domingo, 10 de março de 2013

NATURALISMO E IMPRESSIONISMO EM ‘AMORES DE APACHE’

Não se engane com o título em português. Amores de apache (Casque d'or, 1952) não é um western romântico. Chamavam-se apaches os gângsters franceses da virada do século 19 ao 20, pois resolviam suas disputas à moda dos índios norteamericanos. Esta realização de Jacques Becker é uma obra de mestre. A narrativa, influenciada pelo naturalismo, apresenta personagens governados por suas paixões e pela inevitabilidade da tragédia. Apesar de fotografado em preto-e-branco, é, paradoxalmente, um dos filmes mais coloridos que há, devido à inspiração impressionista na composição de seus planos.









Amores de apache
Casque d'or

Direção:
Jacques Becker
Produção:
Raymond Hakim, Robert Hakim, André Paulvé
Speva Films, Paris-Films Productions
França  1952
Elenco:
Simone Signoret, Serge Reggiani, Claude Dauphin, Raymond Bussièrs, Gaston Modot, Paul Berge, Daniel Mendaille, Frignol, Roland Lasaffre, Odette Barancey, Loleh Bellon, Solange Certin, Jacqueline Dane, Dominique Davray, Paul Azais, Jean Clarieux, Tony Corteggiani, Émile Genevois, Marc Goutas, William Sabatier, Fernand Trignol, Anne Beressy, Marianne Bergue, Jacqueline Canterelle, Gisèle Delzen, Suzanne Grey, Simone Jarnac, Yvette Lucas, Jacqueline Marbaut, Paquerette, Pomme, Georgette Talazac, Yvonne Yma, Léon Bary, Dalphin, Abel Coulon, Jean Degrave, Max Lancourt, Pierre Le Proux, Roland Lesaffre, Julien Maffre, Marcel Melrac, André Méliès, Bobby Mercier, Louis Moret, René Pascal, Raphaël Patorni, Léon Pauléon, Raymond Raynal, Marcel Rouzé, Roger Vincent, Claude Castaing, os não creditados Martine Arden, Joëlle Bernard, Jacqueline Danno, Jacques Duby, Yvonne Legeay, Maurice Marceau, Christiane Minazzoli.



O diretor Jacques Becker



Do jornalismo policial parisiense de início do século 20, Jacques Becker extrai um drama com sentido de tragédia, passado na referida época e basicamente ambientado em Belleville, submundo da capital francesa largado ao esquecimento durante os primeiros impulsos de modernização da cidade luz.


Paradoxalmente, Becker transforma Amores de apache, em preto-e-branco, num dos filmes mais coloridos que há, conferindo-lhe ares de tela saída da paleta de pintores impressionistas. Ladrões, prostitutas, policiais, jogadores, falsificadores, assassinos, ex-presidiários e mendigos — gente largada às circunstâncias do momento, vivendo basicamente de expedientes, sem possibilidades de devotar apreço aos códigos da moralidade burguesa — dão sentido à história contada. A encenação se vale basicamente da recriação e descrição minuciosa de ambientes e personagens dotados de feliz veracidade[1]. O espectador, diante do exposto, não se sente ludibriado pelo artificialismo na reprodução da vida, como normalmente acontece no cinema hollywoodiano mais corriqueiro, principalmente nos filmes que se dizem baseados em “fatos reais”. Muito menos se vê enredado por juízos de valor de procedência puritana, tão gritantemente hipócritas. As rugas dos personagens, suas conformações faciais, as expressões de sofrimento ou alegria, os sorrisos denotando sinceridade ou hipocrisia, as sensações de desesperança ou conformação às tramas da existência tão bem comunicadas pelo olhar, tudo possui a aparência da autenticidade em Amores de apache.


A direção, quase sempre, desempenha seu papel segundo preceitos que regem o pesquisador amparado nos cânones da ciência. O olhar de Becker é essencialmente descritivo. Ignora qualquer apego à valoração moral. Os personagens são o que são, apenas isso. Se bons ou maus, não interessa. O rigor da exposição dispensa comentários ou pontuações carregadas de apreciações, mesmo diante dos roubos e assassinatos, das perfídias, cobiças e da incontida pulsação do desejo. Apesar da dureza e crueza do tema abordado, o filme não se passa em meio às sombras ou da pouca luz. Muito ao contrário. Os ambientes e os personagens são vivamente iluminados, como não poderia deixar de ser numa produção que se vale da inspiração impressionista na composição de seus planos.


O termo “apache”, do título em português, refere-se aos índios norte-americanos. Os gângsters da Belleville costumavam revolver, à moda da luta apache, as pendengas em defesa da honra pessoal, motivadas, na maioria das vezes, por causa de uma mulher. Os contendores, de início, disputavam a posse de uma faca fincada no chão. A seguir, sobrevinha a luta propriamente. O oponente de mãos nuas era, geralmente, derrotado e morto.



Raymond  (Bussièr), ao centro, apresenta Marie ( Signoret) a Georges Manda (Reggiani)

Os confrontos envolvendo apaches eram corriqueiros na Belleville. Por isso, costumavam ser tratados como frugalidades pela crônica policial. Em 1902, entretanto, aconteceu a disputa merecedora da atenção de vários jornais parisienses: os membros de duas gangues rivais, as de Leca Corso e Manda L’Homme, disputaram a posse da faca por causa da garota Amelie Helie, conhecida como Casque d’or (capacete dourado) por causa de sua vasta cabeleira louro-avermelhada. A contenda resultou em verdadeira batalha campal, com mortos e feridos. Interrogado pelo promotor público sobre os motivos da desordem, Manda L’Homme respondeu: “Lutamos, eu e Corso, porque amamos a mesma garota. Você não sabe o que é amar uma garota?” Manda terminou condenado à prisão perpétua com trabalhos forçados; Leca Corso foi sentenciado a oitos anos. Amelie continuou a vida, flertando com outros pretendentes. A falta de fidelidade lhe custou caro. Um subordinado de Leca, em vingança, atacou-a a facadas no cabaret em que apresentava. Ela sobreviveu. Contraiu núpcias com um operário e faleceu em 1933[2].



Simone Signoret interpreta Marie, a Casque d'or, baseada na real Amelie Helie

Marie (Simone Signoret), à esquerda


O argumento de Amores de apache foi adaptado por Jacques Becker a partir dos relatos jornalísticos à época dos acontecimentos. Dele também é o roteiro — escrito com a colaboração de Jacques Companéez e Annette Wademant (não creditada) — e os diálogos. O resultado é uma obra rica em detalhes geográficos e humanos. Apesar de conhecido pelo estilo conciso, limitado quase sempre ao básico, Becker não poupou esforços para conferir fidelidade histórica aos personagens e lugares. Bares, becos, passeios, roupas, gestos e fisionomias são “impressionisticamente” recriados. Ao rigor da evocação se junta outro elemento fundamental: o naturalismo — tão marcante em se tratando da França da passagem do século 19 ao 20 —, que amplia a dimensão trágica dos personagens. Eles são impulsionados por forças consideradas incontroláveis, com as quais podem apenas se conformar no sentido mais fatalista do termo. São prisioneiros do desejo, da violência, honra, vingança, traição etc. Por seu senso de recriação e acabamento esmerado, Amores de apache se situa entre as obras mestras de Jacques Becker, ao lado de Grisbi, ouro maldito (Touchez pas au grisbi, 1954) — sobre a inadaptabilidade de um velho gangster a um mundo em rápida transformação — e A um passo da liberdade (Le trou, 1960) — claustrofóbico e nervoso drama sobre fuga de prisioneiros.


Becker contava 54 anos ao falecer, em 1960. Na qualidade de diretor, contabiliza apenas 17 títulos, trazidos à luz de 1935 ao ano da sua morte[3]. Começou no cinema como assistente de Jean Renoir, durante a temporada em que este realizou Boudu salvo das águas (Boudu sauvé des eaux, 1932) a A Marselhesa (La Marseillaise, 1938). A proximidade com o diretor de A regra do jogo (La règle deu jeu, 1939) lhe foi inspiradora e benéfica. Se Becker é mais direto e objetivo que Renoir, a ponto de, às vezes, sacrificar a poesia em prol da eficácia narrativa, não deixa de manifestar, como na obra de seu mentor, igual disposição para conferir relevo e transparência aos seus personagens. Suas realizações são povoadas de tipos ricos em vivacidade. Revelam-se humanos pelos mais diversos matizes. Disso é prova Amores de apache. Não há caracterizações chapadas no filme.


A história contada é simples. Dispensa clímax e reviravoltas. O espectador é, do início ao fim, envolvido num único e constante compasso dramático, que conduz os eventos ao triste e previsível epílogo, comum a tantos romances dominados pela inevitabilidade da tragédia. Os pontos de atração decorrem de aspectos específicos da linguagem cinematográfica: a hábil utilização da luz, a construção e encadeamento dos planos, além do talento da direção na condução dos personagens e orquestração dos movimentos que os impulsionam.


Simone Signoret, no auge da beleza, interpreta a alegre e carismática Marie, a Casque d’or, prostituta voluntariosa e apaixonada. É cobiçada por três homens. Está, no começo do filme, envolvida com o bruto, autoritário e possessivo Roland Dupuis (Sabatier), gangster do bando chefiado pelo traiçoeiro, pegajoso e narcisista Félix Leca (Dauphin). Este também a deseja, mas é incapaz de cortejá-la franca e abertamente. No entanto, é o suave, lacônico e aparentemente imperturbável ex-presidiário e atual carpinteiro Georges “Jo” Manda que desperta a atenção da garota. Ambos se apaixonam intensamente, arriscando a segurança de suas vidas. Roland, sentindo-se desonrado, parte para o confronto apache com Manda e é morto. O vitorioso é obrigado a fugir. Percebendo o terreno livre, o ardiloso Leca arquiteta a posse de Marie. Provoca a prisão de Raymond (Bussières) — membro de seu bando e leal amigo de Manda —, acusando-o pela morte de Roland. Ao saber dos acontecimentos, Manda se apresenta à polícia e confessa o crime. Na prisão, Raymond o informa da delação de Leca. Conseguem escapar com a ajuda de Marie, a esta altura totalmente subjugada e maltratada pelo gangster. Raymond é mortalmente ferido. Manda persegue o delator. Encurrala-o na delegacia, onde Leca é morto. Novamente preso, Manda é julgado e condenado à guilhotina. O filme termina com Marie assistindo, da janela de uma pensão, durante a madrugada, à execução do amado. É um final seco e frio, desprovido de emoção, condizente com a inevitabilidade do naturalismo e sua exigência de conformação aos fatos.



Marie (Simone Signoret)  e Georges Manda (Serge Reggiani) diante da notícia da prisão de Raymond


Desde o começo, Amores de apache não nega filiação ao impressionismo. O passeio a barco pelo rio, das prostitutas com seus apaches, na campestre Joinville, todos elegantemente vestidos e esbanjando alegria, lembra algumas telas do movimento. A felicidade prossegue na sequência de dança no restaurante à beira do rio, onde os olhares de Marie e Manda se cruzam pela primeira vez. Quando dançam, parecem tomar todo o ambiente para si. Estão face a face, ele, seguro, envolvendo-a com apenas um braço, deixando o outro pender ao lado do corpo. Executam rodopios rápidos e simétricos. Marie — com o rosto reluzindo sob a vasta cabeleira loura — e Manda — de face impassível, realçada pelo vasto bigode — tornam-se, praticamente, modelos para as telas impressionistas. Essas cenas, aparentemente tão inocentes e plenas de felicidade, são, como se sabe, passageiras. Introduzem a tragédia que o filme, desde cedo, antecipa.



Georges Manda (Serge Reggiani) e Marie (Simone Signoret)


A adesão ao impressionismo é marcadamente forte no último momento alegre de Marie e Manda. Já foragido, ele a encontra no campo. A harmonia da natureza ao redor traduz a felicidade dos personagens em cenas banhadas na plena luz ou levemente fugidias, principalmente quando captam o semblante em close da personagem de Signoret. Ela surge como a materialização do encantamento, repleta de sensualidade. Pouco depois, a sensação de felicidade se apresenta cruelmente enganadora. Manda parece saber disso, apesar da relutância de Marie em aceitar o inevitável da condenação antecipada de seus melhores sonhos: assistem, por breves instantes, por insistência de Marie, a uma cerimônia de casamento. A seguir, encontram Félix Leca, como um espectro a invadir perfidamente a calma pastoral e bucólica do mundo breve de ambos. Com calculado desdém, o gângster comunica a prisão de Raymond pela morte de Roland. Se há o amor de Manda por Marie, também há a sua amizade sincera por um inocente injustamente aprisionado. O sentido da honra se instala de modo imperativo. Manda se apresenta à polícia, pondo fim à efêmera jornada de felicidade.



Os breves dias de um idílio campestre: Georges Manda (Serge Reggiani) e Marie (Simone Signoret)


Os atores estão magníficos. Serge Reggiani é um inspirado e convincente George Manda, incrivelmente coadjuvado pela densidade de um bigode que molda maravilhosamente sua aparência carregada de introspecção. Claude Dauphin está perfeito como o gelatinoso e vaidoso Félix Leca. Tão canalha como covarde, é o tipo que arranca suspiros de alívio do espectador no instante em que recebe o que bem merece. A Marie de Simone Signoret é a luz materializada na forma do desejo, sensação comunicada pela aparência angelical e inocente de seu rosto. Ela se move suave e graciosamente, como a colorir o preto-e-branco do filme.


A direção de fotografia de Robert Le Fevbre substitui os pincéis impressionistas. Essencial também à reprodução da época é a trilha musical a cargo de Georges Van Parys, pródiga na utilização de canções carregadas de sentido histórico como a clássica Les temps de cerises, imortalizada, entre outros, por Edith Piaf. No filme, é interpretada por mendigos. Também pontua, com rápidos acordes, os instantes finais.



Georges Manda (Serge Reggiani) diante da guilhotina


Amores de apache, quando lançado na França, foi inexplicavelmente mal recebido. Fracassou nas bilheterias. Os ingleses foram os primeiros a lhe reconhecer a importância, seguidos da crítica novaiorquina. A valorização pelos franceses começa com os cineastas da Nouvelle Vague, principalmente de François Truffaut, por motivos que exaltam sua simplicidade narrativa e a suavidade no tratamento do tema amoroso, em que pese a dimensão trágica da história. Atualmente, Amores de apache é um clássico devidamente reconhecido em seu país e além.


Por sua atuação, em 1953, Simone Signoret recebeu o prêmio BAFTA (British Academy of Film and Televsion Arts) de Melhor Atriz Estrangeira. Na ocasião, pelo mesmo instituto, Amores de apache foi indicado a Melhor Filme. Jacques Becker, em 1956, recebeu a Fita de Prata da Associação de Críticos de Cinema da Itália como Melhor Diretor em Filme Estrangeiro.



Marie (Simone Signoret) com um guarda do presídio


A título de curiosidade, os prolongamentos da história de Amelie Helie, a verdadeira Casque d’or, atrasaram o lançamento de Amores de apache. O marido da personagem entrou com liminar contra a exibição, com a justificativa de que o filme feria a privacidade da esposa. A causa logo se revelou improcedente, com a descoberta de que ela se apresentava no palco estrelando um número intitulado Casque d’or et les apaches.[4]






Direção de fotografia (preto-e-branco): Robert Le Febvre. Direção de arte: Jean D'Eaubonne. Montagem: Marguerite Renoir. Som: Antoine Petitjean. Assistentes de direção: Marcel Camus, Alain Jessua (não creditado). Música: Georges Van Parys. Roteiro: Jacques Becker, Jacques Companéez, com a colaboração de Annette Wademant (não creditada). Adaptação e diálogos: Jacques Becker. Diretor de produção: Henri Baum. Decoração: Maurice Barnathan. Figurinos: Mayo. Penteados: Alex Archambault. Maquiagem: Boris Karabanoff, Maguy Vernadet. Assistente de gerente de produção: Ulrich Picard. Gerente de unidade de produção: Louis Theron. Segundo assistente de direção: Michel Clément. Camareiro: Émile Dechelle. Assistente de decoração: Marc Frédérix. Designer: Alfred Marpaux. Contra-regra: Maurice Terrasse. Assistentes de som: Gaston Ancessi, Auboiroux. Assistente de direção de fotografia: Jean-Marie Maillols. Assistentes de câmera: Gaston Muller, Gilbert Sarthre. Operador de grua: Francis Rivolan. Eletricista-chefe: André Tixier. Confecção de figurinos: Marcelle Desvignes. Chefe de confecção de figurinos: Georgette Fillon. Figurinos das prostitutas: Marie-Rose Lebigot. Assistente de montagem: Geneviève Vaury. Continuidade: Colette Crochot. Publicidade: Maurice Vandair. Empresa de confecção de figurinos: Lanvin (não creditada). Companhia de pós-produção de som: Optihopne. Tempo de exibição: 96 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1994; revisto e ampliado em 2008)



[1] A autenticidade, como característica dos filmes de Jacques Becker, é lembrada, entre outros, por François Truffaut. Cf. TRUFFAUT, François. Os filmes de minha vida. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 205.
[2] As referências a este episódio e seus desdobramentos foram obtidas de: A PARISIAN period gangster romance. Disponível em <http://www.imdb.com/title/tt0043386/reviews> Acessado em 16 abr. 2008.
[3] Tête de turc é o primeiro filme que dirige. O último é A um passo da liberdade. Cf. JACQUES Becker (1906-1960). Disponível em http://www.imdb.com/name/nm0065442/#Director. Acessado em 12 abr. 2008.
[4] A PARISIAN period gangster romance. Disponível em <http://www.imdb.com/title/tt0043386/reviews> Acessado em 16 abr. 2008.