Gretchen é o mais importante trabalho de Sylvio Back. Encerra uma etapa de aprendizado. Se não atinge a perfeição, está muito à frente das limitações quase artesanais que marcaram a condução dos longas anteriores, Lance maior e A guerra dos pelados. Momentos de notável intensidade dramática são conseguidos ao longo de uma narrativa que, apesar de linear, não lança mão da continuidade para ligar os blocos que a compõem. Essas unidades formam sequências que se completam; encerram pedaços de dramas que dão significado à saga de 40 anos dos Kranz; possuem início, meio e fim, ordenando-se em número de seis, separadas umas das outras por frações não definidas de tempo. Primeiro há a chegada da família Kranz ao Brasil e o recomeço da vida no Hotel Flórida. Seguem-se o treinamento de Josef com os membros da juventude hitlerista local (cenas prejudicadas pela censura, pois os rapazes estavam sempre nus demonstrando a pretensa superioridade física ariana) e seu retorno à Alemanha; o nascimento e morte de Gretchen; o casamento de Gudrum e Eurico; os anos de guerra com as hostilidades praticadas contra os imigrantes; e a acolhida aos nazistas em trânsito.


Por fim, há a incrível e engenhosa sequência de encerramento: o piquenique de confraternização ao qual comparecem todos os personagens, brasileiros e alemães, nazistas e integralistas, pretos e brancos, torturadores e torturados. Neste epílogo, ao som de inédito arranjo rock de A cavalgada das valquírias, de Wagner, pelo grupo O Terço, percebe-se que a passagem dos anos não significou o envelhecimento físico dos personagens. Apenas atualizou aparências. Mentalmente, também continuam os mesmos, crentes na força de ideias e convicções trazidas de longa data. Esse recurso dramático é ampliado por observações e comentários pronunciados ao longo da sequência: “Quando as ideias não envelhecem o corpo resiste”, diz Dr. Aurélio. Outro personagem afirma em tom questionador: “A história se repete, se imita, não lhe parece?”. Por fim, um participante observa profeticamente: “Continua fecundo o ventre de onde saiu essa gente”. São sentenças que informam a percepção que o diretor tem de História. Ao mesmo tempo contribuem para o espectador compreender as intenções narrativas. Mais que encenar um drama a respeito do nazismo, do integralismo e da imigração, Back quer saber dos fatos que sobreviveram a tão turbulento período. De forma proposital, não recorre à palavra “Fim” no encerramento do filme. Isto porque, conforme explicou, o drama encenado termina apenas na tela. Prossegue na vida real. A História continua.



Kate Hansen no papel de Heike e Elizabeth Destefanis como Inge


Os personagens, ao longo de quase todo o tempo, são captados na fixidez de planos próximos que evidenciam apenas rostos e, ocasionalmente, porções maiores dos corpos. Geralmente estão enclausurados e sentados. Não há, pois, muito espaço à movimentação dos atores. Portanto, não são as ações que definem os personagens mas os diálogos. Tudo é compartilhado com o espectador: conversas, discursos, monólogos, bate-papos, lamentações, exaltações e recordações. Este acaba envolvido na intimidade dos Kranz. É praticamente intimado a decifrar enigmas e metáforas em diversos trechos do filme.


Aleluia, Gretchen demandou muito tempo de preparo. Foram quatro meses de pré-produção, dois de filmagem em Blumenau e Curitiba, outros quatro para montagem e finalização. O resultado vale a pena. Dentre os últimos filmes produzidos no Brasil, é o de melhor elaboração. Chega a ser detalhista na reconstituição dos figurinos, ambientes e épocas. A direção de atores é um trunfo à parte. Difícil dizer quem interpreta melhor.


Eurico (Carlos Vereza) é submetido ao poder de convencimento do nazismo

  
Convidado a participar de vários festivais de cinema nacionais e internacionais, Aleluia, Gretchen recebeu 15 prêmios nas mais diversas categorias apenas em um ano. Também colecionou polêmicas, algumas gratuitas e estúpidas como a desencadeada por Alberto Cavalcanti, presidente do Júri no Festival de Brasília. Homem inteligente e cineasta de renome internacional que construiu a maior parte da carreira no exterior, Cavalcanti não se conteve. Não contente por não entender o filme, resolveu acusá-lo de fazer pregação do nazismo, uma incrível bobagem. Aliás, o Festival de Brasília foi o único a não conferir prêmios a Aleluia, Gretchen. Inconformado, o público vaiou o júri. Em compensação, no Festival de Gramado recebeu láureas pela Melhor Fotografia (José Medeiros) e Melhor Ator Coadjuvante (José Maria Santos). Da Air France conquistou prêmios para Melhor Direção e Melhor Atriz (Miriam Pires). Pela Associação Paulista dos Críticos de Arte foi agraciado pelo Melhor Roteiro (Sylvio Back, Oscar Volpini e Manoel Carlos Karan), Melhor Ator (Sérgio Hingst), Melhor Figurino (Afonso Burigo) e Melhor Cenografia (Ronaldo Leão Rego e Marcos Carrilho). Também recebeu a Coruja de Ouro nas categorias de Melhor Atriz (Miriam Pires) e Melhor Fotografia. Conquistou o Golfinho de Ouro para Melhor Direção. Da Embrafilme veio o Prêmio Qualidade. Por fim, foi brindado com o Troféu Governador do Estado de São Paulo para Melhor Argumento (Sylvio Back), Melhor Cenografia e Melhor Fotografia.



Eurico (Carlos Vereza), Frau Lotte (Miriam Pires), Professor Ross (Sérgio Hingst) e Gudrun (Selma Egrei)


Indicado pela Embrafilme para participar do Festival de Berlim, foi inexplicavelmente retirado da lista de concorrentes. Mas recebeu elogios entusiasmados nos festivais de Chicago e Manheim.






Roteiro: Sylvio Back, Oscar Volpini, Manoel Carlos Karan, a partir de um argumento de Sylvio Back. Diálogos: Sylvio Back. Fotografia (Eastmancolor): José Medeiros. Cenografia: Ronaldo Leão Rego, Marcos Carrilho. Montagem: Inácio Araújo. Figurinos: Afonso Burigo. Música: A cavalgada das valquírias, de Wagner, interpretada por O Terço; fragmentos de Avante, hino integralista de Plínio Salgado. Direção musical: Carlos Castilho. Assistente de direção: Manoel Carlos Karan. Diretor de produção: Plínio Garcia Sanchez. Tempo de exibição: 109 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1979)



[1] Apesar de surgir grafado como Silvio, inclusive no material de divulgação, o correto é Sylvio.
[2] Esta apreciação é de 1979. Atualmente, a afirmação carece de sentido. O Rio Grande do Sul é um dos mais dinâmicos pólos de produção e criatividade cinematográfica no Brasil, concentrando nomes como Jorge Furtado, Carlos Gerbase, Giba Assis Brasil, Ana Luísa de Azevedo, José Pedro Goulart, José Roberto Torero, Cecílio Neto etc., reunidos em torno da Casa de Cinema de Porto Alegre, produtora independente fundada em 1987.