domingo, 5 de janeiro de 2014

A COPACABANA DOS SOLITÁRIOS E DESESPERADOS EM VISCERAL MELODRAMA DE BRUNO BARRETO

Em 1979, ao escrever esta apreciação, fui contra a percepção de boa parte da crítica. Previ que Amor bandido (1978) receberia com o tempo o devido reconhecimento. Trinta e cinco anos depois não sei se a profecia se concretizou. Mas gostei bastante deste melodrama de conotações policiais, orquestrado como um visceral bolero de nervos expostos, ambientado numa Copacabana sombria, desglamourizada e decadente. O roteiro de Leopoldo Serran recebeu tratamento mais que adequado de Bruno Barreto. Ele opera uma câmera nervosa, quase sempre na mão. A fotografia de cores quentes expõe a tensão dos ambientes e a alma sofrida de personagens desprovidos de horizontes, perdidos na impessoalidade da selva urbana governada pela máxima "Quem bobeia sobra! Não tem cadeira para todo mundo!". Os promissores e atualmente desaparecidos Paulo Guarnieri e Cristina Aché oferecem desempenhos corajosos e intensos. Pode-se dizer que o filme a eles pertence.






Amor bandido

Direção:
Bruno Barreto
Produção:
Luís Carlos Barreto, Walter Clark
Carnaval Unifilm, Companhia Cinematográfica Serrador, Filmes do Triângulo, Gaumont do Brasil, Luiz Carlos Barreto Produções Cinematográficas, Walter Clark Produções Cinematográficas
Brasil — 1978
Elenco:
Paulo Gracindo, Cristina Aché, Paulo Guarnieri, Ligia Diniz, Flávio São Thiago, Hélio Ary, Venício Salvatori, José Dumont, Roberto Husbands, Ana Maria Miranda, Luis Antonio, Alvimar Aparecido, Carlos Augusto, Carlos Bahia, Leovegildo "Radar" Cordeiro, Márcio de Carvalho, Jurandir Ferreira, André Filho, Wander Guedes, Maria Leopoldina, Jorge Martinho, José Menezes, Miguelão, Luiz Máximo, Eli Batista Pituba, Axel Ripoll, Marco Ubiratan, Paschoal Villaboim.



Bruno Barreto, o diretor


Amor bandido, intenso e carregado misto de policial e melodrama, está embalado em cores quentes e canções de Roberto Carlos. Tem ação ambientada no Rio de Janeiro em época contemporânea à das filmagens, mais especificamente nas zonas sombrias de uma desglamourizada e decadente Copacabana tomada por boates de striptease, botecos mal afamados, cortiços verticais, pontos de prostituição, assassinatos não resolvidos, policiais corruptos e violentos. É o bairro dos solitários e carentes, de gente perdida para a vida, que se expõe preferencialmente à noite. O noticiário policial carioca é a base do roteiro de Leopoldo Serran, adaptado de argumento do autor em parceria com José Louzeiro e Bruno Barreto. Gira em torno dos personagens do detetive Galvão (Gracindo), da striper e garota de programa Sandra (Aché) e do jovem ladrão, assassino e psicopata Toninho (Guarnieri).


O detetive Galvão (Paulo Gracindo) diante da costumeira e insolúvel violência carioca


Galvão é policial da velha guarda, adepto de medidas arbitrárias e violentas. Não apresenta resultados nas investigações de uma onda de roubos seguidos de morte de taxistas. Também é um tipo hipócrita e emotivamente alquebrado. Prometeu à esposa moribunda que se reaproximaria da filha Sandra, estudante exemplar expulsa de casa aos 13 anos sob acusação de desonrar a família com seu furor sexual precoce. Irá reencontrá-la depois de quatro anos, como atração de mal afamada casa noturna. Sandra, codinome "Galinha", é interpretada com desenvoltura e coragem por Cristina Aché. É a personagem à qual convergem os elementos que dão sentido à trama. Apesar da pouca idade é suficientemente madura para não alimentar ilusões acerca do que a vida pode lhe oferecer. Possui suficiente força de caráter para não se curvar aos chamados da hipocrisia paterna. Tenta apaziguar suas próprias dores e frustrações com canções de Roberto Carlos, especialmente Amada amante. Egresso de São Paulo, Toninho é o marginal baby face e de boa estampa que deflagra as ações de Amor bandido. Violento e caprichoso, ríspido e temperamental, é basicamente um adolescente em crise de autoafirmação. Invade intempestivamente a vida de Sandra após provocar involuntariamente o suicídio de Marlene ou Romildo, travesti que protegia e explorava. Em princípio, a filha de Galvão se aproxima dele para afrontar o pai. Mas terminam efetivando louco e perigoso relacionamento, de exacerbada visceralidade, alimentado por carência, medo, solidão e frustração. De um lado há o jovem antissocial e misterioso algoz de taxistas que a polícia tanto procura. De outro, uma garota doce e amorosa apesar de tão sofrida e explorada, em busca de meios para aplacar o desespero decorrente de muitas mágoas e percalços.


Sandra (Cristina Aché) e Toninho (Paulo Guarnieri)


Galvão, Sandra e Toninho parecem dançar ao sabor de um trágico e dolorido bolero de nervos expostos, regido pela lógica do salve-se quem puder. É o que se deduz de uma espécie de máxima de vida pronunciada por Toninho: "Quem bobeia sobra! Não tem cadeira para todo mundo!". Tanto é que Galvão não tem pudores em entregar a própria filha à violência policial, para forçá-la a confessar o paradeiro de Toninho, enfim descoberto como o assassino tão procurado. Sandra, temerosa, fecha as portas ao namorado quando toma conhecimento de suas práticas criminosas. Já o personagem de Guarnieri não titubeia em expor a garota como incômoda testemunha de seus crimes, como também ameaça matá-la ao descobrir que é filha do policial que tenta desmascará-lo.


Sandra (Cristina Aché) em seu cotidiano de dançarina e striper de mal afamadas casas noturnas

Um amor louco e sem esperança: Sandra (Cristina Aché) e Toninho (Paulo Guarnieri)


Bruno Barreto vinha do estrondoso sucesso comercial e de crítica de Dona Flor e seus dois maridos — maior bilheteria do cinema brasileiro — quando realizou Amor bandido, por ele considerado, à época, como sua realização mais pessoal. É um filme cru, conduzido por uma câmera nervosa, tão tensa como a geografia conflagrada sobre a qual se movimentam indivíduos com emoções liberadas, à flor da pele. O espectador sente que ouvirá, a todo momento, alguma explosão decorrente da temperatura elevada que emana de imagens tórridas e palpitantes, enquadradas com algum proposital desleixo pela câmera na mão, operada pelo próprio diretor. Os personagens tentam se agarrar a qualquer suporte em sua busca inatingível por conforto e segurança. É o que se depreende das secas e desinibidas cenas de sexo entre Sandra e Toninho, ou da falta de sentido da vida fracassada de Galvão, sempre sob pressão de seus pares e dos erros cometidos num distante mas torturante e presente passado. Os atores dão a sensação de atuar sobre um palco giratório que se fecha lentamente sobre eles, a ponto de esmagá-los. Essa percepção decorre das próprias opções estético-formais de Barreto: foco disperso, cores dramaticamente quentes, som abafado e montagem que encadeia os planos de modo praticamente abrupto. Tais características não revelam falhas. São propositais. Reforçam o sentido de tragédia de Amor bandido e o moldam como raro e poderoso exemplar do cinema brasileiro de temática urbana.


O detetive Galvão (Paulo Gracindo) recebe uma reprimenda de seu superior (Venício Salvatori)

Sandra (Cristina Aché) testemunha  uma cena de violência urbana

  
Amor bandido tem as marcas de um trabalho plenamente autoral. Com respeito a isso, Bruno Barreto demonstra talento e eficácia. Porém, por outro lado, o diretor se revela generoso ao permitir que os atores sejam também os responsáveis pelas grandezas e limitações do filme. Corajosos, Paulo Guarnieri e Cristina Aché oferecem com o calor e sinceridade de seus desempenhos o melhor da realização. Preenchem com sentidas paixão e tensão as cenas que dividem. Pode-se dizer que o filme a eles pertence. O mesmo não se pode dizer do experiente Paulo Gracindo. Lamentavelmente, Galvão é, no mais das vezes, um prisioneiro de clichês por demais óbvios. A dureza do personagem, bem como sua fragilidade emocional, não são reveladas com o ardor e a alma que tanto transparecem nas atuações de Guarnieri e Aché. O detetive e pai se perde numa sucessão de caretas e contorcionismos constrangedores como quando descobre as atividades de Sandra na boate, ao conversar ao telefone com o atendente de um serviço similar ao Centro de Valorização da Vida e, principalmente, ao se encolher na viatura tentando ignorar os apelos da filha torturada.


Toninho (Paulo Guarnieri) e Sandra (Cristina Aché)


Amor bandido foi recebido com desdém por muitos críticos. Provavelmente, decepcionaram-se frente a um filme pouco ambicioso, relativamente menor em termos de requinte, exuberância e expansividade se comparado a Dona Flor e seus dois maridos. Não atinaram para as potencialidades da realização. O drama de Sandra, Toninho e Galvão, apesar de discreto, tende a se valorizar com o passar dos anos. Evidentemente, tal afirmação está situada no pouco seguro terreno das previsões. Mas Amor bandido é um trabalho que possui todas as credenciais para se tornar um clássico do cinema brasileiro, principalmente como documento de relevância social.


Sandra (Cristina Aché) sob pressão do pai, o detetive Galvão (Paulo Gracindo)


Amor bandido representou o Brasil no Los Angeles International Film Exposition (Filmex), edição de 1979, e marca a estreia de Paulo Guarnieri no cinema.


Sandra (Cristina Aché) e Toninho (Paulo Guarnieri)


Roteiro: Leopoldo Serran, com base em argumento de José Louzeiro, Leopoldo Serran, Bruno Barreto. Produção associada: J. U. Arce, Walter Clark, Celso Bulhões de Carvalho. Produção executiva: Lucy Barreto. Organização da trilha musical: Guto Graça Mello. Direção de fotografia (Eastmancolor): Lauro Escorel Filho. Montagem: Raymundo Higino. Desenho de produção: Anísio Medeiros. Figurinos: Cacilda Fernandes. Maquiagem: Jaque Jordão. Gerente de produção: Luiz Carlos Lacerda. Assistentes de direção: Fábio Barreto, Ângelo Gastal. Som: Jean-Claude Laureux, Victor Raposeiro. Operador de câmera: Bruno Barreto. Assistentes de produção: Luiz Antonio Magalhães, Otávio Miranda, Rossy Caetano, Elcio Luiz. Continuidade: Maria Eugenia. Coreografia: Carlos Machado. Assistente de fotografia: Antonio Luiz. Efeitos especiais de fotografia: Sérgio Farjalla, Gabriel Queiroz. Fotografia de cena: José Tadeu. Eletricistas: Ademar Silva, José Luiz. Maquinista: Djalma de Oliveira. Mixagem de som: Jacques Maumont. Assistentes de montagem: Lucíola Vilela, Idê Lacreta. Edição de som: Emmanuelle Castro. Títulos de apresentação: Ana Luisa Escorel. Tempo de exibição: 95 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1979)

4 comentários:

  1. "Corajosos, Paulo Guarnieri e Cristina Aché oferecem com o calor e sinceridade de seus desempenhos o melhor da realização. Preenchem com sentidas paixão e tensão as cenas que dividem. Pode-se dizer que o filme a eles pertence"

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    1. Olá, Ilda.

      Bom vê-la por aqui. E onde andam Paulo Guarnieri e Cristina Aché? Deles, nunca mais ouvi falar coisa alguma. Onde será que se perderam?

      Abraços.

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  2. Eugênio, fica difícil comentar algum filme que tenha passado pelo sua analise. É tudo tão encantador, que prefiro ler, aprender,com você. Sempre que der volto aqui no seu blog e tomarmos um chá juntos rsrsrsrs!...

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    1. Olá, Ilda!

      Não se deixe intimidar! Não tenho essa intenção. Há sempre algo que pode ser comentado, acrescentado, relativizado. Quanto ao chá, acho que é uma ideia muito encantadora. Por ora, nos encontraremos aqui. Mas, um dia, quem sabe, que tal na Confeitaria Colombo, aqui, no Rio de Janeiro?

      Abraços.

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