domingo, 29 de dezembro de 2013

NELSON PEREIRA DOS SANTOS SENTA PRAÇA NA TENDA DE JORGE AMADO

Agraciado no Festival de Brasília com os Candangos de Melhor Filme e Melhor Direção, Tenda dos milagres (1977) é o décimo segundo longa de Nelson Pereira dos Santos, sua primeira incursão pelo universo de Jorge Amado e um dos mais importantes filmes brasileiros. Com estrutura complexa, apoiada em cinco eixos narrativos intercambiáveis, a realização é permeada por muito improviso, ironia e bom humor. O diretor prossegue na reinvenção cinematográfica a que se propôs com O amuleto de Ogum (1974), quando aderiu a um cinema mais livre, com temáticas apartadas de ideias consolidadas por teorias sociológicas e políticas em seu desvendamento da realidade brasileira. Assim, os setores populares, defendidos pelo cineasta, parecem emergir em cena a partir de seus próprios critérios, dispensando o apoio externo de uma consciência esclarecedora leninista. O negro Pedro Arcanjo (Jards Macalé e Juarez Paraíso), bedel da Faculdade de Medicina da Bahia, é o intelectual autodidata, cioso de suas origens e posição social, que enfrenta o beletrismo vazio da elite supostamente branca, de pretensões europeizantes, defensora de um ideal de ciência desprovido de bases empíricas na afirmação da inferioridade dos afrodescendentes e da miscigenação. O cineasta também revela as dificuldades para o resgate objetivo da memória de personalidades que a dominação cultural relegou ao esquecimento como do próprio esforço de se fazer cinema no Brasil. A apreciação, de 1978, foi revista e ampliada em 2000.






Tenda dos milagres

Direção:
Nelson Pereira dos Santos
Produção:
Nélson Pereira dos Santos, Tininho Nogueira Da Fonseca, Carlos Alberto Diniz, Francisco Drummond, Ney Sant’Anna, Ivan de Souza
Regina Filmes
Brasil — 1977
Elenco:
Juarez Paraíso, Jards Macalé, Hugo Carvana, Sônia Dias, Jofre Soares, Anecy Rocha, Franca Teixeira, Mãe Mirinha do Portal, Jehova de Carvalho, Manoel do Bonfim, Nildo Parente, Arildo Deda, Gildásio Leite, José Passos Neto, Nilda Spencer, Álvaro Guimarães, Fernanda Amado, Jurema Penna, Jorge Cerqueira de Amorim, Maria Adélia, Washington Fernandes, Emmanuel Cavalcanti, Luís da Muriçoca, Maria Pequena, Mãe Runho do Bogum, Geraldo Freire, Jorge Mello, Guido Araújo, Jenner Augusto, Carybé, Dorival Caymmi, Janete Ribeiro Silva, Severino Dadá, Mãe Menininha do Gantois, Liana Maria Graff, Elke Maravilha, Ana Maria Miranda, Calazans Neto, Glória Oliveira, Mestre Pastinha, Ana Lúcia dos Santos Reis, Mirabeau Sampaio, Santi Scaldaferri, Cid Teixeira, Laurence R. Wilson, Wilson Mello, Janete Ribeiro da Silva, Bob Lao, Cândido Jesus Silva, Lafrécio Solon, Raimundo Bumetti, Veleda Barreto, Zezinho, Teixeira França, Gilberto Nonato Sacramento, Otacílio de Carvalho, Lúcia Margarida, Tuna Espinheira, Vicente de Mello Franco, Ailton Cesário dos Santos, Higino Freire, Leonel Nunes, Eduardo Santos Araújo, Rodolfo Câmara Cavalcanti, João Gama Filho, Yulmara Rodrigues, Fernando Lona, Othoniel Serra, Marco Antônio Soares, Luciano Diniz, Armindo Jorge Baião, Diógenes Rebouças, Filhos do Terreiro de Opô Afonjá, Filhos do Terreiro de Gantois, Filhos do Terreiro de Mirinha do Portão, Filhos do Terreiro da Muriçoca, Cabelinho, Carlos Navarro Filho, Sônia Pereira, Tasso Paes Franco, Pedro Fomigli, Eduardo Cabus, Eduardo Cerqueira, Cláudio Tavares, Newton Macedo Campos, Carbogini Quaglia, Timo Andrade, Frederico de Souza Castro, Oswaldo dos Santos, Maria Romélia Oliveira, Cláudio Reis, Leni Silverstein, Rômulo Pastore, Cássio Ferreira de Oliveira, Paulo Roberto Tavares, Otto M. de Freitas, Chico Drummond, Tuda Queiroz, Simone Hoffman, Fernando Coni Campos, Tininho Fonseca, Katia Hugles Drummond, Nadja Miranda, Ildásio Tavares, Tales de Azevedo, Deraldino Mota, Solon Barreto, Maria Luisa Regis, Maria da Conceição, Maria de Lourdes, Maria Luisa Guimarães, Waldir Abrigaus, Lourival Costa de Assis, Waldemar Nobre, Demerval Chaves, Tuze de Abreu, James Amado, Maria Helena Ferreira, Barbeirinho, Camafeu de Oxossi, Alex Augusto Machado, João Amado, Hamilton José, Jesus Vivas, Antônio Barreto, Alberto Chicovrel Neto, Carlos Nascimento, Márcio Meireles, José Henrique Almeida, Alberto Soares, Zelito, Eduardo França, Federico Silva, Carlos Hora, José Chaves, Marcos Queiroz, Marise Queiroz, Sérgio Manoel Carvalho, Sérgio Carlos Barreto, José Henrique da Silva, Era da Encarnação.


O diretor Nelson Pereira dos Santos


Tenda dos milagres, décimo-segundo longa de Nelson Pereira dos Santos, é, sem dúvida, uma de suas mais importantes realizações. Pela primeira vez o diretor adapta uma obra de Jorge Amado, o romance homônimo lançado em 1969. As filmagens ocorreram num período em que o cinema flertava abertamente com o escritor. Praticamente ao mesmo tempo em que rodava Tenda dos milagres, dois outros romances do autor eram vertidos às telas: Dona Flor e seus dois maridos, por Bruno Barreto, e Os pastores da noite (alterado para Otália da Bahia), pelo francês Marcel Camus.


Tenda dos milagres segue a O amuleto de Ogum (1974) na filmografia de Nelson Pereira dos Santos. Este título assinalou uma guinada em sua carreira. Ele, na ocasião, declarou adesão à realização de filmes mais livres, emancipados de ideias consolidadas por teorias sociológicas e políticas. Assim, em vez de mirar o povo a partir de orientações intelectuais ou valores externamente concebidos, passou a observá-lo a partir desse próprio coletivo. De certo modo, as classes populares deixariam de ser objeto passivo do olhar do cineasta — embora ele se mantivesse comprometido com suas causas — e se tornariam sujeitos de seu próprio destino. O cinema e o realizador ofereceriam a elas recursos materiais e humanos para se expressar.


Tanto desligamento da parte de Nelson pode soar excessivamente despropositado ou, no limite, impossível de ser conseguido. Mesmo assim, foi feliz em seus propósitos. Tanto que em O amuleto de Ogum, com temática centrada na religiosidade popular (o candomblé) — e na influência desta sobre a visão-de-mundo e conduta daqueles que a professam —, não se percebe a presença de um viés crítico a tratar as crenças e rituais como alienações a combater — como fez Glauber Rocha em, por exemplo, Barravento (1961). Está ausente a percepção paternalista — ou autoritária — acerca do povo. Este, apesar de seus míticos "poderes", não é visto como necessitado da orientação de uma consciência esclarecedora, a ele externa. As massas são tratadas como realidades autônomas. Possuem porta-vozes próprios. Estão aptas a encontrar soluções a seus problemas. A religião, ao invés de tolhê-las, surge como autêntico e legítimo modo de expressão, inclusive no sentido mais pragmático: contém meios à superação de entraves os mais imediatos.


Para Nelson Pereira dos Santos, Jorge Amado sempre esteve sintonizado com as formas populares de expressão, traduzindo-as sem o peso dos preconceitos. Em seus livros o povo invade a cena livremente, amparado em seus próprios referenciais, afirma. Mais adiante — parecendo buscar legitimação à guinada que imprimiu à carreira a partir de 1974 —, Nelson completa: é "o segredo de Jorge [...] que o cinema brasileiro precisa encontrar"[1]. Assim, soa natural a opção em prosseguir na trilha aberta por O amuleto de Ogum com a adaptação de um romance do escritor baiano. Ancorado em seu próprio senso de oportunidade e na generosidade do autor, o cineasta não titubeou quando a possibilidade lhe sorriu em duas frentes: em primeiro lugar, o investidor Ronaldo Levinshon, do extinto Grupo Delfin, interessado na produção de filmes, adiantou-lhe recursos que viabilizaram a realização. Em segundo, Jorge Amado, admirador dos filmes de Nelson, praticamente nada cobrou pela cessão dos direitos de Tenda dos milagres. Esses teriam custado apenas 50 mil cruzeiros — quantia irrisória se comparada aos 100 mil dólares cobrados por Dona Flor e seus dois maridos e 20 mil dólares por Os pastores da noite.


Tenda dos milagres, o livro, conta uma saga iniciada nos últimos anos do século 19, que avança pela centúria seguinte por um período de quatro décadas. Tem como fio condutor e protagonista o personagem Pedro Arcanjo, negro pobre, cioso de suas origens e defensor dos valores de sua gente. Desprovido de lustro acadêmico mas intelectual autodidata, ganha a vida como bedel da Faculdade de Medicina da Bahia. Também é sambista, capoeirista, violinista e conquistador apaixonado de muitas mulheres. Arcanjo enfrentou as pregações racistas decorrentes do cientificismo europeu — que defendiam a inviabilidade de uma civilização moldada pelo sangue negro e, ademais, miscigenada —, abraçadas e propagadas pelo retórico beletrismo da elite branca local em suas pretensões de grandeza. Apoiado em pesquisas com farto uso de fontes empíricas, escreveu e publicou livros que destacavam as origens negras do povo brasileiro e desqualificavam as ilusões dos herdeiros das casas grandes que pretendiam se ver como brancos e europeus. Provou, para arrepio dos poderosos da terra, que todos os setores da formação social brasileira são irrigados por sangue africano e é absolutamente improcedente qualquer afirmação acerca de pureza racial no Brasil. Apesar de materialista, Arcanjo defendia as práticas religiosas de raiz africana — criminalizadas e reprimidas pelo catolicismo e pela polícia — por entendê-las como canais de expressão e reforço do orgulho de origem na luta contra o preconceito. Perseguido por suas ideias, perdeu o emprego e foi preso várias vezes. Morreu em idade avançada, marginalizado como sempre viveu. Sua memória foi relegada ao esquecimento, até chegar à Bahia, em 1968, procedente dos Estados Unidos, um premiado pesquisador e cientista social da Columbia University. Veio conhecer e estudar a vida e obra de Pedro Arcanjo, a quem reputa como o maior sociólogo, antropólogo e filósofo brasileiro em qualquer tempo. Também prefere comparecer às cerimônias do candomblé a tomar parte das recepções que lhe foram preparadas pelos grupos ilustrados locais.


Pedro Arcanjo (Jards Macalé) entre os estudantes da Faculdade de Medicina da Bahia


As intenções do visitante provocam alvoroço e perplexidade. Àquela altura, afinal, Pedro Arcanjo estava relegado ao ostracismo. Intelectuais, empresários e jornalistas se mobilizam para resgatá-lo. No entanto, atendendo aos interesses que sustentam os poderes locais, descaracterizam-no. O Pedro Arcanjo que emerge é embranquecido e esvaziado de suas origens e compromissos. É posto ao lado e no mesmo pedestal de pensadores contra os quais se bateu e que também renascem como incansáveis defensores da brasilidade e da generosidade de uma ideia totalmente vaga de democracia racial.


Nas filmagens de Tenda dos milagres, Nelson Pereira dos Santos guardou o máximo de fidelidade ao original. Neste sentido, seguiu as linhas mestras percorridas por Jorge Amado. O filme valoriza os "poderes do povo" sem se render às facilidades do espetáculo de gosto populista. É uma realização reflexiva e complexa, que revela as dificuldades de afirmação da cultura popular como realidade subalterna num contexto em que é fortemente reprimida, a ponto de ter seus próceres riscados da memória. O filme é estruturado para responder aos seguintes questionamentos: como tratar de um personagem histórico que foi largado ao esquecimento e do qual poucos vestígios restam nos dias que correm? Como tratá-lo objetivamente, não somente no sentido de lhe fazer justiça mas, principalmente, de reinseri-lo adequadamente no cenário histórico no qual viveu e lutou? De outro modo: Quem foi Pedro Arcanjo e o que ele poderia oferecer ao tempo presente que demanda o seu ressurgimento, ainda mais com o risco de passar pelo crivo da deformação histórica com o fim de atender aos interesses do poder e da manipulação da opinião pública?


Jards Macalé no papel de Pedro Arcanjo


As filmagens tiveram lugar em Salvador. Nelson se instalou com equipe e elenco na mal afamada região do Pelourinho, reduto de malandros e prostitutas. Antes de tudo, reconheceu o terreno e se familiarizou com a fauna local, expediente que rendeu frutos os mais positivos. A turma do pedaço legitimou a produção, fornecendo-lhe segurança, atores, figurantes e mão de obra. Mesmo assim, nem tudo correu tranquilamente. Contrariada com as condições de hospedagem, a baiana Anecy Rocha abandonou o barco com as filmagens em andamento, prejudicando bastante a solidez do papel que representava, o da professora Dra. Edelweiss Calazans. Outra desistência — por outros motivos — foi a do compositor Jards Macalé, escalado para interpretar Pedro Arcanjo ao longo de toda a sua vida. Como muitas cenas da juventude do personagem estavam filmadas, Nelson recorreu ao expediente de improvisar como ator o professor e artista plástico Juarez Paraíso, para viver Arcanjo na maturidade e velhice.


O filme, pode-se dizer, estrutura-se em cinco eixos narrativos intercambiáveis. No tempo presente, graças ao pesquisador estadunidense James D. Linvingston (Laurence R. Wilson) — levantando a cortina que ocultava Pedro Arcanjo de seus patrícios —, há os esforços de um jornal de Salvador, representado por seu editor, Dr. Zezinho (Wilson Jorge Mello) — unido a políticos, empresários e intelectuais — em homenagear Arcanjo nas comemorações do centenário do seu nascimento em um evento multimídia de grande porte. Porém, devido as muitas pressões que recebe, as dimensões do acontecimento são repensadas e seu impacto é atenuado em nome de uma abordagem de caráter oficial que falseia a memória do homenageado, para frustração da Dr. Edelweiss Calazans, que tem cancelado o seminário que apresentaria sobre o personagem. Paralelo a isso, há a realização de um filme financiado por Linvingston e dirigido pelo jornalista, sociólogo e poeta Fausto Pena (Carvana). A produção se esforça para conseguir o máximo de objetividade e fidelidade na problemática reconstituição da vida de Arcanjo diante da carência de fontes confiáveis de informação e das dificuldades inerentes à viabilização da atividade cinematográfica no Brasil, não só por questões operacionais, mas principalmente por fatores de ordem política. Tenda dos milagres e o filme dentro do filme não disfarçam o regime de exceção em vigor no país, pouco favorável à abordagem de temas relacionados ao resgate das lutas empreendidas por populares em busca de reconhecimento e afirmação e da valorização da memória de um pensador e líder não identificado com o establishment. Apesar de tudo, ocupava a presidência o General Ernesto Geisel e já se vivia o período conhecido como distensão, precursor da abertura. A todo momento Nelson insere na narrativa alguma alusão ao ainda incerto e contraditório clima político. Logo no começo, uma locutora de telejornal abre o programa comunicando "Tempo bom, temperatura amena". Mais adiante, na sala de edição do seu filme, Fausto Pena, quase sempre em diálogos com o montador Severino Dadá (o próprio), reclama da falta de apoio da Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes — órgão público distribuidor, produtor e fomentador do cinema brasileiro) enquanto tenta falar ao telefone com o seu presidente, Roberto Farias, ao mesmo tempo em que deixa escapar: "No Brasil falta amor ao cinema, coragem, comprometimento". Mais ao fim, perguntado por Dadá a respeito de passagens pouco esclarecedoras da parte final da vida de Pedro Arcanjo — não reveladas por Nelson e pelo filme dentro do filme — Fausto Pena responde, atento às dificuldades do momento: "Parece que andou se metendo em greves e em outras agitações políticas mas, como sabemos, essas coisas não são cinematográficas".


Fausto Pena (Hugo Carvana), jornalista, poeta e cineasta, diretor do filme dentro do filme

  
Os outros três blocos narrativos estão concentrados no passado e decorrem das reconstituições demandadas pela pesquisa e filme de Fausto Pena. O primeiro aborda a juventude de Pedro Arcanjo jovem, já atuando como bedel da Faculdade de Medicina da Bahia e envolvido com as manifestações populares enquanto correm soltas no meio acadêmico as pregações racistas por conta, principalmente, do professor Nilo Argolo (Nildo Parente). O bloco intermediário reconstitui a luta de Arcanjo em sua fase madura, como intelectual autodidata, pesquisando a influência no negro na formação social baiana e composição da família brasileira em geral, publicando a respeito e também defendendo as expressões religiosas populares contra a repressão policial aos terreiros e casas de santo. Neste período, a obra de Arcanjo é discutida e comentada em acalorados debates nas rodas universitárias por grupos que lhe são favoráveis e contrários, entre estes o arrogante e vazio professor Nilo Argolo, defensor da aprovação de leis segregacionistas. Em decorrência desses acontecimentos, Arcanjo é demitido e amarga várias prisões. O terceiro bloco aborda rapidamente a velhice de Arcanjo, período mais obscuro de sua vida, quando encontrou dificuldades de sobrevivência mas continuou na luta, envolvendo-se com movimentos sindicais e políticos, vindo a falecer, segundo o filme de Fausto Pena, durante manifestação popular em prol da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Já segundo os resquícios da memória popular, manifestadas quando Pena recebia as primeiras informações sobre Pedro Arcanjo, este teria falecido na zona boêmia, amparado por amigos e mulheres da vida, quando chegavam pelo rádio as primeiras notícias significativas sobre os revezes nazistas na guerra.


O professor universitário Nilo Argolo (Nildo Parente), defensor do branqueamento da raça e de práticas segregacionistas, adversário declarado de Pedro Arcanjo


Tenda dos milagres, complexo em sua estrutura narrativa multipolarizada, não é realização pretensiosa. Está muito longe disso. Pode-se dizer que possui andamento marcado pela informalidade tão característica das últimas realizações do diretor. É um filme solto, alimentado por muito improviso, ironia e bom humor. Tudo bastante condizente com o tema: a valorização da cultura popular que, impedida de se manifestar em ambiente de liberdade — diante das barreiras erguidas por uma elite envergonhada de suas origens —, aproveita toda e qualquer brecha para se mostrar viva e atuante. Nesse cenário de lutas e repressões constantemente reatualizadas, agiganta-se a figura do sempre altivo Pedro Arcanjo, tão parecido a um herói moldado pelo nosso modernismo tropicalista, sempre pronto a transformar ou a adaptar qualquer limitação em forma de expressão favorável à tradução do orgulho seu e de sua gente. Como diretor, Nelson Pereira dos Santos organiza Tenda dos milagres como um canal valorizador de expressões que o cinema brasileiro raras vezes apresentou com graus adequados de liberdade, sem a tutela dos guias externos e supostamente mais esclarecidos, dispensando também a visão carnavalizada e repleta de exotismo folclorizador acerca de nossas mais fundas raízes. Considerado o panorama geral da produção cinematográfica no Brasil, Tenda dos milagres está entre os poucos filmes que olharam para o povo e suas manifestações, desvencilhando-se de modo sincero das capas do preconceito envergonhado, tão favorável ao moralismo ordenador. Também merece destaque a trilha musical, com canções tão adequadas ao tema, desde Aquarela do Brasil, de Ary Barroso — composição tantas vezes tratada de forma oficialesca —, com suas referências ao mulato inzoneiro, bem como a inspiradíssima e envolvente Babá alapalá, de Gilberto Gil, com versos diretos e certeiros que perguntam pelos nossos ancestrais de sangue.


Jofre Soares interpreta o Coronel Gomes


Infelizmente, as versões atualmente reeditadas de Tenda dos milagres excluíram o poderoso e provocativo comentário embalado pela canção Revendo amigos, de Jards Macalé e Wally Salomão, apresentado próximo ao final da versão original lançada nos cinemas. Na manifestação que pede a participação do Brasil na Segunda Grande Guerra, antes de falecer o protagonista passa mal, fraqueja e cai na rua, momento em que é achincalhado por policiais. Simbolicamente renasce com o vigor e ímpeto da juventude, na pele de Jards Macalé; enfrenta e derrota os agressores ao embalo dos versos "Se me der na veneta eu vou/Se me der na veneta eu mato/Se me der na veneta eu morro/E volto p’ra curtir". Esse momento mágico — tão sugestivo às possibilidades de transcendência e resistência da cultura popular — era adequado, segundo Nelson Pereira dos Santos, a um período dominado pelo regime militar de exceção. Com a redemocratização política, o diretor achou por bem suprimi-lo em nome de uma abordagem mais materialista. Tal decisão, porém, parece que empobreceu o filme, esvaziando-o dos elementos que davam força ao tratamento da cultura popular e ao próprio modo de ser de Pedro Arcanjo. Ele, apesar de materialista, valorizava os elementos religiosos e mágicos da expressão do povo, conforme ressaltou ao personagem do amigo e marxista professor Fraga Neto (Gildásio Leite).


No quesito interpretações, percebe-se que Tenda dos milagre lançou mão de número considerável de não atores, improvisados entre amigos de Nelson, equipe técnica e população do Pelourinho. Mas o ponto problemático do elenco reside na participação da Sônia Dias como a insinuante, sensual e liberal Ana Mercedes, namorada de Fausto Pena. Decididamente, ela não convence. Sua personagem é dominada por um desempenho exageradamente forçado, o que não evitou o equívoco de premiá-la como Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Brasília. Neste evento, Tenda dos milagres também levantou os Candangos de Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Trilha Musical.


O montador Severino Dadá, lenda do cinema brasileiro, interpreta a si mesmo no filme de Nelson

  
O nome Tenda dos milagres batiza a pequena gráfica e ateliê de Lídio Corró (Manoel do Bonfim), amigo e compadre de Pedro Arcanjo, local ao qual convergem os debates e reuniões acerca da cultura popular. Aí também são impressos os livros em forma de brochura de autoria do protagonista.


De frente, a partir da esquerda, Lídio Corro (Manoel do Bonfim) e Pedro Arcanjo (Jards Macalé)


A sala de edição utilizada por Fausto Pena e Severino Dadá na montagem do filme dentro do filme pertence à Regina Filmes, empresa produtora de Nelson Pereira dos Santos.


Juarez Paraíso interpreta o maduro Pedro Arcanjo


Tenda dos milagres tem a penúltima interpretação de Anecy Rocha. A atriz, irmã de Glauber Rocha, faleceu tragicamente em 1977 — antes do lançamento do filme —, ao despencar no poço do elevador do prédio em que morava. Encerrou a carreira em A lira do delírio (1977), dirigido pelo marido Walter Lima Jr.


Um personagem em momento de transe religioso
Tenda dos milagres é um filme que valoriza os elementos mágicos e místicos da expressão popular


Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, com base em obra homônima de Jorge Amado, adaptada por Nelson Pereira dos Santos e Jorge Amado. Diálogos: Nelson Pereira dos Santos e Jorge Amado. Direção de fotografia (Eastmancolor): Hélio Silva. Canção-tema: Baba alapalá, de e com Gilberto Gil. Outras canções: Choro de arcanjo, de Jards Macalé; Rancho de kirsi, de Jards Macalé; Ojuoba-ba-o, de Jards Macalé e Wally Salomão; Revendo amigos, de Jards Macalé e Wally Salomão. Trilha musical: Jards Macalé, contendo passagens de Aída, de Giuseppe Verdi. Músicos: Djalma Corrêa (percussão), Paulo Guimarães (Flauta). Cenografia: Tizuka Yamasaki. Figurinos: Yurika Yamasaki. Guarda-roupa: Maria Luisa Regis. Camareira: Marina. Montagem: Severino Dadá, Raimundo Higino. Produção executiva: Ney Sant’Anna. Assistentes de direção: Agnaldo Siri Azevedo, Emmanuel Cavalcanti, Ana Maria Miranda. Penteados: Antônio de Souza Pacheco. Assistentes de cenografia: Marco Antônio Soares, Nil. Assistentes de câmera: Nonato Estrela, Sergio Lins Vertis. Gerente de produção: Albertino Nogueira da Fonseca. Efeitos sonoros: Geraldo José. Maquiagem: Antonio Pacheco. Som guia: Timo de Andrade, José Oswaldo de Andrade, Nonato Estrela. Direção de som: Roberto Melo Leite. Som: José Oswaldo de Andrade, Nonato Estrela. Eletricistas: Arnaud da Conceição, Sandoval Teixeira Dória. Eletricista-chefe: Ulisses Alves Moura. Assistente de eletricista: Edson Santos da Cruz. Fotografia de cena: Rino Marconi. Direção de produção: Albertino N. da Fonseca. Assistentes de produção: Carlos Alberto Diniz, Francisco Drummond, Ivan de Souza, Tininho Nogueira da Fonseca. Gerente de produção: Luís Fernando de Souza, José Teixeira. Motoristas: Caboclinho, Wibely Cobbet, Branco. Maquinistas: Geraldo Ferreira Tolentino, Sergipinho. Tempo de exibição: 148 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1978; revisto e ampliado em 2000)



[1] SANTOS, Nelson Pereira dos. Depoimento cultural sobre Tenda dos milagres. Filme Cultura, Rio de Janeiro: Embrafilme, p. 98, ago. 1978. Quando do lançamento de O amuleto de ogum, Nelson se apresentava aos jornalistas como se fosse um cineasta experimentando um processo de renascimento. Nas referências a essa realização, dizia: "É como se fosse o meu primeiro filme".

domingo, 22 de dezembro de 2013

A ESQUECIDA HERDEIRA DO ÚLTIMO CZAR ANISTIA A "IMORAL" INGRID BERGMAN

Anastácia, a princesa esquecida (Anastasia, 1956), de Anatole Litvak, recompõe as boas relações entre Ingrid Bergman e as moralistas e puritanas plateias estadunidenses. Estas não perdoaram o envolvimento amoroso da atriz — casada e mãe de uma filha — com o cineasta italiano Roberto Rossellini. Enxovalhada na imprensa e acusada de ser mau exemplo para as mulheres dos Estados Unidos, foi considerada persona non gratta e banida do país. Ela interpreta a amnésica Anna Koreff, treinada pelo General Sergei Pavlovich Bounine (Yul Brynner) para se passar pela princesa Anastasia Nikolaevna, filha do último czar, Nicolau II. A realização, apesar de bem cuidada, repleta de elegância, requinte e bom gosto, é excessivamente convencional e prolixa. Os figurinos, a direção de fotografia e a trilha musical resistem como valores à parte, juntamente com as interpretações, principalmente a de Helen Hayes no papel da imperatriz Maria Feodorovna. O Oscar de Melhor Atriz para Ingrid Bergman — o segundo de sua carreira — serviu mais como salvo-conduto ou certificado de anistia. Não que a atriz decepcione. Mas em 1956 a premiada deveria ser Carroll Baker por Boneca de carne (Baby Doll), de Elia Kazan.






Anastácia, a princesa esquecida
Anastasia

Direção:
Anatole Litvak
Produção:
Buddy Adler
20th Century-Fox
EUA — 1956
Elenco:
Ingrid Bergman, Yul Brynner, Helen Hayes, Akim Tamiroff, Martita Hunt, Felix Aylmer, Sascha Pitoëff, Ivan Desny, Natalie Schafer, Grégoire Gromoff, Karel Stepanek, Ina De La Haye, Katherine Kath e os não creditados Paul Bildt, Alexis Bobrinskoy, Marguerite Brennan, Paula Catton, Allan Cuthbertson, Maroussia Dimitrevitch, Edward Forsyth, Melvyn Hayes, Hy Hazell, Tutte Lemkow, André Mikhelson, Polycarpe Pavloff, Eric Pohlmann, Olaf Pooley, Peter Sallis, Tamara Shayne, Anatole Smirnoff, Olga Valéry, Henri Vidon, Stanley Zevic.



O diretor Anatole Litvak



Com Anastácia, a princesa esquecida, Ingrid Bergman conquistou o seu segundo Oscar de Melhor Atriz. O primeiro, em 1944, deveu-se ao papel da sofrida Paula Alquist em À meia luz (Gaslight, 1944), de George Cukor. O filme de Anatole Litvak também lhe garantiu o Globo de Ouro de Melhor Atriz Dramática, o prêmio do Círculo de Críticos de Cinema de Nova York para Melhor Atriz e o italiano David di Donatello de Melhor Atriz Estrangeira.


As premiações recebidas nos EUA, particularmente o Oscar, possuem significados especiais para Ingrid Bergman e as puritanas plateias do país. Estas praticamente a baniram por abandonar o marido Petter Lindstrom e a filha Pia em decorrência de seu envolvimento amoroso com o italiano Roberto Rossellini, então casado com Anna Magnani. Em 1945, com Roma, cidade aberta (Roma, città aperta), Rossellini inaugurou oficialmente o cinema neorrealista. O filme conseguiu imediata e estrondosa repercussão internacional. Emocionada, Ingrid Bergman escreveu ao diretor, oferecendo-se para trabalhar com ele. Após lamentar sua precariedade na língua italiana, terminou a missiva — segundo a lenda — com "Ti amo". De concreto, sabe-se que deixou a família e rumou para a Itália, com a cara e a coragem, em 1949, ao concluir Sob o signo de Capricórnio (Under Capricorn, 1949), de Alfred Hitchcock.


O ato escandalizou os Estados Unidos. Bergman ganhou fama de adúltera. Foi enxovalhada na imprensa e acusada de dar mau exemplo às mulheres do país. O caso, de tão rumoroso, provocou a intervenção do Governo Federal. Considerada persona non gratta, terminou banida. Como Charles Chaplin, entrou no mesmo caudal de moralismo e paranoia anticomunista que culminou com a triste e notória "caça às bruxas".


Ingrid Bergman passou 8 anos com Rossellini. Da união nasceram Roberto e as gêmeas Isotta e Isabella Rossellini. Sob direção do marido atuou em Stromboli (Stromboli, terra de Dio, 1950), Europa' 51 (Europa' 51, 1951), no segmento Ingrid Bergman de Nós, as mulheres (Siamo donne, 1953) — realização coletiva da qual também participaram Gianni Franciolini, Alfredo Guarini, Luchino Visconti e Luigi Zampa —; Viagem pela Itália (Viaggio in Italia, 1954), O medo (Non credo più all'amore/La paura, 1954) e Joana d'Arc de Rossellini (Giovanna d'arco al rogo, 1954). Em 1956 a relação chegou ao esgotamento. A atriz começou a ensaiar o retorno aos Estados Unidos. Nesse ano, na França, atuou em As estranhas coisas de Paris (Elena et les hommes), de Jean Renoir, e contatou produtores estadunidenses. Deram-lhe sinal verde para a volta, com o indispensável aval do público. A oportunidade surgiu com Anastácia, a princesa esquecida. Apesar de produzido pela estadunidense 20th Century-Fox, foi integralmente filmado em locações europeias[1].



Ingrid Bergman como Anna Koreff ou, supostamente, Anastasia, herdeira do último czar


A realização de Anatole Litvak contém os ingredientes básicos para a franca e ampla aceitação das plateias. A história gira em torno de um mistério que galvanizou, por anos, o imaginário ocidental, principalmente da oposição antissoviética: nem toda a família do Czar Nicolau II — Nikolái Alieksándrovich Románov  pereceu pelos revolucionários de Lênin em 17 de julho de 1918 na localidade de Ecaterimburgo. A princesa e Gran Duquesa Anastasia Nikolaevna teria escapado e se encontrava em algum lugar da Europa. O enigma ganhou força ao final dos anos 20, graças ao surgimento de Anna Anderson, apontada — inclusive pela própria —, como herdeira legítima dos Romanov. Diante disso, a produção de Anastácia, a princesa esquecida, cercou-se de cuidados. Contatou a pretendente — à época vivendo na Alemanha —, em busca de autorização para utilização do seu nome — o que acontece quando a ação se desloca para Copenhague.


O enigma só foi definitivamente esclarecido em 2007. Anna Anderson faleceu em 12 de fevereiro de 1984, aos 88 anos, nos Estados Unidos. Testes de DNA a partir da comparação do seu material genético com o do príncipe inglês Phillip, pertencente à linhagem dos Romanov, confirmaram a falsidade da pretendente[2].


Bounine (Yul Brynner) transforma a desmemoriada Anna Koreff  (Ingrid Bergman) na herdeira do czar

  
Anastácia, a princesa esquecida funciona bem, apesar de burocraticamente conduzido. A direção não soube ocultar as origens teatrais do argumento — a peça de Marcelle Maurette adaptada por Guy Bolton e roteirizada por Arthur Laurents. A narrativa é estruturada como um conto de fadas. Não faltam pitadas de romance e mistério, suportadas por muita licenciosidade histórica. Quase toda a ação, captada por um impessoal mas competente trabalho de câmera, transcorre em ambiente fechado. O poder de atração do filme depende integralmente dos atores. Estes não decepcionam, mas entregam somente o trivial.


Anatole Litvak é diretor pouco criativo, mas de comprovada eficácia e competência. Russo de origem, afrancesou o nome verdadeiro, Mikhail Anatol Litwak. Iniciou-se na direção em São Petersburgo, em 1925, com o obscuro Tatiana. Na Alemanha, fez assistência de direção para George Wilhelm Pabst, o que lhe permitiu ascender ao quadro de realizadores da UFA (Universum Film Aktien), posição na qual permaneceu de 1930 a 1932. Deixou o país com a ascensão do nazismo. Prosseguiu carreira na França e Inglaterra. O sucesso internacional de Mayerling (Mayerling, 1936) lhe abriu as portas dos Estados Unidos, onde estreou em 1937 com Inferno entre nuvens (The woman I love). Integrado à linha de montagem da produção hollywoodiana, tornou-se pau para toda obra em termos de modas e gêneros. Conduziu a carreira até 1969, com A moça no carro com óculos e o fuzil (The lady in the car with glasses and a gun)[3].


Segundo meus critérios, os filmes mais relevantes de Anatole Litvak — se bem que nenhum chega a ser particularmente emocionante[4] — são Confissões de um espião nazista (Confessions of a Nazy spy, 1939), Dois contra uma cidade inteira (City of conquest, 1940), Tudo isto e o céu também (All this and a heaven too, 1940), Quando a noite cai (Out of the fog, 1941), Uma vida por um fio (Sorry wrong number, 1948), Na cova das serpentes (The snake pit, 1948), Decisão antes do amanhecer (Decision before dawn, 1951), Mais forte que a morte (Act of Love, 1953), Crepúsculo vermelho (The journey, 1959), Mais uma vez adeus (Goodbye again, 1961) e A noite dos generais (The night of the generals, 1967).


A história de Anastácia, a princesa esquecida começa em 1928, na capital francesa. Paris é abrigo preferencial da nobreza czarista evadida por força da Revolução de Outubro. Chega a ser engraçado ver condes, generais e ministros sobrevivendo por esforço próprio, como taxistas, comerciantes e proprietários de casas noturnas. Celebra-se a Páscoa Russa. Uma mulher de aproximadamente 30 anos, aparentando desorientação, aproxima-se da Catedral Ortodoxa de Santo Alexandre Nevsky de Paris. Desperta a atenção de alguns homens. Logo se afasta, assustada. A câmera a acompanha até Ponte Alexandre III, sobre o Sena. Tem a intenção de se lançar às águas do rio. É contida por Sergei Pavlovich Bounine (Brynner), outrora general do czar. A mulher que salvou é Anna Koreff (Bergman). Recebeu alta de um sanatório. Solitária, vaga sem rumo, não tendo a quem apelar. Ela pode ser, de fato, Anastácia. Se não for, será útil da mesma forma aos planos de Bounine. Ele, Boris Adreivich Chernov (Tamiroff) e Piotr Ivanovich Petrovin (Pitoeff) almejam a posse de dez milhões de libras esterlinas depositadas no Banco da Inglaterra por Nicolau II, em benefício de seus herdeiros. Desconfiando do golpe, a instituição ameaçou o trio com prisão se não apresentar, em oito dias, provas da lisura de sua intenção.



O general Bounine (Yul Brynner) impede o suicídio de Anna Koreff (Ingrid Bergman)


Bounine, baseado nos profundos conhecimentos que tem da corte e da família do Nicolau II, pretende instruir Anna Koreff a se passar por Anastácia. Seus companheiros estão céticos com o sucesso da empreitada. Mas o confiante general vai em frente. Diante de um futuro de poucas esperanças, ela consente em participar do plano. Recebe, em regime intensivo, aulas acerca de tudo o que Anastácia deveria saber, ministradas pelo próprio Bounine, incansável como se fosse o professor Higgins, de Pigmalião[5], na educação de Eliza Doolittle.


A transformação de Anna Koreff em Anastácia necessita da mais absoluta perfeição. Afinal, ela deve se fazer crível não só ao Banco da Inglaterra, mas também à desconfiada nobreza russa no exílio, há muito tarimbada pelas inúmeras golpistas que se passaram pela princesa.



Bounine (Yul Brynner) e Anna Koreff (Ingrid Bergman)


Cansada do treinamento intensivo, demonstrando falta de confiança com o plano e sem nunca ter a verdadeira noção de quem realmente é, a personagem de Bergman reluta diversas vezes em continuar. Mas Bounine, sempre enérgico e autoritário, tem controle absoluto sobre ela. As lições rendem resultados além do esperado. A Anastácia de Koreff se mostra convincente para muitos nobres, que fornecem testemunhos abalizados de sua autenticidade. O próprio Bounine começa a duvidar da real identidade de Anna. Será de fato Anastácia? Evidentemente, acontece o óbvio: ambos se apaixonam mesmo jamais se declarando um ao outro. Bounine continua como o inflexível professor ao passo que Anna permanece em suas dúvidas. Forma-se uma situação ambígua, que não avança adequadamente devido à ausência de empatia entre Yul Brynner e Ingrid Bergman.


Chega o momento mais complicado do plano. A Anastácia de Koreff tem que conseguir o aval da mãe de Nicolau II, a amarga e praticamente reclusa imperatriz Maria Feodorovna (Hayes)[6], em Copenhague, Dinamarca. Ela perdeu toda a família para a Revolução e não quer passar por novas decepções. Inicialmente, reluta em receber a pretensa neta. Quando se deixa convencer, o filme atinge o clímax dramático. O encontro das personagens de Ingrid Bergman e Helen Hayes é marcado pela tensão, graças, principalmente, ao esforço das atrizes. A conversa entre ambas é longa e intensa, marcada por afirmações e negações, com exposições sobre a natureza e identidade do czarismo. Apesar de tudo, Anna Koreff se mostra crível para a matriarca. É reconhecida como a herdeira. Um baile é marcado, em Paris, para apresentá-la oficialmente à sociedade e confirmar suas bodas com o príncipe Paul Von Haraldberg (Desny), a quem estava prometida desde que eram crianças. A partir daí entra em evidência uma espécie de cansaço de Bounine com a missão, dado sintomático de sua paixão por Anna Koreff. Da parte dela acontece o mesmo.


A imperatriz Maria Feodorovna (Helen Hayes) diante de sua suposta neta (Ingrid Bergman)
O ápice dramático da realização


O baile começa. Mas Bounine, após conversa com Maria Feodorovna, pede para se retirar. A experiente imperatriz desconfia das argumentações do General. Pressente a paixão dele por Anastácia. Deixa-o aguardando num aposento e procura a neta, para uma conversa esclarecedora. A trama chega ao fim com os golpistas redimidos pelo amor. Maria Feodorovna consente na partida de ambos. O fato relevante para o espectador é que os personagens de Bergman e Brynner não são mais vistos. Cena alguma os mostra partindo juntos, o que deixa o epílogo aberto — algo não muito comum a uma produção hollywoodiana do período. As derradeiras tomadas mostram Maria Feodorovna se encaminhando para o salão do baile, acompanhada do Príncipe Paul — a esta altura devidamente ciente das novidades —, decidida simplesmente a comunicar o fim do jogo aos convidados e exortá-los a que voltem às suas casas.



Anna Koreff, reconhecida como Anastácia, com a rainha Maria Feodorovna (Helen Hayes)


Não há duvidas de que Anastácia, a princesa esquecida é bonito e bem cuidado, repleto de elegância, requinte e bom gosto. Mesmo assim, sua arquitetura não encanta totalmente. Talvez por ser excessivamente quadrado; e também por prolixidade e uma câmera que mantém tudo muito respeitosamente à distância. Figurinos e fotografia considerados isoladamente são insuficientes para tornar um filme plenamente satisfatório. Restam como acessórios aos quais faltou o essencial. Certamente há a inspirada trilha musical concebida por Alfred Newman que sobrevive como atração à parte. Seus acordes convidam ao sonho. O espectador de boa vontade, se fechar os olhos, será conduzido aos motivos russos nos quais se baseou o compositor. Infelizmente, quando da entrega do Oscar, Alfred Newman perdeu para o mais palatável Victor Young por A volta ao mundo em 80 dias (Around the world in eighty days, 1956), de Michael Anderson.


Quanto aos atores principais, Ingrid Bergman está bem, mas poderia render mais e melhor. Parece oprimida pelo intimidador Bounine de Yul Brynner. É certo que ela ganhou o Oscar. Mas as razões da premiação foram expostas no início do texto. Para se fazer justiça àquele 1956, a premiada deveria ser Carroll Baker por Boneca de carne (Baby Doll), de Elia Kazan, e, em segundo plano, Deborah Kerr por O rei e eu (The king and I), de Walter Lang. Desconheço Lágrimas do céu (The rainmaker), de Joseph Anthony, e Tara maldita (The bad seed), de Mervyn LeRoy, que indicaram, respectivamente, Katharine Hepburn e Nancy Kelly. Yul Brynner estava no auge da carreira quando interpretou Bounine. Em 1956 também foi Ramsés II em Os dez mandamentos (The ten commandments), de Cecil B. DeMille, e o rei Mongkut do Sião em O rei e eu, pelo qual ganhou o Oscar de Melhor Ator. Não sei em qual ordem foram realizados Anastácia, a princesa esquecida, Os dez mandamentos e O rei e eu, e mesmo que seja temerário fazer tal afirmação, tem-se a impressão de que há excessos de Ramsés II e de Mongkut no caráter de Bounine.


Bounine (Yul Brynner) e sua criação (Ingrid Bergman) diante dos jornalistas


Dentre os coadjuvantes há pequenas mas memoráveis participações de Helen Hayes, Martita Hunt, Akim Tamiroff e Sascha Pitoëff. A mais destacada, indubitavelmente, é a de Helen Hayes, soberba como Maria Feodorovna. E pensar que foi escalada por erro de comunicação! A atriz estava há muito afastada do cinema, em razão do falecimento da filha e da delicada saúde do marido. Na verdade, uma colega inglesa de nome semelhante deveria ficar com o papel: Helen Haye. Mas o responsável pelo contato acreditou em erro de grafia e enviou o convite para Helen Hayes. Com um semblante impassível, que parece ocultar decepções e amarguras, contida como uma imperatriz altiva segundo as representações por nós esculpidas à força de narrativas e do imaginário, o desempenho de Hayes confere alma ao filme. Ela vence facilmente o embate com Ingrid Bergman na sequência nervosa da realização. Por obra da injustiça das injustiças, sequer foi lembrada para o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Akim Tamiroff, Sascha Pitoëff e Martita Hunt humanizam o tom seco e grave da história com o alívio cômico que oferecem.


Anastácia, a princesa esquecida agradou produtores e público. Os sobreviventes da aristocracia russa exilada chegaram a ficar confusos, até indignados, com os excessos tomados. Mas, no geral, agradeceram à boa visibilidade conseguida.


Além do Oscar de Melhor Atriz para Ingrid Bergman, Anastácia, a princesa esquecida recebeu indicações da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas para Alfred Newman por Melhor Trilha Musical. Pela Associação de Jornalistas Estrangeiros baseados nos Estados Unidos foi indicado ao Globo de Ouro para Melhor Atriz Coadjuvante (Hayes). Em 1956, Yul Brynner fez jus aos prêmios do National Board of Review pelo conjunto das atuações que ofereceu em Os dez mandamentos, O rei e eu e Anastácia, a princesa esquecida. A mesma instituição incluiu a realização de Litvak entre os Dez Melhores Filmes do Ano.



Anna Koreff (Ingrid Bergman) posa de Anastácia para a rainha Maria Feodorovna (Helen Hayes) e a baronesa Elena von Livenbaum


Do British Academy of Film and Television Arts (BAFTA), Anastácia, a princesa esquecida indicou Arthur Laurents ao prêmio de Melhor Roteiro Britânico.


Ingrid Bergman, em 1974, recebeu o seu terceiro Oscar, desta vez como Melhor Atriz Coadjuvante por Assassinato no Expresso Oriente (Murder on the Orient Express, 1974), de Sidney Lumet.







Roteiro: Arthur Laurents, com base em peça de Marcelle Maurette adaptada por Guy Bolton. Direção de fotografia (Cinemascope, Color DeLuxe): Jack Hildyard. Música: Alfred Newman. Direção musical: Alfred Newman (não creditado). Figurinos: René Hubert. Montagem: Bert Bates. Direção de arte: Andrej Andrejew, William C. Andrews. Maquiagem: David Aylott. Assistente de diálogos: Paul Dickson. Penteados: Johnnie Johnson, Pearl Tipaldi (não creditado). Som: Harry M. Leonard, Gerry Turner. Decoração: Andrew Low. Arranjos de música russa: Michel Michelet. Assistente de direção: Gerry O'Hara. Orquestração: Edward B. Powell. Planejamento do set: John Graysmark (não creditado). Edição de som: Ralph Hickey (não creditado), Jim Leppert (não creditado). Foco: Gerry Fisher (não creditado). Maquinista: Dennis Fraser (não creditado). Operador de câmera: Peter Newbrook (não creditado). Supervisão de guarda-roupa: Sam Benson (não creditado). Joias: Joan Joseff (não creditado). Assistente de montagem: Lyman Hallowell (não creditado). Sistema de mixagem de som: Estereofônico em 4 canais pela Westrex Recording System. Tempo de exibição: 105 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1979; revisto e ampliado em 2010)



[1] O filme teve locações na França (Île de France, margens do Sena, Ponte Alexandre III e imediações da Catedral Ortodoxa Russa de Santo Alexandre Nevsky de Paris), Inglaterra (Hertfordshire, Knebworth House e Stevenage) e Dinamarca (Københavns Hovedbanegård e Tivoli de Copenhague).
[2] Algumas histórias acerca de Anna Anderson afirmam que seu nome real é Franziska Schanzkowska. De origem polonesa, com histórico de doença mental, foi atriz e operária. Não se sabe como passou a se identificar como Anastácia. O certo é que enganou muita gente, a ponto de ser criada uma associação pela defesa de seus direitos. A entidade foi extinta em pouco tempo, logo após Anna dançar nua sobre o telhado da residência de uma certa Princesa Xenia, que a acolheu em Manhattan, New York, em 1928. Esteve internada na Alemanha Ocidental, em instituição para doentes mentais, até meados dos anos 50. Casou-se em 1968, nos Estados Unidos, com professor da Universidade de Virginia. Jamais ficou inteiramente curada. Abandonada e na miséria, foi internada pela última vez em 1983. Viveu reclusa até a morte, em 1984. Cf. Anna Anderson in <http://pt.wikipedia.org/wiki/Anna_Anderson> acessado em 14 jul. 2010; Reviews and ratings for Anastasia in < http://www.imdb.com/title/tt0048947/reviews> Acessado em 14 jul. 2010.
[3] Cf. EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas. São Paulo: Nacional, 2002. p. 441; TULARD, Paul. Dicionário de cinema: os diretores. Porto Alegre: L&PM, 1996. p. 392-393; MOWIS, I. S. Biography for Anatole Litvak. Disponível em <http://www.imdb.com/name/nm0514822/bio?ref_=nm_ov_bio_sm> Acessado em 14 jul. 2010.
[4] As exceções, amparadas por lembranças remotas, são Confissões de um espião nazista, Dois contra uma cidade inteira e Uma vida por um fio.
[5] Na origem, Pygmalion, peça de George Bernard Shaw acerca dos esforços do professor Henry Higgins para transformar Eliza Doolittle, florista sem modos e traquejo social, no exemplo mais bem acabado de uma perfeita dama da alta sociedade. Há duas adaptações cinematográficas de renome: Pigmalião (Pygmalion, 1938), de Anthony Asquith e Leslie Howard, com Wendy Hiller fazendo Eliza Doolittle e Howard se passando pelo professor Higgins; e Minha bela dama (My fair lady, 1964), de George Cukor, com Audrey Hepburn e Rex Harrison nos referidos papéis.
[6] A Imperatriz Maria Feodorovna faleceu em Copenhague no mesmo ano em que se desenrola a trama do filme. Em 2006, seus restos morais foram transferidos para São Petersburgo.