domingo, 20 de maio de 2018

A DISNEY NOS ESFORÇOS PELA INDEPENDÊNCIA DA IRLANDA NO SÉCULO XVI

O produtor, diretor e roteirista irlandês Michael O'Herlihy teve a carreira praticamente limitada aos telefilmes e às telesséries. Graças à Walt Disney Productions, realizou para o cinema o hoje obscuro O valente Príncipe de Donegal (The fighting Prince of Donegal, 1966). O personagem-título, interpretado por Peter McEnery, passou à história como Red Hugh O’Donnell, sucessor do rei Hugh Roe O’Donnell da localidade de Tyrconnell, atual Donegal. Corria o quarto final do século XVI. Segundo lenda local, a hora da independência irlandesa, com a unificação de diversos clãs rivais pela casa O’Donnell, aconteceria quando Hugh assumisse por direito o trono de Hugh. O roteiro de Robert Westerby extraído da novela Red Hugh, Prince of Donegal, de Robert T. Reilley, toma várias liberdades históricas. A principal, talvez, é elevar a idade do personagem principal para a faixa dos 20 e poucos anos. Na verdade, estava com apenas 15 quando os ingleses o aprisionaram em Dublin. Escapou com a ajuda dos O’Neill. Conseguiu a unidade dos clãs e significativas vitórias contra o invasor. Contou inclusive com o apoio militar espanhol. O valente Príncipe de Donegal aborda rapidamente a ascensão de Red Hugh ao trono e os esforços pela unificação nacional. Detém-se por tempo considerável no período da prisão. Após a fuga, resume os esforços para a retomada do castelo da família, no qual a mãe (Peggy Marshall) e a prometida Kathleen McSweeney (Susan Hampshire) são mantidas na situação de reféns. Há boa reconstituição de época e adequada valorização da cor local com destaque para o mítico verde-esmeralda irlandês. O valente Príncipe de Donegal encerra um período no qual a Disney, por imposições fiscais, se valeu dos recursos cinematográficos e naturais britânicos para a realização de alguns filmes desde que adentrou na ficção live action com A ilha do tesouro (Treasure island, 1950), de Byron Haskin. Segue apreciação firmada em 1976.






O valente Príncipe de Donegal

The fighting Prince of Donegal

Direção:
Michael O'Herlihy
Produção:
Walt Disney (não creditado)
Walt Disney Productions
EUA, Inglaterra — 1966
Elenco:
Peter McEnery, Susan Hampshire, Tom Adams, Gordon Jackson, Andrew Keir, Norman Wooland, Bill Owen, Richard Leech, Peggy Marshall, Peter Jeffrey, Maurice Roëves, Marie Kean, Donal McCann, Fidelma Murphy, John Forbes-Robertson, Patrick Holt, Robert Cawdron, Maire O'Neill, Maire Ni Ghrainne, Roger Croucher, Keith McConnell, Inigo Jackson, Peter Cranwell e o não creditado Peter Brooks. 



O diretor Michael O'Herlihy


Por causa de imposições fiscais que retinham no Reino Unido considerável parte dos lucros de filmes da Walt Disney Productions aí exibidos, a empresa abriu a unidade de produção com atores reais e iniciou as atividades naquele país em 1950. Assim, poderia movimentar parte do capital não repatriado. Cerca de oito títulos foram filmados em locações e estúdios britânicos, começando por A ilha do tesouro (Treasure island, 1950), de Byron Haskin. Seguiram-se: Robin Hood, o justiceiro (The story of Robin Hood and his merrie men, 1952), de Ken Annakin; Entre a espada e a rosa (The sword and the rose, 1953), de Ken Annakin; O grande rebelde (Rob Roy: the highland rogue, 1953), de Harold French; A espada de um bravo (Kidnapped, 1960), de Robert Stevenson; O príncipe e o mendigo (The Prince and the pauper, 1962), de Don Chaffey; O cavaleiro da máscara negra (Dr. Syn, alias the Scarecrow, 1963); de James Neilson; O segredo das esmeraldas negras (The moon-spinners, 1964), de James Neilson; e, por fim, O valente Príncipe de Donegal.


Peter McEnery e Susan Hampshire nos papéis de Red Hugh O'Donnell e Kathleen McSweeney


Por trás da realização de Michael O'Herlihy há a real história do nobre jovem irlandês Red Hugh O’Donnell (1571-1602), filho do rei Hugh Roe O’Donnell da localidade de Tyrconnell, atual Donegal. Segundo os relatos, a família, desde 1500, tentava inutilmente atrair vários clãs rivais para costurar uma forte oposição militar e política aos invasores ingleses. Hugh Roe abdicou, isolando-se em um mosteiro. Red Hugh o sucedeu. Era a confirmação de uma lenda: Quando Hugh assumir o lugar de Hugh, é sinal de que chegou o momento de esquecer diferenças e desavenças locais. Os clãs deveriam ter apenas uma bandeira comum: a independência. Corria o ano de 1587. O jovem Príncipe de Donegal contava apenas 15 anos quando foi aprisionado no castelo do Vice-Rei Sir John Perrott (Wooland), em Dublin, por ordem da temerosa rainha Elizabeth I. Escapou em 1591 para ser imediatamente recapturado. Com a ajuda do clã O’Neill empreendeu nova e vitoriosa fuga em 1592. Tornou-se, aos 20 anos, The O'Donnell, Lord of Tyrconnel. Unificados os clãs, declarou guerra aos ingleses em 1593. Nos anos seguintes, principalmente entre 1596 e 1598, venceu os invasores em sucessivas batalhas. Apesar do reforço espanhol, não conseguiu evitar a derrota em 1602. Red Hugh O’Donnell buscou refúgio na Espanha. Enquanto negociava novo apoio militar de Felipe III, contraiu misteriosa enfermidade e faleceu. Segundo alguns historiadores, a morte resultou de envenenamento por um agente inglês infiltrado na corte. Não deixou herdeiros.


O valente Príncipe de Donegal tem roteiro de Robert Westerby extraído da novela Red Hugh, Prince of Donegal, de Robert T. Reilley. Tomou liberdades excessivas com os fatos, principalmente com a idade do personagem. Representado pelo esquálido e pouco convincente Peter McEnery, aparenta pouco mais de 20 anos ao cair prisioneiro dos ingleses. No filme, a sucessão acontece pelo falecimento de Hugh Roe O’Donnell. Red Hugh tenta levar adiante os esforços em prol da união dos clãs quando é capturado. Cerca de 50 minutos da trama são reservados às sequências no cárcere vigiado pelo pérfido Capitão Leeds (Jackson). Aí, passado algum tempo, o líder irlandês recebe a companhia dos também forçados Henry O'Neill (Adams) e Sean O’Toole (McCann). Foge com Henry graças ao valioso auxílio do carcereiro e servente Martin (Roëves).


Norman Wooland como Sir John Perrott

 Henry O'Neill (Tom Adams), Sean O'Toole (Donal McCann) e Red Hugh O'Donnell (Peter McEnery)

Lord McSweeney (Andrew Keir) e filha Kathleen McSweeney  (Susan Hampshire)


A jornada ao encontro da segurança é pontuada de percalços e alguns momentos de morna comicidade garantidos por Henry O’Neill. Os instantes decisivos se resumem à batalha pela recuperação do castelo dos O’Donnell, ocupado pelos ingleses e onde a mãe de Red Hugh, princesa Ineen (Marshall), e a prometida Kathleen McSweeney (Hampshire) são mantidas na situação de reféns.


A princesa Ineen (Peggy Marshall) e Kathleen McSweeney  (Susan Hampshire)


Filmado nos estúdios Pinewood e arredores do condado rural inglês de Iver Heath em Buckinghamshire, O valente Príncipe de Donegal tem convincente reconstituição de época e não descuidou da mítica cor local irlandesa: o verde-esmeralda, presente desde a sequência de abertura e preservada na aparência geral das paisagens. Infelizmente, a Walt Disney Productions perdeu a oportunidade de realizar uma boa aventura de capa-e-espada a partir de uma história em tudo promissora. O diretor Michael O’Herlihy até se esforça para ousar um pouco mais em um produto destinado ao consumo familiar. Porém, sente-se que foi contido. Os personagens irlandeses são enquadrados no modelo tão estereotipado pelo cinema: emotivos, beberrões, sentimentais, briguentos e bem humorados. Essa caracterização, dramática e comicamente tão adequada em filmes de John Ford, aqui não diz a que veio, apesar do talento de Andrew Keir no papel de Lord McSweeney. Tom Adams, o respiro cômico, é pouco aproveitado. A mocinha Kathleen McSweeney é vivida por uma insossa Susan Hampshire. Há brilho nos desempenhos de Donal McCann e Maurice Roëves, apesar de lhes sobrar pouco tempo em tela. Gordon Jackson tem oportunidades de demonstrar valor com mais intensidade. Afinal, os personagens malvados em histórias sobre feitos de gente heroica e boazinha são sempre os mais interessantes.


O bonitinho Peter McEnery não emplacou. Exame superficial de sua filmografia revela que teve poucas chances no cinema. Terminou restrito aos telefilmes e telesséries. Antes de viver Red Hugh O’Donnell teve papel de coadjuvante no notável Meu passado me condena (Victim, 1961), de Basil Dearden, e fez par romântico de Hayley Mills na razoável aventura disneyana O segredo das esmeraldas negras. Quando embarcou na aventura irlandesa de Michael O'Herlihy, havia experimentado o melhor momento na ocasião no fraco O perigoso jogo do amor (La curée, 1966), de Roger Vadin. O problema da atuação de McEnery em O valente Príncipe de Donegal resulta da opção de querer projetar mais um rosto simpático e sorridente e não necessariamente o líder arrojado e compromissado na luta pela independência da Irlanda.


Na prisão, Red Hugh O'Donnell (Peter McEnery) é  submetido ao algoz Capitão Leeds (Gordon Jackson)

O acerto de contas de Red Hugh O'Donnell (Peter McEnery)  com o Capitão Leeds (Gordon Jackson)


A direção de fotografia de Arthur Ibbetson e a trilha musical de George Bruns, baseada em temas tradicionais irlandeses, são pontos a destacar. A realização é, no mais das vezes, diversão descompromissada para espectadores pouco exigentes. É pena que os resultados gerais sejam tão corriqueiros. Havia potencial para retratar com mais substância uma época e um personagem tão pouco conhecidos.


Red Hugh O'Donnell (Peter McEnery) e  Kathleen McSweeney  (Susan Hampshire)

  
Para finalizar, uma curiosidade: o ator Mark Eden foi obrigado a abandonar as filmagens logo no início. Assim, perdeu um contrato de cinco anos com a Walt Disney Productions. Por obra do azar, torceu o tornozelo e terminou imobilizado após afundar a perna numa toca de coelho.





Roteiro: Robert Westerby, baseado na novela Red Hugh, Prince of Donegal, de Robert T. Reilley. Direção de fotografia (Technicolor): Arthur Ibbetson. Operador de câmera: Freddy Cooper. Direção de arte: Maurice Carter. Figurinos: Anthony Mendleson. Efeitos fotográficos especiais: Peter Ellenshaw. Montagem: Peter Boita. Música: George Bruns. Orquestração: Walter Sheets. Produção associada: Hugh Attwooll. Maquiagem: Harry Frampton. Penteados: Eileen Warwick. Continuidade: June Faithfull. Casting: Maude Spector. Primeiro assistente de montagem: Peter Keen (não creditado). Gravação de som: Ken Rawkins. Mixagem de som: Gordon K. McCallum. Gerente de produção: David C. Anderson. Assistente de direção: David Bracknell. Co-produção: Bill Anderson. Decoração: David Ffolkes. Segundo assistente de direção: Carl Mannin (não creditado). Terceiro assistente de direção: Michael Meighan (não creditado). Edição de som: Peter Keen. Operador de câmera sonora: Ted Karnon (não creditado). Operador de boom: Charlie McFadden (não creditado). Mixagem da combinação de sons: Otto Snel (não creditado). Dublês: Bill Weston, Richard O'Brien (acrobacias/não creditado). Assistentes de câmera (não creditados): Bill Knowles, Bert Mason, Alec Mills, Ron Robson. Fotografia de cena: Ricky Smith (não creditado). Direção musical: Eric Rogers. Secretaria de produção: Amy Allen (não creditada). Estúdio de mixagem de som: RCA Sound Recording. Tempo de exibição: 110 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1976)