Cresci ouvindo ecos da Segunda Guerra Mundial. Jornais e
revistas, ao longo dos anos 60, constantemente estampavam matérias que
expunham as entranhas do III Reich, a logística das batalhas, a dinâmica dos
campos de extermínio, a caçada aos nazistas foragidos etc. Para mim, a Retirada
de Dunquerque foi o acontecimento mais emblemático do conflito. Forneceu a
matéria-prima, a partir do premiado romance de Robert Merle, ao primeiro dos
muitos filmes que assisti sobre os eventos bélicos de 1939-1945. Estava com 10
anos em 1966 quando vi Gloriosa retirada (Week-end
à Zuydcoote, 1964), de Henri Verneuil. É drama de guerra em tom menor.
Faz discreta porém crível e comovente reconstituição do episódio, quando cerca
de 340 mil soldados aliados, encurralados pelos alemães, foram resgatados por
mar, em esforço memorável, e conduzidos à Inglaterra. O drama é contado pelo
testemunho do Sargento Maillat (Jean-Paul Belmondo). A morte do personagem
marcou a minha infância e ainda me acompanha. A preciação é de 1976.
Gloriosa retirada
Week-end à Zuydcoote
Direção:
Henri Verneuil
Produção:
Raymond Hakim, Robert Hakim
20th. Century-Fox, Paris Film
Production, Interopa
França, Itália — 1964
Elenco:
Jean-Paul
Belmondo, Catherine Spaak, François Périer, Michel Barbey, Christian Barbier,
Marie-France Boyer, Marie Dubois, Georges Géret, Ronald Howard, Jean-Pierre
Marielle, Pierre Mondy, Paul Préboist, Jean-Paul Roussillon, Albert Rémy, Nigel
Stock, Pierre Vernier, Dominique Zardi, François Guerin, Kenneth Haigh, Alan
Adair, Robert Bazil, Charles Boullard, Gerard Darrieu, Robert Deslandes,
Jacques Ferriere, Colin Mann, Pierre Collet, Raoul Defosse, Jean-Claude Dubois,
Bob Lerrick, Melsen Bernard Musson, Donald O'Brien, Paul Pavel, Robert Rollis,
Rolf Spath, Julien Verdier, Marie France Mignal, Robert Napier, René Penetra,
Eric Sinclair, Anthony Stuart, Louis Viret.
O diretor Henri Verneuil entre Michèle Morgan (esquerda) e Claudia Cardinale por ocasião das filmagens de Os leões estão soltos (Les lions sont lâchés, 1961) |
A Segunda Guerra
Mundial começa oficialmente em primeiro de setembro de 1939 com a invasão da
Polônia pela Alemanha. Dois dias após, Inglaterra — acompanhada de todos os
países da Commonwealth — e França declaram hostilidade ao agressor. Porém,
apanhados praticamente na pasmaceira — e mal recuperados dos elevados custos
humanos do Grande Conflito de 1914-1918 —, de início pouco conseguem. Deixam ao
confiante Hitler excessiva margem de liberdade. O Füher logo revela suas
intenções, apoderando-se praticamente sem resistência de todo o Leste Europeu —
com exceção da União Soviética, ainda apoiada na validade do pacto
Molotov-Ribbentrop de 1939. No front ocidental europeu, os oponentes apenas se
miram em operações de pouco ou nenhum efeito, isto até abril de 1940. Em nove desse
mês os alemães invadem Dinamarca e Noruega, forçando movimentações mais
substantivas de britânicos e franceses. Ambos desembarcam na Noruega em 14 de
abril, mas recuam em menos de duas semanas frente ao pesado poder de fogo
inimigo. Em 10 de maio — quando da substituição do ineficiente primeiro
ministro inglês Neville Chamberlain por Winston Churchill, e com as tropas
britânicas e francesas ainda desorganizadas em decorrência do fracasso
norueguês —, a Alemanha ocupa a neutra Holanda e, ao mesmo tempo, Bélgica e
Luxemburgo. Ato contínuo, avança rumo à França pela fechada Floresta das
Ardenas, erroneamente considerada impenetrável aos blindados germânicos. Com
essa manobra, as forças de Hitler transformam em elefante branco a mítica Linha
Maginot — poderosa sucessão de casamatas erguidas à defesa do território
francês na fronteira com a Alemanha. Em 22 de junho de 1940 a República Francesa capitula.
Surpreendidos, os
britânicos partem em auxílio dos franceses, cruzando o território belga. Mas a
operação fracassa frente à rápida movimentação das bem equipadas e mais leves tropas
alemãs. Logo, os combalidos aliados são empurrados ao norte da França, rumo às
praias da Normandia em Dunquerque, ficando imprensados entre o Canal da Mancha
e os invasores distantes cerca de 80
Km . A derrota aliada no início da guerra é um fato. A
situação, desesperadora, obriga o Ministro da Guerra britânico, Anthony Eden, a
agir com rapidez e improviso. Assim, é montada a Operação Dínamo: embarcações
da marinha e de particulares integram a frota de evacuação do esforço que
passará à história como Retirada de Dunquerque: cerca de 340 mil soldados
aliados — acuados no litoral francês por terra e pelos constantes bombardeios
da Luftwaffe — são transferidos para a Inglaterra entre 26 de maio e 4 de junho.
Jean-Paul Belmondo interpreta o Sargento Maillat |
O caos na praia de Zuydcoot |
Gloriosa retirada dramatiza o
episódio a partir de roteiro de François Boyer escrito em parceria com Robert
Merle, autor do romance ligeiramente autobiográfico Week-end à Zuydcoote,
vencedor do Prêmio Goncourt, equivalente franco ao estadunidense Pulitzer. Merle
estava incorporado a uma das unidades francesas encurraladas em Dunquerque,
mais especificamente na praia de veraneio de Zuydcoote. Seu relato não se ocupa
de batalhas e atos heroicos. É mais a anatomia de uma derrota espelhada no
estado de espírito de muitos combatentes tomados pelo desânimo, perplexidade, desespero
e falta de convicção enquanto lutavam para sobreviver e sair do encalhe ao qual
foram forçados. O resgate parecia uma impossibilidade. Merle teve a sorte de embarcar
rumo à Inglaterra, ao contrário de muitos companheiros mortalmente
surpreendidos pelo fogo dos bombardeios. Seu livro, pode-se dizer, oferece um
painel realista e desesperançado da guerra. Foi convenientemente transposto às
telas por Henri Verneuil, competente mas subestimado realizador francês, notabilizado
principalmente na comédia e no drama policial.
Pertencem à lavra
de Veneuil títulos que celebrizaram o cômico Fernandel como La
table aux crèves (1951), O fruto proibido (Le
fruit défèndu, 1952), O padeiro de Valorgue (Le
boulanger de Valorgue, 1952); O inimigo público número 1 (L'enemi
public no 1, 1953), Carnaval (1953), O
carneiro de cinco patas (Le mouton à 5 pattes, 1954), O
gangster (Le grand chef, 1958) e A vaca e o prisioneiro (La
vache et le prisionnier, 1959). Também lhe honram a filmografia os
criminais Gangsters de casaca (Melodie em sous-sol, 1961); Os
sicilianos (Le clan des siciliens, 1971), A serpente (Le
serpent, 1973), Medo sobre a cidade (Peur
sur la ville, 1975), Ânsia de vingança (Les
corps de mon ennemi, 1976) e I como Ícaro (I... comme Icaro, 1979),
sem esquecer o comovente e exasperante drama de guerra A 25a hora
(Le
vingt-cinquième heure, 1966) e o deslocado western Os canhões de San Sebastian
(Guns
for San Sebastian/La bataille de san Sebastian, 1968),
ambos protagonizados por Anthony Quinn.
Verneuil faz de Gloriosa
retirada uma discreta, crível e comovente reconstituição do drama de
Dunquerque. Pode ser incluído entre seus melhores trabalhos. Jean-Paul Belmondo
é o Sargento Julien Maillat. Ele e seu pelotão, extraviados do regimento de
origem, chegam à Praia de Zuydcoote no sábado, primeiro de junho. Encontram,
até o dia seguinte, um cenário de caos e desolação. Soldados aliados não param
de chegar. Veículos destruídos e armamentos abandonados atravancam a movimentação
e conferem aparência irreal ao lugar. Na orla, oficiais tentam organizar a retirada
sob fogo da aviação alemã. Médicos de um hospital improvisado fazem o possível para
socorrer os feridos. Nas proximidades, acumulam-se corpos de militares e civis,
inclusive de muitas crianças, alguns sem possibilidade de identificação. A
música de Maurice Jarre pontua e comenta lentamente as cenas. A fotografia de
Henri Decaë é um trunfo à parte. É solar, brilhante, clara, condizente com a
normalidade de um balneário de veraneio como a praia de Zuydcoote. Confere ar
de surrealismo ao tom da encenação, dispersada por homens aguardando na areia ao
passo que outros tentam a retirada ou escapar da metralha da Luftwaffe. Interrogações
são enviadas ao silêncio de Deus e terminam por ressaltar a inutilidade dos
gestos e atos. A morte espreita. "Veja os mortos torrando na grelha!",
exclama Maillat. Convenientemente, a câmera não revela ao espectador o horror
avistado pelo personagem. Mas Zuydcoote é uma fornalha, cada vez mais repleta
de homens para queimar. Apesar do enganoso título que recebeu no Brasil, o
filme não reserva lugar ao heroísmo e atos gloriosos. O que se vê é apenas o
absurdo e a vontade de sobreviver em meio à desolação e melancolia.
Ao centro, o sargento Julien Maillat (Jean-Paul Belmondo) no teatro de operações da retirada |
Por quase 120
minutos de projeção Maillat perambula pelo terreno conflagrado. Faz de tudo
para embarcar, inutilmente. Enquanto o espectador o acompanha, vai conhecendo sua
indisposição de soldado derrotado. A geografia humana do balneário também é
revelada. O fracasso está em todo lugar, inclusive em suas consequências
morais. Maillat conhece Jeanne (Spaak), moradora da localidade que se recusa a
abandonar a residência familiar, apesar dos bombardeios e da tentativa de
estupro que sofre de dois soldados franceses desgarrados, mortos por ele na
única violência que comete ao longo de todo o filme.
Os momentos de
Maillat com Jeanne foram considerados pouco críveis por diversos críticos, a
ponto de prejudicar o andamento de uma história marcada acima de tudo pela
valorização da autenticidade. No entanto, frente às crescentes desumanização do
ambiente e do ceticismo do personagem, a moça é uma oportuna injeção de
esperança ao drama que terminará, inevitavelmente, de modo trágico. Na tentativa
de salvá-la Maillat encontra alguma motivação. Faz de tudo para tirá-la dali,
como se isso fosse necessário para reerguer porções e crenças de seu mundo
despedaçado.
Jeanne (Catherine Spaak) e Julien Maillat (Jean-Paul Belmondo) |
O final é inesquecível
e tristemente melancólico. Na praia, Maillat aguarda Jeanne. Juntos, tentarão
embarcar. Não sabe, porém, se ela virá. Recomeça o bombardeio aéreo. Sem
possibilidades de abrigo, ele é gravemente ferido. Sua cabeça pende para o
fundo da cratera deixada pela bomba. Falece, logo após se mover com esforço,
somente para divisar Jeanne se aproximando ao longe. Mais ao fundo se processa
a retirada.
Jeanne (Catherine Spaak) e Maillat (Jean-Paul Belmondo) |
Gloriosa retirada oferece a
Jean-Paul Belmondo uma das suas melhores interpretações. O ator brilha numa
composição minimalista, fazendo de Maillat um inesquecível anti-herói a reboque
de uma história que, desenrolada à sua revelia, como convém às tragédias, está
prestes a se prolongar por contingentes humanos mais amplos. O personagem é
quase uma extensão de Michelle, o pacifista fora do contexto de Duas
mulheres (La ciociara, 1961), de
Vittorio De Sica.
Jean-Paul Belmondo como o sargento Julien Maillat |
Roteiro: François Boyer, Robert Merle, com base me romance
de Robert Merle. Diálogos: Robert
Merle. Direção de fotografia
(Eastmancolor): Henri Decaë. Música
e direção musical: Maurice Jarre. Decoração:
Robert Clavel. Assistentes de decoração:
Henri Moran, Marc Robert Desage. Chefe
de montagem: Claude Durand. Assistente
de montagem: Florence Bernard. Assistente
de direção: Claude Pinoteau. Operadores
de câmera: Charles H. Montel, Alain Douarinou. Assistentes de câmera: François Lauliac, Alain Derobe. Fotografia fixa: Raymond Voinquel. Engenheiro de som: René Longuet. Assistentes de engenheiro de som:
Gabriel Solagnac, Pierre Davoust. Continuidade:
Lucile Costa. Maquiagem: Jacky
Bouban, Roger Chanteau, Goerges Boubon. Administração
geral: Paul Dufour. Chefes de
costumes: Jean Zay, Leon Zay. Consultor
técnico de aeronáutica: Alexander Renaut. Efeitos especiais: Karl Baumgartner. Assistente de efeitos especiais: Daniel Braunchweig. Direção de produção: Ralph Baum. Tempo de exibição: 119 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1976)
Sempre ótima sua visão integrada sobre um acontecimento. É um prazer em ler!
ResponderExcluirObrigado, Paulo!
ExcluirAbraços.
Vem aí a versão do Nolan!
ResponderExcluirAguardemos a versão do Nolan, Heguiberto. Grato pela visita e pelo comentário em forma de alerta. Eu mesmo de nada sabia acerca dessa versão.
ExcluirForte abraço.
Resenha didática, completa correta sobre fatos verídicos e, como foi dito acima, "uma visão integrada sobre um acontecimento." Obrigado.
ResponderExcluirUmberto Ferreira
Santa Maria RS
Olá, Umberto Ferreira. É um prazer recebê-lo aqui. Muito obrigado pelo aporte. Apareça mais vezes.
ExcluirAbraços.