Em 1979, ao escrever esta apreciação, fui contra a percepção
de boa parte da crítica. Previ que Amor bandido (1978) receberia com o
tempo o devido reconhecimento. Trinta e cinco anos depois não sei se a profecia
se concretizou. Mas gostei bastante deste melodrama de conotações policiais,
orquestrado como um visceral bolero de nervos expostos, ambientado numa
Copacabana sombria, desglamourizada e decadente. O roteiro de Leopoldo Serran
recebeu tratamento mais que adequado de Bruno Barreto. Ele opera uma câmera
nervosa, quase sempre na mão. A fotografia de cores quentes expõe a tensão dos
ambientes e a alma sofrida de personagens desprovidos de horizontes, perdidos
na impessoalidade da selva urbana governada pela máxima "Quem bobeia sobra!
Não tem cadeira para todo mundo!". Os promissores e atualmente
desaparecidos Paulo Guarnieri e Cristina Aché oferecem desempenhos corajosos e
intensos. Pode-se dizer que o filme a eles pertence.
Amor bandido
Direção:
Bruno Barreto
Produção:
Luís Carlos Barreto, Walter Clark
Carnaval Unifilm, Companhia
Cinematográfica Serrador, Filmes do Triângulo, Gaumont do Brasil, Luiz Carlos
Barreto Produções Cinematográficas, Walter Clark Produções Cinematográficas
Brasil — 1978
Elenco:
Paulo Gracindo, Cristina Aché, Paulo Guarnieri, Ligia
Diniz, Flávio São Thiago, Hélio Ary, Venício Salvatori, José Dumont, Roberto
Husbands, Ana Maria Miranda, Luis Antonio, Alvimar Aparecido, Carlos Augusto,
Carlos Bahia, Leovegildo "Radar" Cordeiro, Márcio de Carvalho,
Jurandir Ferreira, André Filho, Wander Guedes, Maria Leopoldina, Jorge Martinho,
José Menezes, Miguelão, Luiz Máximo, Eli Batista Pituba, Axel Ripoll, Marco
Ubiratan, Paschoal Villaboim.
Bruno Barreto, o diretor |
Amor bandido, intenso e
carregado misto de policial e melodrama, está embalado em cores quentes e
canções de Roberto Carlos. Tem ação ambientada no Rio de Janeiro em época
contemporânea à das filmagens, mais especificamente nas zonas sombrias de uma desglamourizada
e decadente Copacabana tomada por boates de striptease, botecos mal afamados,
cortiços verticais, pontos de prostituição, assassinatos não resolvidos, policiais
corruptos e violentos. É o bairro dos solitários e carentes, de gente perdida
para a vida, que se expõe preferencialmente à noite. O noticiário policial carioca
é a base do roteiro de Leopoldo Serran, adaptado de argumento do autor em
parceria com José Louzeiro e Bruno Barreto. Gira em torno dos personagens do
detetive Galvão (Gracindo), da striper e garota de programa Sandra (Aché) e do
jovem ladrão, assassino e psicopata Toninho (Guarnieri).
O detetive Galvão (Paulo Gracindo) diante da costumeira e insolúvel violência carioca |
Galvão é policial
da velha guarda, adepto de medidas arbitrárias e violentas. Não apresenta
resultados nas investigações de uma onda de roubos seguidos de morte de taxistas.
Também é um tipo hipócrita e emotivamente alquebrado. Prometeu à esposa
moribunda que se reaproximaria da filha Sandra, estudante exemplar expulsa de
casa aos 13 anos sob acusação de desonrar a família com seu furor sexual precoce.
Irá reencontrá-la depois de quatro anos, como atração de mal afamada casa
noturna. Sandra, codinome "Galinha", é interpretada com desenvoltura
e coragem por Cristina Aché. É a personagem à qual convergem os elementos que
dão sentido à trama. Apesar da pouca idade é suficientemente madura para não
alimentar ilusões acerca do que a vida pode lhe oferecer. Possui suficiente
força de caráter para não se curvar aos chamados da hipocrisia paterna. Tenta
apaziguar suas próprias dores e frustrações com canções de Roberto Carlos, especialmente
Amada
amante. Egresso de São Paulo, Toninho é o marginal baby face e de boa estampa que deflagra as ações de Amor
bandido. Violento e caprichoso, ríspido e temperamental, é basicamente
um adolescente em crise de autoafirmação. Invade intempestivamente a vida de
Sandra após provocar involuntariamente o suicídio de Marlene ou Romildo,
travesti que protegia e explorava. Em princípio, a filha de Galvão se aproxima
dele para afrontar o pai. Mas terminam efetivando louco e perigoso relacionamento,
de exacerbada visceralidade, alimentado por carência, medo, solidão e
frustração. De um lado há o jovem antissocial e misterioso algoz de taxistas que
a polícia tanto procura. De outro, uma garota doce e amorosa apesar de tão
sofrida e explorada, em busca de meios para aplacar o desespero decorrente de
muitas mágoas e percalços.
Sandra (Cristina Aché) e Toninho (Paulo Guarnieri) |
Galvão, Sandra e
Toninho parecem dançar ao sabor de um trágico e dolorido bolero de nervos
expostos, regido pela lógica do salve-se quem puder. É o que se deduz de uma espécie
de máxima de vida pronunciada por Toninho: "Quem bobeia sobra! Não tem
cadeira para todo mundo!". Tanto é que Galvão não tem pudores em entregar
a própria filha à violência policial, para forçá-la a confessar o paradeiro de
Toninho, enfim descoberto como o assassino tão procurado. Sandra, temerosa, fecha
as portas ao namorado quando toma conhecimento de suas práticas criminosas. Já
o personagem de Guarnieri não titubeia em expor a garota como incômoda
testemunha de seus crimes, como também ameaça matá-la ao descobrir que é filha
do policial que tenta desmascará-lo.
Sandra (Cristina Aché) em seu cotidiano de dançarina e striper de mal afamadas casas noturnas |
Um amor louco e sem esperança: Sandra (Cristina Aché) e Toninho (Paulo Guarnieri) |
Bruno Barreto
vinha do estrondoso sucesso comercial e de crítica de Dona Flor e seus dois maridos
— maior bilheteria do cinema brasileiro — quando realizou Amor bandido, por ele
considerado, à época, como sua realização mais pessoal. É um filme cru,
conduzido por uma câmera nervosa, tão tensa como a geografia conflagrada sobre
a qual se movimentam indivíduos com emoções liberadas, à flor da pele. O
espectador sente que ouvirá, a todo momento, alguma explosão decorrente da
temperatura elevada que emana de imagens tórridas e palpitantes, enquadradas
com algum proposital desleixo pela câmera na mão, operada pelo próprio diretor.
Os personagens tentam se agarrar a qualquer suporte em sua busca inatingível
por conforto e segurança. É o que se depreende das secas e desinibidas cenas de
sexo entre Sandra e Toninho, ou da falta de sentido da vida fracassada de
Galvão, sempre sob pressão de seus pares e dos erros cometidos num distante mas
torturante e presente passado. Os atores dão a sensação de atuar sobre um palco
giratório que se fecha lentamente sobre eles, a ponto de esmagá-los. Essa percepção
decorre das próprias opções estético-formais de Barreto: foco disperso, cores
dramaticamente quentes, som abafado e montagem que encadeia os planos de modo praticamente
abrupto. Tais características não revelam falhas. São propositais. Reforçam o
sentido de tragédia de Amor bandido e o moldam como raro e
poderoso exemplar do cinema brasileiro de temática urbana.
O detetive Galvão (Paulo Gracindo) recebe uma reprimenda de seu superior (Venício Salvatori) |
Amor bandido tem as marcas de
um trabalho plenamente autoral. Com respeito a isso, Bruno Barreto demonstra
talento e eficácia. Porém, por outro lado, o diretor se revela generoso ao
permitir que os atores sejam também os responsáveis pelas grandezas e
limitações do filme. Corajosos, Paulo Guarnieri e Cristina Aché oferecem com o
calor e sinceridade de seus desempenhos o melhor da realização. Preenchem com
sentidas paixão e tensão as cenas que dividem. Pode-se dizer que o filme a eles
pertence. O mesmo não se pode dizer do experiente Paulo Gracindo.
Lamentavelmente, Galvão é, no mais das vezes, um prisioneiro de clichês por
demais óbvios. A dureza do personagem, bem como sua fragilidade emocional, não
são reveladas com o ardor e a alma que tanto transparecem nas atuações de
Guarnieri e Aché. O detetive e pai se perde numa sucessão de caretas e
contorcionismos constrangedores como quando descobre as atividades de Sandra na
boate, ao conversar ao telefone com o atendente de um serviço similar ao Centro
de Valorização da Vida e, principalmente, ao se encolher na viatura tentando ignorar
os apelos da filha torturada.
Toninho (Paulo Guarnieri) e Sandra (Cristina Aché) |
Amor bandido foi recebido com
desdém por muitos críticos. Provavelmente, decepcionaram-se frente a um filme pouco
ambicioso, relativamente menor em termos de requinte, exuberância e
expansividade se comparado a Dona Flor e seus dois maridos. Não atinaram
para as potencialidades da realização. O drama de Sandra, Toninho e Galvão, apesar
de discreto, tende a se valorizar com o passar dos anos. Evidentemente, tal
afirmação está situada no pouco seguro terreno das previsões. Mas Amor
bandido é um trabalho que possui todas as credenciais para se tornar um
clássico do cinema brasileiro, principalmente como documento de relevância
social.
Sandra (Cristina Aché) sob pressão do pai, o detetive Galvão (Paulo Gracindo) |
Amor bandido representou o Brasil
no Los Angeles International Film Exposition (Filmex), edição de 1979, e marca
a estreia de Paulo Guarnieri no cinema.
Sandra (Cristina Aché) e Toninho (Paulo Guarnieri) |
Roteiro: Leopoldo Serran, com base em argumento de José
Louzeiro, Leopoldo Serran, Bruno Barreto. Produção
associada: J. U. Arce, Walter Clark, Celso Bulhões de Carvalho. Produção executiva: Lucy Barreto. Organização da trilha musical: Guto
Graça Mello. Direção de fotografia (Eastmancolor):
Lauro Escorel Filho. Montagem: Raymundo
Higino. Desenho de produção: Anísio
Medeiros. Figurinos: Cacilda
Fernandes. Maquiagem: Jaque Jordão. Gerente de produção: Luiz Carlos
Lacerda. Assistentes de direção: Fábio
Barreto, Ângelo Gastal. Som:
Jean-Claude Laureux, Victor Raposeiro. Operador
de câmera: Bruno Barreto. Assistentes
de produção: Luiz Antonio Magalhães, Otávio Miranda, Rossy Caetano, Elcio
Luiz. Continuidade: Maria Eugenia. Coreografia: Carlos Machado. Assistente de fotografia: Antonio Luiz.
Efeitos especiais de fotografia: Sérgio
Farjalla, Gabriel Queiroz. Fotografia de
cena: José Tadeu. Eletricistas: Ademar
Silva, José Luiz. Maquinista: Djalma
de Oliveira. Mixagem de som: Jacques
Maumont. Assistentes de montagem: Lucíola
Vilela, Idê Lacreta. Edição de som:
Emmanuelle Castro. Títulos de apresentação:
Ana Luisa Escorel. Tempo de exibição:
95 minutos.
(José Eugenio
Guimarães, 1979)
"Corajosos, Paulo Guarnieri e Cristina Aché oferecem com o calor e sinceridade de seus desempenhos o melhor da realização. Preenchem com sentidas paixão e tensão as cenas que dividem. Pode-se dizer que o filme a eles pertence"
ResponderExcluirOlá, Ilda.
ExcluirBom vê-la por aqui. E onde andam Paulo Guarnieri e Cristina Aché? Deles, nunca mais ouvi falar coisa alguma. Onde será que se perderam?
Abraços.
Eugênio, fica difícil comentar algum filme que tenha passado pelo sua analise. É tudo tão encantador, que prefiro ler, aprender,com você. Sempre que der volto aqui no seu blog e tomarmos um chá juntos rsrsrsrs!...
ResponderExcluirOlá, Ilda!
ExcluirNão se deixe intimidar! Não tenho essa intenção. Há sempre algo que pode ser comentado, acrescentado, relativizado. Quanto ao chá, acho que é uma ideia muito encantadora. Por ora, nos encontraremos aqui. Mas, um dia, quem sabe, que tal na Confeitaria Colombo, aqui, no Rio de Janeiro?
Abraços.