Agraciado no Festival de Brasília com os Candangos de
Melhor Filme e Melhor Direção, Tenda dos milagres (1977) é o décimo
segundo longa de Nelson Pereira dos Santos, sua primeira incursão pelo universo
de Jorge Amado e um dos mais importantes filmes brasileiros. Com estrutura
complexa, apoiada em cinco eixos narrativos intercambiáveis, a realização é permeada
por muito improviso, ironia e bom humor. O diretor prossegue na reinvenção
cinematográfica a que se propôs com O amuleto de Ogum (1974), quando aderiu
a um cinema mais livre, com temáticas apartadas de ideias consolidadas por
teorias sociológicas e políticas em seu desvendamento da realidade brasileira.
Assim, os setores populares, defendidos pelo cineasta, parecem emergir em cena
a partir de seus próprios critérios, dispensando o apoio externo de uma
consciência esclarecedora leninista. O negro Pedro Arcanjo (Jards Macalé e
Juarez Paraíso), bedel da Faculdade de Medicina da Bahia, é o intelectual
autodidata, cioso de suas origens e posição social, que enfrenta o beletrismo
vazio da elite supostamente branca, de pretensões europeizantes, defensora de
um ideal de ciência desprovido de bases empíricas na afirmação da inferioridade
dos afrodescendentes e da miscigenação. O cineasta também revela as
dificuldades para o resgate objetivo da memória de personalidades que a
dominação cultural relegou ao esquecimento como do próprio esforço de se fazer
cinema no Brasil. A apreciação, de 1978, foi revista e ampliada em 2000.
Tenda dos milagres
Direção:
Nelson Pereira dos Santos
Produção:
Nélson Pereira dos Santos, Tininho
Nogueira Da Fonseca, Carlos Alberto Diniz, Francisco Drummond, Ney Sant’Anna,
Ivan de Souza
Regina Filmes
Brasil — 1977
Elenco:
Juarez Paraíso, Jards Macalé, Hugo
Carvana, Sônia Dias, Jofre Soares, Anecy Rocha, Franca Teixeira, Mãe Mirinha do
Portal, Jehova de Carvalho, Manoel do Bonfim, Nildo Parente, Arildo Deda, Gildásio
Leite, José Passos Neto, Nilda Spencer, Álvaro Guimarães, Fernanda Amado,
Jurema Penna, Jorge Cerqueira de Amorim, Maria Adélia, Washington Fernandes,
Emmanuel Cavalcanti, Luís da Muriçoca, Maria Pequena, Mãe Runho do Bogum,
Geraldo Freire, Jorge Mello, Guido Araújo, Jenner Augusto, Carybé, Dorival
Caymmi, Janete Ribeiro Silva, Severino Dadá, Mãe Menininha do Gantois, Liana
Maria Graff, Elke Maravilha, Ana Maria Miranda, Calazans Neto, Glória Oliveira,
Mestre Pastinha, Ana Lúcia dos Santos Reis, Mirabeau Sampaio, Santi
Scaldaferri, Cid Teixeira, Laurence R. Wilson, Wilson Mello, Janete Ribeiro da
Silva, Bob Lao, Cândido Jesus Silva, Lafrécio Solon, Raimundo Bumetti, Veleda
Barreto, Zezinho, Teixeira França, Gilberto Nonato Sacramento, Otacílio de
Carvalho, Lúcia Margarida, Tuna Espinheira, Vicente de Mello Franco, Ailton
Cesário dos Santos, Higino Freire, Leonel Nunes, Eduardo Santos Araújo, Rodolfo
Câmara Cavalcanti, João Gama Filho, Yulmara Rodrigues, Fernando Lona, Othoniel
Serra, Marco Antônio Soares, Luciano Diniz, Armindo Jorge Baião, Diógenes
Rebouças, Filhos do Terreiro de Opô Afonjá, Filhos do Terreiro de Gantois,
Filhos do Terreiro de Mirinha do Portão, Filhos do Terreiro da Muriçoca,
Cabelinho, Carlos Navarro Filho, Sônia Pereira, Tasso Paes Franco, Pedro
Fomigli, Eduardo Cabus, Eduardo Cerqueira, Cláudio Tavares, Newton Macedo
Campos, Carbogini Quaglia, Timo Andrade, Frederico de Souza Castro, Oswaldo dos
Santos, Maria Romélia Oliveira, Cláudio Reis, Leni Silverstein, Rômulo Pastore,
Cássio Ferreira de Oliveira, Paulo Roberto Tavares, Otto M. de Freitas, Chico
Drummond, Tuda Queiroz, Simone Hoffman, Fernando Coni Campos, Tininho Fonseca,
Katia Hugles Drummond, Nadja Miranda, Ildásio Tavares, Tales de Azevedo,
Deraldino Mota, Solon Barreto, Maria Luisa Regis, Maria da Conceição, Maria de Lourdes,
Maria Luisa Guimarães, Waldir Abrigaus, Lourival Costa de Assis, Waldemar
Nobre, Demerval Chaves, Tuze de Abreu, James Amado, Maria Helena Ferreira,
Barbeirinho, Camafeu de Oxossi, Alex Augusto Machado, João Amado, Hamilton
José, Jesus Vivas, Antônio Barreto, Alberto Chicovrel Neto, Carlos Nascimento,
Márcio Meireles, José Henrique Almeida, Alberto Soares, Zelito, Eduardo França,
Federico Silva, Carlos Hora, José Chaves, Marcos Queiroz, Marise Queiroz, Sérgio
Manoel Carvalho, Sérgio Carlos Barreto, José Henrique da Silva, Era da
Encarnação.
O diretor Nelson Pereira dos Santos |
Tenda dos
milagres, décimo-segundo longa de Nelson Pereira dos Santos, é, sem
dúvida, uma de suas mais importantes realizações. Pela primeira vez o diretor adapta
uma obra de Jorge Amado, o romance homônimo lançado em 1969. As filmagens ocorreram
num período em que o cinema flertava abertamente com o escritor. Praticamente
ao mesmo tempo em que rodava Tenda dos milagres, dois outros
romances do autor eram vertidos às telas: Dona Flor e seus dois maridos, por
Bruno Barreto, e Os pastores da noite (alterado para Otália da Bahia), pelo
francês Marcel Camus.
Tenda dos
milagres segue a O amuleto de Ogum (1974) na
filmografia de Nelson Pereira dos Santos. Este título assinalou uma guinada em
sua carreira. Ele, na ocasião, declarou adesão à realização de filmes mais
livres, emancipados de ideias consolidadas por teorias sociológicas e políticas.
Assim, em vez de mirar o povo a partir de orientações intelectuais ou valores
externamente concebidos, passou a observá-lo a partir desse próprio coletivo. De
certo modo, as classes populares deixariam de ser objeto passivo do olhar do
cineasta — embora ele se mantivesse comprometido com suas causas — e se
tornariam sujeitos de seu próprio destino. O cinema e o realizador ofereceriam a
elas recursos materiais e humanos para se expressar.
Tanto
desligamento da parte de Nelson pode soar excessivamente despropositado ou, no
limite, impossível de ser conseguido. Mesmo assim, foi feliz em seus
propósitos. Tanto que em O amuleto de Ogum, com temática
centrada na religiosidade popular (o candomblé) — e na influência desta sobre a
visão-de-mundo e conduta daqueles que a professam —, não se percebe a presença
de um viés crítico a tratar as crenças e rituais como alienações a combater — como
fez Glauber Rocha em, por exemplo, Barravento (1961). Está ausente a
percepção paternalista — ou autoritária — acerca do povo. Este, apesar de seus míticos
"poderes", não é visto como necessitado da orientação de uma
consciência esclarecedora, a ele externa. As massas são tratadas como
realidades autônomas. Possuem porta-vozes próprios. Estão aptas a encontrar soluções
a seus problemas. A religião, ao invés de tolhê-las, surge como autêntico e
legítimo modo de expressão, inclusive no sentido mais pragmático: contém meios à
superação de entraves os mais imediatos.
Para Nelson
Pereira dos Santos, Jorge Amado sempre esteve sintonizado com as formas
populares de expressão, traduzindo-as sem o peso dos preconceitos. Em seus
livros o povo invade a cena livremente, amparado em seus próprios referenciais,
afirma. Mais adiante — parecendo buscar legitimação à guinada que imprimiu à carreira
a partir de 1974 —, Nelson completa: é "o segredo de Jorge [...] que o
cinema brasileiro precisa encontrar"[1].
Assim, soa natural a opção em prosseguir na trilha aberta por O
amuleto de Ogum com a adaptação de um romance do escritor baiano. Ancorado
em seu próprio senso de oportunidade e na generosidade do autor, o cineasta não
titubeou quando a possibilidade lhe sorriu em duas frentes: em primeiro lugar,
o investidor Ronaldo Levinshon, do extinto Grupo Delfin, interessado na
produção de filmes, adiantou-lhe recursos que viabilizaram a realização. Em
segundo, Jorge Amado, admirador dos filmes de Nelson, praticamente nada cobrou
pela cessão dos direitos de Tenda dos milagres. Esses teriam
custado apenas 50 mil cruzeiros — quantia irrisória se comparada aos 100 mil
dólares cobrados por Dona Flor e seus dois maridos e 20
mil dólares por Os pastores da noite.
Tenda dos milagres, o livro, conta
uma saga iniciada nos últimos anos do século 19, que avança pela centúria
seguinte por um período de quatro décadas. Tem como fio condutor e protagonista
o personagem Pedro Arcanjo, negro pobre, cioso de suas origens e defensor dos
valores de sua gente. Desprovido de lustro acadêmico mas intelectual autodidata,
ganha a vida como bedel da Faculdade de Medicina da Bahia. Também é sambista,
capoeirista, violinista e conquistador apaixonado de muitas mulheres. Arcanjo
enfrentou as pregações racistas decorrentes do cientificismo europeu — que defendiam a inviabilidade de uma
civilização moldada pelo sangue negro e, ademais, miscigenada —, abraçadas e
propagadas pelo retórico beletrismo da elite branca local em suas pretensões de
grandeza. Apoiado em pesquisas com farto uso de fontes empíricas, escreveu e
publicou livros que destacavam as origens negras do povo brasileiro e
desqualificavam as ilusões dos herdeiros das casas grandes que pretendiam se
ver como brancos e europeus. Provou, para arrepio dos poderosos da terra, que
todos os setores da formação social brasileira são irrigados por sangue
africano e é absolutamente improcedente qualquer afirmação acerca de pureza
racial no Brasil. Apesar de materialista, Arcanjo defendia as práticas religiosas
de raiz africana — criminalizadas e reprimidas pelo catolicismo e pela polícia
— por entendê-las como canais de expressão e reforço do orgulho de origem na
luta contra o preconceito. Perseguido por suas ideias, perdeu o emprego e foi
preso várias vezes. Morreu em idade avançada, marginalizado como sempre viveu.
Sua memória foi relegada ao esquecimento, até chegar à Bahia, em 1968, procedente
dos Estados Unidos, um premiado pesquisador e cientista social da Columbia
University. Veio conhecer e estudar a vida e obra de Pedro Arcanjo, a quem
reputa como o maior sociólogo, antropólogo e filósofo brasileiro em qualquer
tempo. Também prefere comparecer às cerimônias do candomblé a tomar parte das
recepções que lhe foram preparadas pelos grupos ilustrados locais.
Pedro Arcanjo (Jards Macalé) entre os estudantes da Faculdade de Medicina da Bahia |
As intenções do
visitante provocam alvoroço e perplexidade. Àquela altura, afinal, Pedro
Arcanjo estava relegado ao ostracismo. Intelectuais, empresários e jornalistas
se mobilizam para resgatá-lo. No entanto, atendendo aos interesses que sustentam
os poderes locais, descaracterizam-no. O Pedro Arcanjo que emerge é
embranquecido e esvaziado de suas origens e compromissos. É posto ao lado e no
mesmo pedestal de pensadores contra os quais se bateu e que também renascem
como incansáveis defensores da brasilidade e da generosidade de uma ideia
totalmente vaga de democracia racial.
Nas filmagens de Tenda
dos milagres, Nelson Pereira dos Santos guardou o máximo de fidelidade
ao original. Neste sentido, seguiu as linhas mestras percorridas por Jorge Amado.
O filme valoriza os "poderes do povo" sem se render às facilidades do
espetáculo de gosto populista. É uma realização reflexiva e complexa, que
revela as dificuldades de afirmação da cultura popular como realidade subalterna
num contexto em que é fortemente reprimida, a ponto de ter seus próceres
riscados da memória. O filme é estruturado para responder aos seguintes
questionamentos: como tratar de um personagem histórico que foi largado ao
esquecimento e do qual poucos vestígios restam nos dias que correm? Como
tratá-lo objetivamente, não somente no sentido de lhe fazer justiça mas,
principalmente, de reinseri-lo adequadamente no cenário histórico no qual viveu
e lutou? De outro modo: Quem foi Pedro Arcanjo e o que ele poderia oferecer ao
tempo presente que demanda o seu ressurgimento, ainda mais com o risco de
passar pelo crivo da deformação histórica com o fim de atender aos interesses
do poder e da manipulação da opinião pública?
Jards Macalé no papel de Pedro Arcanjo |
As filmagens
tiveram lugar em
Salvador. Nelson se instalou com equipe e elenco na mal
afamada região do Pelourinho, reduto de malandros e prostitutas. Antes de tudo,
reconheceu o terreno e se familiarizou com a fauna local, expediente que rendeu
frutos os mais positivos. A turma do pedaço legitimou a produção,
fornecendo-lhe segurança, atores, figurantes e mão de obra. Mesmo assim, nem
tudo correu tranquilamente. Contrariada com as condições de hospedagem, a
baiana Anecy Rocha abandonou o barco com as filmagens em andamento,
prejudicando bastante a solidez do papel que representava, o da professora Dra.
Edelweiss Calazans. Outra desistência — por outros motivos — foi a do compositor
Jards Macalé, escalado para interpretar Pedro Arcanjo ao longo de toda a sua vida.
Como muitas cenas da juventude do personagem estavam filmadas, Nelson recorreu
ao expediente de improvisar como ator o professor e artista plástico Juarez
Paraíso, para viver Arcanjo na maturidade e velhice.
O filme, pode-se
dizer, estrutura-se em cinco eixos narrativos intercambiáveis. No tempo
presente, graças ao pesquisador estadunidense James D. Linvingston (Laurence R.
Wilson) — levantando a cortina que ocultava Pedro Arcanjo de seus patrícios —,
há os esforços de um jornal de Salvador, representado por seu editor, Dr.
Zezinho (Wilson Jorge Mello) — unido a políticos, empresários e intelectuais — em homenagear Arcanjo
nas comemorações do centenário do seu nascimento em um evento multimídia de
grande porte. Porém, devido as muitas pressões que recebe, as dimensões do
acontecimento são repensadas e seu impacto é atenuado em nome de uma abordagem
de caráter oficial que falseia a memória do homenageado, para frustração da Dr.
Edelweiss Calazans, que tem cancelado o seminário que apresentaria sobre o
personagem. Paralelo a isso, há a realização de um filme financiado por
Linvingston e dirigido pelo jornalista, sociólogo e poeta Fausto Pena (Carvana).
A produção se esforça para conseguir o máximo de objetividade e fidelidade na problemática
reconstituição da vida de Arcanjo diante da carência de fontes confiáveis de
informação e das dificuldades inerentes à viabilização da atividade
cinematográfica no Brasil, não só por questões operacionais, mas principalmente
por fatores de ordem política. Tenda dos milagres e o filme dentro
do filme não disfarçam o regime de exceção em vigor no país, pouco favorável à
abordagem de temas relacionados ao resgate das lutas empreendidas por populares
em busca de reconhecimento e afirmação e da valorização da memória de um
pensador e líder não identificado com o establishment.
Apesar de tudo, ocupava a presidência o General Ernesto Geisel e já se vivia o
período conhecido como distensão,
precursor da abertura. A todo momento
Nelson insere na narrativa alguma alusão ao ainda incerto e contraditório clima
político. Logo no começo, uma locutora de telejornal abre o programa
comunicando "Tempo bom, temperatura amena". Mais adiante, na sala de
edição do seu filme, Fausto Pena, quase sempre em diálogos com o montador
Severino Dadá (o próprio), reclama da falta de apoio da Embrafilme (Empresa
Brasileira de Filmes — órgão público distribuidor, produtor e fomentador do
cinema brasileiro) enquanto tenta falar ao telefone com o seu presidente,
Roberto Farias, ao mesmo tempo em que deixa escapar: "No Brasil falta amor
ao cinema, coragem, comprometimento". Mais ao fim, perguntado por Dadá a
respeito de passagens pouco esclarecedoras da parte final da vida de Pedro
Arcanjo — não reveladas por Nelson e pelo filme dentro do filme — Fausto Pena
responde, atento às dificuldades do momento: "Parece que andou se metendo
em greves e em outras agitações políticas mas, como sabemos, essas coisas não
são cinematográficas".
Fausto Pena (Hugo Carvana), jornalista, poeta e cineasta, diretor do filme dentro do filme |
Os outros três
blocos narrativos estão concentrados no passado e decorrem das reconstituições
demandadas pela pesquisa e filme de Fausto Pena. O primeiro aborda a juventude
de Pedro Arcanjo jovem, já atuando como bedel da Faculdade de Medicina da Bahia
e envolvido com as manifestações populares enquanto correm soltas no meio
acadêmico as pregações racistas por conta, principalmente, do professor Nilo
Argolo (Nildo Parente). O bloco intermediário reconstitui a luta de Arcanjo em
sua fase madura, como intelectual autodidata, pesquisando a influência no negro
na formação social baiana e composição da família brasileira em geral,
publicando a respeito e também defendendo as expressões religiosas populares
contra a repressão policial aos terreiros e casas de santo. Neste período, a
obra de Arcanjo é discutida e comentada em acalorados debates nas rodas
universitárias por grupos que lhe são favoráveis e contrários, entre estes o arrogante
e vazio professor Nilo Argolo, defensor da aprovação de leis segregacionistas. Em
decorrência desses acontecimentos, Arcanjo é demitido e amarga várias prisões. O
terceiro bloco aborda rapidamente a velhice de Arcanjo, período mais obscuro de
sua vida, quando encontrou dificuldades de sobrevivência mas continuou na luta,
envolvendo-se com movimentos sindicais e políticos, vindo a falecer, segundo o
filme de Fausto Pena, durante manifestação popular em prol da entrada do Brasil
na Segunda Guerra Mundial. Já segundo os resquícios da memória popular,
manifestadas quando Pena recebia as primeiras informações sobre Pedro Arcanjo,
este teria falecido na zona boêmia, amparado por amigos e mulheres da vida,
quando chegavam pelo rádio as primeiras notícias significativas sobre os
revezes nazistas na guerra.
O professor universitário Nilo Argolo (Nildo Parente), defensor do branqueamento da raça e de práticas segregacionistas, adversário declarado de Pedro Arcanjo |
Tenda dos
milagres, complexo em sua estrutura narrativa multipolarizada, não
é realização pretensiosa. Está muito longe disso. Pode-se dizer que possui andamento
marcado pela informalidade tão característica das últimas realizações do
diretor. É um filme solto, alimentado por muito improviso, ironia e bom humor.
Tudo bastante condizente com o tema: a valorização da cultura popular que,
impedida de se manifestar em ambiente de liberdade — diante das barreiras
erguidas por uma elite envergonhada de suas origens —, aproveita toda e
qualquer brecha para se mostrar viva e atuante. Nesse cenário de lutas e
repressões constantemente reatualizadas, agiganta-se a figura do sempre altivo
Pedro Arcanjo, tão parecido a um herói moldado pelo nosso modernismo
tropicalista, sempre pronto a transformar ou a adaptar qualquer limitação em
forma de expressão favorável à tradução do orgulho seu e de sua gente. Como
diretor, Nelson Pereira dos Santos organiza Tenda dos milagres como
um canal valorizador de expressões que o cinema brasileiro raras vezes apresentou
com graus adequados de liberdade, sem a tutela dos guias externos e
supostamente mais esclarecidos, dispensando também a visão carnavalizada e repleta
de exotismo folclorizador acerca de nossas mais fundas raízes. Considerado o
panorama geral da produção cinematográfica no Brasil, Tenda dos milagres está
entre os poucos filmes que olharam para o povo e suas manifestações, desvencilhando-se
de modo sincero das capas do preconceito envergonhado, tão favorável ao
moralismo ordenador. Também merece destaque a trilha musical, com canções tão
adequadas ao tema, desde Aquarela do Brasil, de Ary Barroso —
composição tantas vezes tratada de forma oficialesca —, com suas referências ao
mulato inzoneiro, bem como a
inspiradíssima e envolvente Babá alapalá, de Gilberto Gil, com
versos diretos e certeiros que perguntam pelos nossos ancestrais de sangue.
Jofre Soares interpreta o Coronel Gomes |
Infelizmente, as
versões atualmente reeditadas de Tenda dos milagres excluíram o
poderoso e provocativo comentário embalado pela canção Revendo amigos, de Jards
Macalé e Wally Salomão, apresentado próximo ao final da versão original lançada
nos cinemas. Na manifestação que pede a participação do Brasil na Segunda Grande
Guerra, antes de falecer o protagonista passa mal, fraqueja e cai na rua,
momento em que é achincalhado por policiais. Simbolicamente renasce com o
vigor e ímpeto da juventude, na pele de Jards Macalé; enfrenta e derrota os
agressores ao embalo dos versos "Se me der na veneta eu vou/Se me der na
veneta eu mato/Se me der na veneta eu morro/E volto p’ra curtir". Esse
momento mágico — tão sugestivo às possibilidades de transcendência e
resistência da cultura popular — era adequado, segundo Nelson Pereira dos
Santos, a um período dominado pelo regime militar de exceção. Com a
redemocratização política, o diretor achou por bem suprimi-lo em nome de uma
abordagem mais materialista. Tal decisão, porém, parece que empobreceu o filme,
esvaziando-o dos elementos que davam força ao tratamento da cultura popular e
ao próprio modo de ser de Pedro Arcanjo. Ele, apesar de materialista,
valorizava os elementos religiosos e mágicos da expressão do povo, conforme
ressaltou ao personagem do amigo e marxista professor Fraga Neto (Gildásio
Leite).
No quesito
interpretações, percebe-se que Tenda dos milagre lançou mão de
número considerável de não atores, improvisados entre amigos de Nelson, equipe
técnica e população do Pelourinho. Mas o ponto problemático do elenco reside na
participação da Sônia Dias como a insinuante, sensual e liberal Ana Mercedes,
namorada de Fausto Pena. Decididamente, ela não convence. Sua personagem é
dominada por um desempenho exageradamente forçado, o que não evitou o equívoco
de premiá-la como Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Brasília. Neste
evento, Tenda dos milagres também levantou os Candangos de Melhor
Filme, Melhor Direção e Melhor Trilha Musical.
O montador Severino Dadá, lenda do cinema brasileiro, interpreta a si mesmo no filme de Nelson |
O nome Tenda
dos milagres batiza a pequena gráfica e ateliê de Lídio Corró (Manoel
do Bonfim), amigo e compadre de Pedro Arcanjo, local ao qual convergem os
debates e reuniões acerca da cultura popular. Aí também são impressos os livros
em forma de brochura de autoria do protagonista.
De frente, a partir da esquerda, Lídio Corro (Manoel do Bonfim) e Pedro Arcanjo (Jards Macalé) |
A sala de edição
utilizada por Fausto Pena e Severino Dadá na montagem do filme dentro do filme
pertence à Regina Filmes, empresa produtora de Nelson Pereira dos Santos.
Juarez Paraíso interpreta o maduro Pedro Arcanjo |
Tenda dos
milagres tem a penúltima interpretação de Anecy Rocha. A atriz,
irmã de Glauber Rocha, faleceu tragicamente em 1977 — antes do lançamento do
filme —, ao despencar no poço do elevador do prédio em que morava. Encerrou a
carreira em A lira do delírio (1977), dirigido pelo marido Walter Lima Jr.
Um personagem em momento de transe religioso Tenda dos milagres é um filme que valoriza os elementos mágicos e místicos da expressão popular |
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, com base em obra
homônima de Jorge Amado, adaptada por Nelson Pereira dos Santos e Jorge Amado. Diálogos: Nelson Pereira dos Santos e
Jorge Amado. Direção de fotografia (Eastmancolor):
Hélio Silva. Canção-tema: Baba
alapalá, de e com Gilberto Gil. Outras
canções: Choro de arcanjo, de Jards Macalé; Rancho de kirsi, de Jards
Macalé; Ojuoba-ba-o, de Jards Macalé e Wally Salomão; Revendo
amigos, de Jards Macalé e Wally Salomão. Trilha musical: Jards Macalé, contendo passagens de Aída,
de Giuseppe Verdi. Músicos: Djalma
Corrêa (percussão), Paulo Guimarães (Flauta). Cenografia: Tizuka Yamasaki. Figurinos:
Yurika Yamasaki. Guarda-roupa: Maria
Luisa Regis. Camareira: Marina. Montagem: Severino Dadá, Raimundo
Higino. Produção executiva: Ney Sant’Anna.
Assistentes de direção: Agnaldo Siri
Azevedo, Emmanuel Cavalcanti, Ana Maria Miranda. Penteados: Antônio de Souza Pacheco. Assistentes de cenografia: Marco Antônio Soares, Nil. Assistentes de câmera: Nonato Estrela,
Sergio Lins Vertis. Gerente de produção:
Albertino Nogueira da Fonseca. Efeitos
sonoros: Geraldo José. Maquiagem:
Antonio Pacheco. Som guia: Timo de
Andrade, José Oswaldo de Andrade, Nonato Estrela. Direção de som: Roberto Melo Leite. Som: José Oswaldo de Andrade, Nonato Estrela. Eletricistas: Arnaud da Conceição, Sandoval Teixeira Dória. Eletricista-chefe: Ulisses Alves Moura.
Assistente de eletricista: Edson
Santos da Cruz. Fotografia de cena: Rino
Marconi. Direção de produção:
Albertino N. da Fonseca. Assistentes de
produção: Carlos Alberto Diniz, Francisco Drummond, Ivan de Souza, Tininho
Nogueira da Fonseca. Gerente de
produção: Luís Fernando de Souza, José Teixeira. Motoristas: Caboclinho, Wibely Cobbet, Branco. Maquinistas: Geraldo Ferreira Tolentino, Sergipinho. Tempo de exibição: 148 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1978; revisto e ampliado em
2000)
[1] SANTOS, Nelson Pereira dos. Depoimento cultural
sobre Tenda dos milagres. Filme Cultura, Rio de Janeiro:
Embrafilme, p. 98, ago. 1978. Quando do lançamento de O amuleto de ogum, Nelson
se apresentava aos jornalistas como se fosse um cineasta experimentando um
processo de renascimento. Nas referências a essa realização, dizia: "É
como se fosse o meu primeiro filme".
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