domingo, 29 de abril de 2018

SALVA-SE APENAS O CURIOSO E GRACIOSO MESSERSCHMITT KR175

Formado nos quadros técnicos da RKO Radio, Mark Robson trabalhou nas ilhas de edição como assistente não creditado nas montagens de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) e do vilipendiado Soberba (The magnificent Ambersons, 1942), ambos de Orson Welles. Passou à direção, também na companhia, sob os auspícios do inventivo produtor Val Lewton em memorável série de eficazes filmes de baixo orçamento que ainda se sustentam. Tornou-se nome promissor ao realizar para Stanley Kramer O invencível (Champion, 1949), incontestável clássico sobre o boxe. Infelizmente, logo caiu na vala comum apesar de ocasionalmente emplacar realizações respeitáveis em gêneros diversos. Retornou ao universo do pugilismo com Trágica farsa (The harder they fall, 1956), último filme protagonizado por Humphrey Bogart. Ainda fez a curiosa e ousada exposição dos costumes estadunidenses em A caldeira do diabo (Peyton Place, 1957) e o frustrante Os criminosos não merecem prêmio (The prize, 1963). Encerrou melancolicamente a carreira em 1979, com Pânico no Atlântico Express (Avalanche Express), cinco anos após dirigir o pior exemplar da primeira safra dos disaster movies: Terremoto (Earthquake). Ouro maldito (A prize of gold, 1955) é realização anódina de Robson. A ação ambientada na Alemanha submetida à ocupação aliada apresenta Richard Widmark no papel do sargento Joe Lawrence da força aérea dos Estados Unidos. Por amor e vocação altruísta, envolve-se em ousado e mirabolante plano: desviar parte de um carregamento de ouro de procedência nazista agora em poder de ingleses e estadunidenses. Assim poderá auxiliar a professora Maria (Mai Zetterling) na transferência dos órfãos que tem sob cuidados para condições supostamente mais aprazíveis do exterior. Infelizmente, questões morais impostas pela produção e reviravoltas pouco plausíveis durante os momentos mais dramáticos da trama comprometeram todo o trabalho. Segue apreciação escrita em 1997.






Ouro maldito

A prize of gold

Direção:
Mark Robson
Produção:
Phil C. Samuel
Warwick Film Productions
EUA — 1955
Elenco:
Richard Widmark, Mai Zetterling, Nigel Patrick, Donald Wolfit, George Cole, Joseph Tomelty, Andrew Ray, Karel Stepanek, Robert Ayres, Eric Pohlmann, Oliver Sloane, Alan Gifford, Ivan Craig, Harry Towb, Leslie Linder, Monika Kossmann, Edelweiss Malchin, Erich Dunskus, Nelly Arno, John Witty, Joel Riordan, Marvin Kane, Arnold Bell e os não creditados Sam Kydd, Carol White.



À direita, o diretor Mark Robson quando da realização de Ouro maldito


O cineasta Mark Robson teve início promissor sob a chancela do produtor Val Lewton, na RKO Radio Pictures, com um conjunto de filmes baratos e ainda eficazes: A sétima vítima (The seventh victim, 1943), O fantasma dos mares (The ghost ship, 1943), Juventude sem freios (Youth runs wild, 1948), A ilha dos mortos (Isle of the dead, 1945) e Asilo sinistro (Bedlam, 1946). Ampliou a reputação ao realizar para o contestador Stanley Kramer um dos melhores dramas sobre o boxe: O invencível (Champion, 1949). Era auspiciosa promessa da onda de renovação do cinema estadunidense ao final dos anos 40. Não se sustentou, infelizmente, apesar dos bons Meu maior amor (My foolish heart, 1949), Só resta a lembrança (Bright victory, 1951), A fúria dos justos (Trial, 1955), A trágica farsa (The harder they fall, 1956), A caldeira do diabo (Peyton Place, 1957), A morada da sexta felicidade (The inn of the sixth happiness, 1958), Os criminosos não merecem prêmio (The prize, 1963) e O expresso de Von Ryan (Von Ryan Express, 1965). Ao final da carreira emplacou Terremoto (Earthquake, 1974), talvez o pior exemplar da nefasta primeira safra dos disaster movies.


Um dos trabalhos mais anódinos de Robson é o rotineiro e desinteressante thriller Ouro maldito, ambientado da Alemanha ocupada nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial.


Mai Zetterling como Maria

Richard Widmark no papel do sargento Joe Lawrence

Maria (Mai Zetterling) e Joe Lawrence (Richard Widmark)


Durante as obras de desobstrução de um canal em Berlim, fortuna em ouro extraviada do regime nazista, avaliada em 16 milhões de dólares, é encontrada. Os governos da Inglaterra e Estados Unidos arregalam os olhos. Sonegam informações aos russos e planejam o cuidadoso transporte clandestino do achado para Londres. Na operação está envolvido o sargento Joe Lawrence (Widmark), da força aérea estadunidense. Tem, por motivos amorosos e filantrópicos, outros planos para parte do botim. Está apaixonado pela professora Maria (Zetterling) em dificuldades com o projeto pessoal de transferir para o Brasil as crianças do orfanato que tem sob responsabilidade. Considera que a melhor ressocialização da garotada aconteceria em país distante dos efeitos da guerra e da barbárie nazista. Lawrence move mundos e fundos para ajudá-la. Aceita inclusive correr riscos que podem prejudicá-lo irremediavelmente na honestidade e carreira. Ainda mais após comprometer desastradamente, por ciúmes, as negociações entre Maria e Hans Fischer (Pohlmann) — especulador e empresário da construção civil na pele do bom samaritano.


Maria (Mai Zetterling) e Hans Fischer (Eric Pohlmann)


Lawrence encontra no transporte do ouro para Londres a oportunidade de se redimir com Maria e lhe garantir o essencial auxílio ao estabelecimento em território brasileiro. Resolve, com a ajuda do companheiro de posto Sargento Roger Morris (Cole), desviar parte do precioso carregamento em proveito próprio. Algumas barras, evidentemente, serão utilizadas para apoiar o plano da professora. Um grupo é formado para prestar o devido suporte tático ao golpe: Dan (Tomelty), tio de Morris; Alfie Stratton (Wolfit), velho golpista aposentado; e o ex-piloto britânico Brian Hammell (Patrick), que assumirá os controles de uma das aeronaves desviadas com a pilhagem.


Infelizmente, nada funciona conforme o previsto. Com tantos golpistas amadores na jogada, os problemas de consciência se instalam. Principalmente em decorrência da morte de inocentes e desavisados militares. Em Londres, Joe e Morris decidem abortar a operação e se entregar às autoridades. São surpreendidos com a reação inesperada do revoltado Brian Hammell. Consequentemente, mais mortes ocorrem. Joe sobrevive e acoberta a fuga de Stratton mediante chantagem: promete não denunciá-lo, desde que utilize parte do ouro extraviado para financiar o embarque de Maria e das crianças para o Brasil.



Acima e abaixo: Maria (Mai Zetterling) e Joe Lawrence (Richard Widmark)


Como geralmente ocorre em aventuras cinematográficas baseadas em golpes ousados e mirabolantes, parte da história detalha o planejamento da operação. O roteiro de Robert Buckner e John Paxton, baseado na novela homônima de Max Catto, consegue, apesar do aspecto rotineiro da produção, criar bom ponto de sustentação a um assistível e descompromissado thriller. O desenvolvimento narrativo consegue equilibrar os iniciais e leves momentos de humor com os instantes de inquietação e suspense da metade para o fim. A sólida reputação do elenco seria até fator recomendável para atrair o interesse. Richard Widmark está à vontade e equilibrado entre bon-vivant egoísta, aproveitador e galanteador com o golpista improvisado, frio e racional. A sueca Mai Zetterling não desaponta e Nigel Patrick tem ótimos momentos como o pouco confiável e ambicioso Brian Hammell.


Maria (Mai Zetterling)

  
Porém, ao final das contas Ouro maldito não se sustenta. Sequer serve como diversão descomprometida para modorrentos dias chuvosos. Boa parte do problema decorre da imposição do forçado final feliz com toques moralizadores. Com isso, a produção criou uma armadilha carregada de sentimentalismo pouco convincente e improváveis reviravoltas nos momentos mais dramáticos da operação. Assim, o que sobra é apenas uma pedestre e cretina aventura veiculadora de acintosa moral dúbia. Não que isso seja propriamente um pecado. Dureza é carregar nas tintas com a máxima de que o crime não compensa. Na verdade, percebendo-se bem, a exortação sequer se sustenta. O próprio Joe põe tudo a perder. Ao se entregar, obrigado pela crise de consciência, facilita não só a fuga do cúmplice como também o chantageia com a maior naturalidade a fim de atingir os propósitos inicialmente fixados em relação ao destino de Maria e das crianças. Depois de tanta água fria, a ação perde completamente o interesse. O resto é desenvolvimento burocrático dos mais apagados e dispensáveis. Ouro maldito corre o risco de ser o ponto mais baixo da irregular carreira de Mark Robson. As inacreditáveis soluções morais transformaram-no numa arenga hipócrita, sem sentido e idiota. Uma pena!



Acima e abaixo: o curioso Messerschmitt KR175


Boas e divertidas para os dias que correm são as cenas de Joe Lawrence ao volante do inusitado, gracioso, econômico e leve automóvel Messerschmitt KR175. Move-se sobre três rodas, duas na dianteira. Tem capacidade para uma pessoa atrás do motorista. Foi produzido de 1953 a 1955 e apresentava ligeira semelhança com aviões de pequeno porte.



  
Direção de fotografia (Technicolor): Ted Moore. Roteiro: Robert Buckner, John Paxton, com base na novela A prize of gold, de Max Catto. Música: Malcolm Arnold. Direção musical: Muir Mathieson, regendo The London Symphony Orchestra. Canções: A prize of gold (letra de Ned Washington, música de Lester Lee), interpretada por Joan Regan; In love, in love (letra de Tommie Connor, música de Gerhardt Bronner). Supervisão de produção: Adrian D. Worker. Direção de arte: John Box. Montagem: William “Bill” Lewthwaite. Assistentes de direção: Max Varnel, Alec Gibb (não creditado). Assistente de direção de arte: Allan Harris. Operador de câmera: Cecil Cooney, Tony Braun (não creditado). Câmera de segunda unidade: Arthur Graham. Consultor de Technicolor: Joan Bridge. Som: Charles Knott, J. B. Smith. Continuidade: Angela Martelli. Maquiagem: Freddie Williamson. Penteados: Anne Box. Gerente de locações: Dick Killinger. Supervisão de guarda-roupa: Elsa Fennell. Assistente de produção: Phil C. Samuel. Produção executiva: Irving Allen, Albert R. Broccoli. Contrarregra: Mickey O'Toole (não creditado). Edição de som: Gerry Anderson (não creditado). Dublê: Paddy Ryan (não creditado). Assistentes de câmera (não creditados): Geoff Glover, Alan McCabe. Publicidade: Alan Arnold (não creditado). Sistema de mixagem de som: Western Electric Recording. Tempo de exibição: 98 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1997)