domingo, 8 de julho de 2018

A LONGA MARCHA CHEYENNE NO ÚLTIMO WESTERN DE JOHN FORD — SEGUNDA E ÚLTIMA PARTE

Os primeiros antecedentes para as filmagens de Crepúsculo de uma raça (Cheyenne Autumn, 1964) são encontrados em Richard Widmark. O intérprete do Capitão Thomas Archer no derradeiro western de John Ford foi professor universitário em Yale antes de optar pela carreira de ator com o intuito de se divertir. Formado em Literatura Inglesa, Artes e Direito, Widmark conhecia profundamente o tema da épica e longa marcha dos últimos Cheyennes rumo às terras de origem — inclusive o livro Cheyenne Autumn, de Mari Sandoz, publicado em 1953. A migração — um movimento milenarista — aconteceu em 1878. Graças ao ator, Ford tomou ciência do assunto. Inicialmente, não pretendia filmá-lo. Mudou de ideia no começo dos anos 60 e escalou Widmark para protagonista. Ao estampar a dramática situação de penúria física e material dos Cheyennes, o realizador — malgrado todas as críticas acerca das caracterizações dos líderes tribais e de alguns diálogos por demais enfáticos — inovou. Trata-se de um western avesso às principais convenções do gênero. Grosso modo, a má compreensão acompanhada de menosprezo ao filme decorre de avaliadores que optaram, metaforicamente, por observar árvores isoladas e não o conjunto da floresta. Mesmo limitado pela enfermidade que lhe abreviou a vida em 1973, Ford armou narrativa das mais complexas em estrutura vigorosamente anticlimática. Um dia — quem sabe? — Crepúsculo de uma raça será considerado com boa vontade e justiça, não somente por ser um dos mais importantes westerns revisionistas. Nele, o cineasta reavalia criticamente a própria trajetória no cinema, inclusive as esperanças alimentadas para os Estados Unidos em períodos marcados por maior otimismo. A visão acinzentada e tingida de pessimismo que passou a endereçar ao país se acentuava nos últimos filmes desde Rastros de ódio (The searchers, 1956) e, pode-se dizer, atingiu o paroxismo em Crepúsculo de uma raça. É fundamental perceber as motivações e falas dos personagens interpretados por Carroll Baker e Mike Mazurki — Deborah Wright e Stanilslaus Wichowsky — e as mudanças operadas na visão de mundo do Capitão Thomas Archer para se ter a certeza de que a realização apresenta um cineasta na plena maturidade, em diálogo crítico consigo mesmo e ao longo de todas as estações temporais nas quais consolidou uma das mais sólidas filmografias, principalmente os títulos ambientados no velho Oeste. Segue a segunda e última parte de uma apreciação originalmente escrita em 1978, revista e ampliada em 1996.







Crepúsculo de uma raça

Cheyenne Autumn

Direção:
John Ford
Produção:
John Ford (não creditado), Bernard Smith
Warner Brothers, Ford-Smith Productions
EUA — 1964
Elenco:
Richard Widmark, Carroll Baker, Ricardo Montalban, Gilbert Roland, Dolores Del Rio, Sal Mineo, James Stewart, Edward G. Robinson, Karl Malden, Arthur Kennedy, Patrick Wayne, Elizabeth Allen, John Carradine, Victor Jory, Mike Mazurki, George O'Brien, Sean McClory, Judson Pratt, Carmen D'Antonio, Ken Curtis e os não creditados Ben Johnson, Bing Russell, Carleton Young, Chuck Hayward, Chuck Roberson, Denver Pyle, Donna Hall, Harry Carey Jr., James Flavin, Jeannie Epper, John Qualen, Lee Bradley, Louise Montana, Many Muleson, Mary Statler, Nancy Hsueh, Nanomba "Moonbeam" Morton, Sam Harris, Shug Fisher, Stephanie Epper, Walter Baldwin, Walter Reed, William Henry, Willis Bouchey, James O'Hara, Frank Bradley, Danny Borzage, Dean Smith, David H. Miller, Ted Maples, Al Bain, Bert Stevens, Bill Borzage, Bill Williams, Bryan 'Slim' Hightower, Cap Somers, Charles Morton, Charles Seel, Dan Carr, Dave Dunlop, Eddie Juaregui, Harry Hickox, Harry Holcombe, Harry Strang, Jack Williams, Jerry Gatlin, Joe Brooks, Joe McGuinn, John McKee, John Roy, Mae Marsh, Mathew McCue, Michael Jeffers, Montie Montana, Philo McCullough, Rudy Bowman, Steven Manymules, Syl Lamont, Ted Smile, William Forrest, Zon Murray.



John Ford dirige sequência na guarnição militar da reserva dos Cheyennes em Crepúsculo de uma raça


Durante a penosa marcha os Cheyennes percorrem uma terra que, de familiar, lhes é, agora, totalmente estranha. Além da perseguição, enfrentam fome e doenças. Logo nos primeiros quilômetros falece o velho, alquebrado e enfermo Árvore Alta. Passa a Lobo Pequeno o “pacote sagrado”, símbolo da liderança. Isso não significa o alijamento de Faca Cega. Ambos decidem em conjunto; pensam e agem como um. Essa unidade é essencial ao grupo. Caso se rompa — se a “palha” se interpuser entre os líderes —, a nação Cheyenne correrá o risco da dissolução.


A tradução cinematográfica da unidade Cheyenne resulta na percepção da tribo como massa individualizada. É um dos trunfos de Crepúsculo de uma raça. Essa concepção se apresenta desde o início, quando os índios rumam à guarnição da reserva para a vã espera. O cenário da marcha, enquadrado pelos majestosos e maciços rochedos vermelhos de Monument Valley[1], amplia ainda mais a ideia de homogeneidade. Os Cheyennes quase sempre são percebidos emoldurados por essa paisagem mítica que remete às noções de solidez, tenacidade e permanência. Dentre as várias qualidades do cinema de Ford, Crepúsculo de uma raça destaca particularmente o rigor na combinação dos personagens com o meio envolvente. A integração dos índios com o ambiente é perfeita. As vigorosas formações do Monument Valley traduzem a coesão dos Cheyennes. Estes, por sua vez, têm ampliada a dimensão mítica pretendida pela direção  principalmente quando vistos cercados por um cenário que em tudo lembra a atemporalidade petrificada. Assim, quando a câmera capta o avanço da coluna índia diante da linha do horizonte — ou junto às mesas, aos rochedos e paredões; no centro dos vales, ou na vastidão da planície —, nada mais faz que firmar um diálogo entre uma instância que desafia o tempo — a paisagem — e outra que parece fazer o mesmo na luta pela sobrevivência — os fugitivos.


Entretanto, a moldura do Monument Valley também assume dimensões fúnebres. Apesar do significado heroico da jornada, sabe-se: aos evadidos não haverá futuro sorridente no Oeste totalmente conquistado e moldado pela vontade do colonizador. Dessa forma, a câmera iguala a coluna dos estropiados Cheyennes a mortos-vivos vagando sem descanso, inutilmente, sobre a terra que não herdarão. De fato, por mais que avancem, a paisagem não muda. Ao fundo, ao lado e ao centro, permanecem impávidos os mesmos rochedos do Monument Valley. Isso reforça a ideia de que, apesar da marcha rumo ao lugar de origem, os índios parecem imóveis ou caminham em círculos na aridez desesperançada de um cenário que assume ares de imenso sepulcro sob céu aberto. A percepção de imobilidade está presente desde os créditos de abertura, ilustrados por imagens de índios à semelhança de inofensivas estátuas ou miniaturas de brinquedo — pálidos reflexos da existência que levaram antes da conquista. Mas é a fixidez de Monument Valley que fala mais alto. Nunca, nem em Rastros de ódio, o cenário preferido de Ford assumiu dimensões tão invernais, trágicas, até sinistras.


Richard Widmark como o Capitão Thomas Archer e Mike Mazurki no papel do Primeiro Sargento Stanilslaus Wichowsky 

Carroll Baker como a missionária e professora Deborah Wright


Assegurar a unidade da tribo é desafio constante. Assim como o Capitão Archer às voltas com a impetuosidade de Scott, os Cheyennes também precisam lidar com a inquietação de seus rebeldes representados por Camisa Vermelha (Mineo). A mocidade, o físico imponente e o tom resplandecente e vivo das vestes do jovem e aguerrido filho de filho de Faca Cega e Espanhola (Del Rio) se destacam no conjunto aparentemente neutro e uniforme da tribo. Ele encarna a frustração do bravo que nunca participou de combates. Imprudente, ataca os soldados. Também desafia a autoridade de Lobo Pequeno, tomando-lhe uma das esposas. Suas ações trazem insegurança e provocam dissenso entre os líderes. Ameaçam a unidade. A divisão assume dimensões concretas em pleno inverno nevado, após 1100 Km percorridos, quando os Cheyennes estavam no atual estado do Nebraska, distantes 1300 Km de Yellowstone. A esta altura cessam as esperanças de matar a fome. Os bisões foram praticamente exterminados pela caça predatória dos brancos. Antigos aliados, como os Dakota, também não aparecem. A terra está vazia. Liderado por Faca Cega e confiantes na intermediação de Deborah, um grupo resolve alterar o curso e buscar socorro em Fort Robinson.


Fort Robinson é destacamento avançado comandado pelo Capitão Wessels  militar de estilo prussiano desprezado por Ford. Nada conhece dos índios, a não ser o que aprendeu em livros de autores que nunca estiveram no Oeste — a exemplo do alemão Karl May. A princípio, acolhe com humanidade os Cheyennes. Fornece-lhes aquecimento e alimentação. Ambicioso, pretende subir na hierarquia militar. Porém, recebe do alto comando ordens para aprisioná-los. Severo cumpridor de regulamentos, desprovido das necessárias temperança e margem de autonomia para fazer frente à problema tão espinhoso, não pensa duas vezes. Obedece cegamente às determinações sob os protestos de Deborah e Archer. Confina a tribo em paiol desprovido de aquecimento. Aí devem aguardar a condução sob escolta armada para a reserva. Preocupado com o rumo dos acontecimentos e pressionado pela frustração de Deborah, Archer toma a decisão de sua vida. Solicita licença e parte para Washington, ao encontro de Carl Schurz (Robinson, em papel inicialmente pensado para Spencer Tracy), Secretário do Interior que tem sob jurisdição o Departamento Indígena. Sem força política, enfrenta o fogo cruzado de militares, políticos e especuladores fundiários que o pressionam a resolver a questão Cheyenne de uma vez — de preferência pela força —, pois a paz é fundamental aos negócios. Está prestes a perder o cargo.


O Capitão Thomas Archer (Richard Widmark) toma a decisão mais arriscada de sua vida


Logo no começo, Ford antecipa a capacidade de iniciativa de Archer em passagem aparentemente desprovida de significado: o acomodado e centrado oficial, solicitado por Deborah, conserta a cadeira que serviria a um senador. Agora, esse ato encontra desdobramentos. Archer leva a Schurz notícias bem fundamentadas sobre a tragédia dos Cheyennes. Também confronta interesses poderosos que lhe ameaçam a carreira. Entretanto, a situação se descontrola em Fort Robinson. As atitudes intempestivas do Capitão Wessels forçam os índios a uma reação desesperada. Escapam sob o fogo dos soldados. Resta um banho de sangue, um assassinato em massa que Ford expõe sem máscaras. Poucos sobrevivem. As cenas do pátio nevado da guarnição estão apinhadas de cadáveres. Crianças índias, atônitas e desesperadas, a tudo testemunham. Wessels, bêbado e catatônico, perambula no cenário de horror. São momentos dos mais fortes e pungentes da fordiana.


O Capitão Wessels (Karl Malden) no cenário do massacre em Fort Robinson


Os sobreviventes — dentre os quais Faca Cega, Espanhola e Camisa Vermelha — se reúnem ao grupo do qual se separaram a 1800 Km do início da jornada, no atual estado do Dakota, em um lugar expressivamente denominado Caverna da Vitória pelos Cheyennes. Porém, não há tempo para confraternizações. O exército, sob as ordens do General Sheridan, cerca a área com apoio de canhões. O espectador familiarizado à obra de Ford certamente se lembrará: herói da Guerra de Secessão, Philip Henry Sheridan mereceu bela e emocionada homenagem em Rio Grande, último filme da Trilogia da Cavalaria completada por Sangue de heróis e Legião invencível. Interpretado por J. Carrol Naish, foi saudado como “The Bold Fenian Man” por meio da evocativa e tradicional canção Down by the glen side executada pelos "soldados do conjunto" The Sons of the Pioneers (Ken Curtis, Hugh Farr, Karl Farr, Lloyd Perryman, Shug Fisher e Tommy Doss). Quatorze anos depois, em Crepúsculo de uma raça, Sheridan não goza de prestígio algum. É apenas um personagem sem rosto, somente um nome que ordenou covarde cerco a um grupo inferiorizado de infelizes maltrapilhos.


Diante da Caverna da Vitória
Lobo Pequeno (Ricardo Montalban), Faca Cega (Gilbert Roland) e Camisa Vermelha (Sal Mineo) 


Felizmente os canhões não disparam, graças à providencial chegada de Carl Schurz e Archer. O Secretário do Interior ordena o fim da insensatez e adverte o renitente Coronel (Bouchey) no comando das tropas. Adianta-se para dialogar com Faca Cega e Lobo Pequeno, apesar da irada reação de Camisa Vermelha. O monumental esforço iniciado nas áridas paragens do território de Oklahoma chega ao fim. A grandeza da epopeia é reconhecida. A Presidência dos EUA consente no retorno dos Cheyennes à terra ancestral. Resta a cura das feridas. Em cerimônia tribal, o humilhado Lobo Pequeno mata Camisa Vermelha em ajuste de contas. A seguir, transfere para Faca Cega o “pacote sagrado” — símbolo do chefe dos chefes — e se aparta do grupo. Afinal, conforme a tradição, “Não poderá permanecer na terra dos Cheyennes aquele que derramou o sangue de outro Cheyenne”.


O Capitão Thomas Archer (Richard Widmark) e o Secretário do Interior Carl Schurz (Edward G. Robinson)


Apesar das muitas virtudes, Crepúsculo de uma raça não é plenamente realizado. As dificuldades decorrem do próprio estado físico de John Ford, visivelmente adoentado e necessitado de cuidados médicos ao longo de praticamente todo o extenuante processo de filmagens em locações. Muitas quebras de tom impedem a solidez de uma estrutura narrativa coerentemente armada. Além do mais, o diretor enfrentou desafios de outra ordem: alguns pelo fato de levar adiante uma autoexpiação ou mea culpa; outros por Crepúsculo de uma raça desafiar as próprias concepções cinematográficas do western e do Oeste. Às vezes padece por causa da longa duração, outras de inconstâncias rítmicas. As maiores virtudes decorrem da fotografia invernal de William Clothier e música de Alex North — ainda assim considerada excessiva por Ford. Também não apreciou o hipnótico formato Super Panavision 70 mm. Responsabilizou-o por provocar considerável dispersão dos elementos cênicos quando pretendia integrá-los mais intimamente à imagem.


Entretanto, os principais problemas de Crepúsculo de uma raça não decorrem da direção. Ford se queixou das decisivas intromissões do coprodutor Bernard Smith: optou por montagem que não contribuiu para a fluência do relato e suprimiu cenas consideradas importantes. Assim, prejudicou a desconcertante sequência de Dodge City — com Wyatt Earp (Stewart) e Doc Holliday (Kennedy). Parece apartada do conjunto, como se fosse um trecho inserido a fórceps e incapaz de informar a que veio. Originalmente, Ford concebeu-a como intermission. Seria uma distração ao espectador, para diluir a dimensão por demais trágica e densa da história. Confirmou para Peter Bogdanovich o desvirtuamento da ideia: a intromissão de Bernard Smith nada mais fez que incluir um descanso de verdade em meio à tragédia[2]. Desta forma, a frustrada Batalha de Dodge está mais para uma sequência burlesca ao estilo dos Keystone Cops. Nem todas as cópias de Crepúsculo de uma raça apresentam integralmente a intermission. Ainda assim, apesar de desconectada, vale apreciá-la. Ford aproveitou-a para desmistificar dois dos mais preciosos mitos do Oeste e de sua filmografia: Wyatt Earp e Doc Holliday, imortalizados em Paixão dos fortes. O Earp interpretado por James Stewart em nada se parece ao xerife cavalheirescamente gentil vivido por Henry Fonda em 1946. Agora é cínico, vaidoso e amoral — praticamente um prolongamento do maculado Marshal Guthrie McCabe (novamente Stewart) de Terra Bruta, mais preocupado com em obter ganhos extras em desacordo com as liturgias do cargo. Apesar disso, o personagem critica a paranoia instalada com relação aos índios. Já o Doc Holliday personificado por Arthur Kennedy pouco lembra o tísico jogador e pistoleiro vivido por Victor Mature. Está totalmente curado em Crepúsculo de uma raça.


John Carradine, James Stewart e Arthur Kennedy fazem Major Jeff Blair, Wyatt Earp e Doc Holliday

  
Bernard Smith também vetou planos para a melhor caracterização dos Cheyennes. Segundo Tag Gallagher, Ford foi obrigado a engolir um elenco de feições caucasianas e meia idade para dar vida aos principais personagens índios[3]. Já os protegidos Navajos se encarregaram do grosso da figuração. O diretor trabalhou insatisfeito com Gilbert Roland, Ricardo Montalban, Sal Mineo e Karl Malden — distantes das características fundamentais da The Ford Stock Company.


Carroll Baker foi outra imposição. Apesar de admirá-la, Ford queria atriz mais madura para interpretar Deborah Wright. Afinal, segundo a novela Cheyenne Autumn, de Mari Sandoz — principal base para o roteiro de James R. Webb e Patrick Ford —, a professora que acompanhou os índios era uma solteirona de idade avançada que abandonou a jornada por incapacidade física. Porém, confessa Ford: queriam para o papel “uma mulher jovem e bonita”[4]. Apesar de tantas interferências que pretendiam deixar o filme mais palatável ao público médio estadunidense, Crepúsculo de uma raça fracassou nas bilheterias. A crítica, descontadas as raríssimas exceções, considerou-o enfadonho.


Outras alterações em relação ao original de Sandoz foram percebidas por Tag Gallagher: Lobo Pequeno não matou Camisa Vermelha e, sim, Alce Pequeno. Essa morte se deu em circunstâncias diferentes de uma cerimônia tribal. A mulher pivô da questão era filha e não esposa. Faca Cega foi descrito como um bêbado e não um chefe altivo e determinado[5]. Já o Secretário do Interior Carl Schurz não se envolveu diretamente com os Cheyennes e, provavelmente, nunca foi ao Oeste.


Primeiro Sargento Stanilslaus Wichowsky  (Mike Mazurki) e o Capitão Thomas Archer (Richard Widmark) 


Algumas passagens refletem um idealismo gritantemente ingênuo, até para época da realização. Exemplo é Archer dizendo a Shcurz: “Se o povo tivesse visto (a situação dos Cheyennes) não iria gostar”. Ou o questionamento de Faca Cega para o Secretário: “O povo! Quem contará ao povo o que aconteceu em Fort Robinson?” “Eu contarei!” — responde Schurz taxativamente.


Crepúsculo de uma raça possibilita uma das mais belas homenagens que o cinema ofereceu a Abraham Lincoln. Sempre que podia, Ford o reverenciava. A primeira vez foi em O cavalo de ferro. A seguir, Lincoln ilustrou figurativamente, como homem de boa vontade, O prisioneiro da Ilha dos Tubarões (The prisoner of the Shark Island, 1938). Em 1939 serviu de tema a uma das obras mestras da fordiana: A mocidade de Lincoln[6]. Em Crepúsculo de uma raça, Carl Schurz questiona o que parece simplesmente uma parede. Pergunta: “E você, velho amigo, o que faria?”. Logo a câmera revela o contracampo: o retrato do assassinado presidente sob o vidro que reflete o rosto do Secretário do Interior.


Alguns atores caros a Ford aparecem em Crepúsculo de uma raça. Praticamente repetem papéis de outros filmes do diretor. Ben Johnson, por exemplo: o soldado Plumtree não deixa de ser o Sargento Tyree de Legião invencível. Johnson, campeão de rodeios e cowboy de verdade, contou com a proteção de Ford no início da carreira. Estreou no cinema em O céu mandou alguém (3 godfathers, 1948). Atuou em Rio Bravo e protagonizou Caravana de Bravos. Também comparece em Os brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens; A face oculta (One-eyed jacks, 1961), de Marlon Brando; e em realizações de Sam Peckinpah: Juramento de vingança (Major Dundee, 1965), Meu ódio será sua herança (Wild bunch, 1969), Dez segundos de perigo (Junior Bonner, 1972), Os implacáveis (The getaway, 1972). Foi dublê de John Wayne. Conquistou o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante em A última sessão de cinema (The last picture show, 1971), de Peter Bogdnovich.


Shug Fisher e Ted Maples, respectivamente intérpretes do bêbado chutado do saloom pelo barman (Jack Pennick) e do gago vaqueiro Kentucky em O homem que matou o facínora retomam essas personas em Crepúsculo de uma raça. John Carradine, no papel do Major Jeff Blair — companheiro de pôquer de Wyatt Earp e Doc Holliday —, interpretou o jogador Hatfield em No tempo das diligências. Com Ford, Carradine também atuou em O prisioneiro da Ilha dos Tubarões, Mary Stuart, rainha da Escócia (Mary of Scotland, 1936), O furacão (The hurricane, 1937), Quatro homens e uma prece (Four men and a prayer, 1938), Patrulha submarina (Submarine patrol, 1938), Ao rufar dos tambores, As vinhas da ira (The grapes of wrath, 1940), O último hurra (The last hurrah, 1958) e O homem que matou o facínora.


De volta à terra de origem: os Cheyennes chegam ao fim da longa marcha


Por fim, há George O’Brien — ator caro a Ford. Começou no cinema na década de 20 como assistente de câmera e dublê de Tom Mix. Para o diretor protagonizou O cavalo de ferro, Thank you (1925), Coração intrépido (The fighting heart, 1925), Três homens maus (Three bad men, 1926), A águia azul (The blue eagle, 1926), Em continência (Salut, 1929) e Sob as ondas (Seas beneath, 1931). Também trabalhou com Ford em Sangue de heróis e Legião invencível, nos papéis de oficiais da cavalaria tal qual em Crepúsculo de uma raça. Foi o protagonista de Aurora (Sunrise, 1927), obra mestra de Friedrick Wilhelm Murnau.





Roteiro: James R. Webb, Patrick Ford (não creditado), sugerido da novela Cheyenne Autumn, de Mari Sandoz, e da não creditada novela The last frontier, de Howard Fast. Direção de fotografia (Technicolor, Super Panavision 70): William H. Clothier. Direção de arte: Richard Day. Montagem: Otho Lovering, David Hawkins (não creditado). Som: Francis E. Stahl. Decoração: Darrell “Darryl” Silvera. Assistentes de direção: Wingate Smith, Russell “Russ” Saunders. Associado à direção e direção de segunda unidade: Ray Kellogg. Consultor de assuntos indígenas: David H. Miller. Música e direção musical: Alex North. Coordenação de dublês: Chuck Roberson. Narradores: Spencer Tracy, Richard Widmark. Figurinos (não creditados): Frank Beetson Jr., Ann Peck. Maquiagem: Norman Pringle (não creditado). Efeitos especiais: Ralph Webb (não creditado). Dublês (não creditados): Eli Bo Jack Blackfeather, Jeannie Epper, John Epper, Stephanie Epper, Jerry Gatlin, Donna Hall, Chuck Hayward, Bryan 'Slim' Hightower, John Hudkins, Loren Janes, Leroy Johnson, Eddie Juaregui, Cliff Lyons, Ted Mapes, John McKee, Louise Montana, Montie Montana, Rudy Robbins, Chuck Roberson, Dean Smith, Neil Summers, Bill Williams, Jack Williams. Operador de câmera: Gerald Perry Finnerman (não creditado). Fotografia de cena: John R. Hamilton (não creditado). Aparelhamento elétrico: Doug Mathias (não creditado). Assistentes de câmera (não creditados): George R. Schrader, Harrold Weinberger. Assistente de figurinos: Luster Bayless (não creditado). Gerente de locações: Bill Cornford (não creditado). Orquestração (não creditada): Henry Brant, Gil Grau. Sistema de mixagem de som: Stereo em 6 pistas para cópias em 70mm e mono para 35 mm. Tempo de exibição: 159 minutos (165 minutos na versão original).


(José Eugenio Guimarães, 1978; revisto e ampliado em 1996)



[1] Essa área de singular beleza, esculpida pela erosão eólica, está situada no coração da Reserva Navajo, entre os estados do Utah e Arizona. Com o tempo, tornou-se a locação predileta de John Ford que aí rodou No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), Paixão dos fortes, Sangue de heróis, Legião invencível, Rastros de ódio, Audazes e malditos e Crepúsculo de uma raça. É cortada pelo Rio San Juan — atravessado pelos Cheyennes quando deixam os limites da reserva — que, segundo o diretor, parece "desenhado por (Frederick) Remington (artista estadunidense considerado mestre na recriação do velho Oeste). É o rio do Oeste mais típico que conheço. Clássico!". Cf. BODANOVICH, Peter. Op. cit. 1986. p. 172 (parênteses de José Eugenio Guimarães).
[2] Cf. BOGDANOVICH, Peter. Op. cit. 1983, p. 99.
[3] GALLAGHER, Tag. John Ford: the man and his films. Bekerley: University of California. 1988. p. 429.
[4] BOGDANOVICH, Peter. Op. cit., 1983, p. 99.
[5] GALLAGHER, Tag. Op. cit. p. 429.
[6] Charles Edward Bull, Frank McGlynn Sr. e Henry Fonda interpretaram Abraham Lincoln, respectivamente, em O cavalo de ferro, O prisioneiro da Ilha dos Tubarões e A mocidade de Lincoln.