domingo, 7 de fevereiro de 2016

ROBERTO FARIAS SE PROJETA NO ASSALTO DE TIÃO MEDONHO

Esta apreciação, escrita em 1982, aborda uma das melhores realizações do cinema brasileiro: O assalto ao trem pagador (1962), de Roberto Farias. O ponto de partida é o notório roubo ao comboio SAP-21, acontecido nas proximidades de Japeri, estado do Rio de Janeiro, em 14 de junho de 1960. Seis homens tomaram a composição e se apoderaram de 27 milhões de cruzeiros — valores da época — destinados ao pagamento de salários dos ferroviários da Central do Brasil. O golpe, ousado e inédito em terras brasileiras, incendiou o imaginário popular e mexeu com os brios da polícia e jornalistas. Chegaram a acreditar que uma quadrilha internacional, integrada por gente de boa condição financeira, fizera o serviço. Passado muito tempo, investigações conduzidas em bases mais racionais apontaram para a dura verdade. Roberto Farias, apoiado em roteiro enxuto, conta contundente e cruel história feita no cruzamento do drama com a crônica policial, a denúncia e a tragédia. Poucas vezes a estrutural exclusão social brasileira, alimentada principalmente por critérios raciais — e que ainda atinge amplos setores da população —, teve exposição tão aguda pelo cinema. O assalto ao trem pagador é encenação realista, em amplo espectro, da miséria que caracteriza o Brasil. Apoia-se em interpretações fortes e consistentes, principalmente do então novato Eliezer Gomes no antológico papel de Tião Medonho. A direção é precisa e objetiva. Também se destacam a expressiva direção de fotografia de Amleto Daissé e a original trilha musical de Remo Usai, essencialmente cinematográfica.






O assalto ao trem pagador

Direção:
Roberto Farias
Produção:
Roberto Farias, Herbert Richers, Arnaldo Zonari
Herbert Richers Produções Cinematográficas
Brasil — 1962
Elenco:
Eliezer Gomes, Luiza Maranhão, Reginaldo Faria, Ruth de Souza, Átila Iório, Jorge Dória, Helena Ignêz, Dirce Migliaccio, Miguel Rosenberg, Grande Otelo, Clementino Kelé, Miguel Ângelo, Wilson Grey, Oswaldo Louzada, Mozael Silveira, Billy Davis, Francisca "Chica" Xavier, Nelson Dantas, Antônio Carlos Pereira, Arnaldo Montel, Jorge Coutinho, Paulo Copacabana, Kleber Drault, Ricardo Luna, Milton Leal, Almeidinha, Jorge Abicalil, Mario Batista, Waldemar Regis, Nascimento Gomes, Lícia Magna, Jecy Gonzales, Regina Maria, Birgita Westman, José Lopes, Philô e sua equipe de repórteres, Ambrósio, e os não creditados Álvaro Aguiar, Dóris Carvalho, Carlos Cristiano, Cosme dos Santos, Fregolente, Gracinda Freire, Mário Lago, Dib Lutfi, Vera Lúcia, Procópio Mariano, Paulo Rodrigues, Joel Rosa, Karen Wanzer.



O diretor Roberto Farias



Sobre assaltos a trens pagadores sempre preferi o brasileiro ao britânico. Graças ao filme praticamente impecável de Roberto Farias — história policial tensa, socialmente compromissada, dramaticamente muito bem encenada e magnificamente interpretada —, a desventura da trágica e infeliz quadrilha de Tião Medonho sempre soou mais fascinante — e exemplar da brasilidade — que as peripécias de Ronald Biggs, inclusive pelos tratamentos e destinos extremamente diferenciados dados aos personagens de ambas as tramas.


Biggs era um dos 17 integrantes do grupo que se apropriou, em 1963, na madrugada de 7 de agosto, de aproximados 2,6 milhões de libras esterlinas do expresso postal (ou pagador) no percurso Glasgow-Londres. O assalto brasileiro precedeu o britânico em três anos. Aconteceu em 14 de junho de 1960. Aproximadamente 27 milhões de cruzeiros foram levados do trem pagador SAP-21 — conduzido pelo maquinista Venceslau José de Castro auxiliado pelo foguista Pedro José da Silva — quando a composição chegava à notória Curva da Morte, perto de Japeri/RJ. Tinha por destino final a Estação Dom Pedro II ou Central do Brasil, no Rio de Janeiro. A operação, por conta de seis homens, foi rápida, precisa e inédita no país.


Causa espécie o tratamento dos dois assaltos pela polícia, imprensa e políticos da terra. Enquanto a quadrilha de Tião Medonho foi implacavelmente caçada por mais de um ano, até a morte, prisão e achincalhe público de seus componentes — quase todos negros, pobres e favelados —, o inglês Ronald Biggs, procurado inclusive pela Interpol, não encontrou praticamente problema algum em escapar para o Brasil e viver no Rio de Janeiro em plena liberdade, gozando da fama e do dinheiro conseguidos na operação. Apesar dos apelos britânicos, as autoridades brasileiras nunca se dispuseram a extraditá-lo. Biggs — reconhecidamente um fora da lei — chegou a passar por atração turística, sempre paparicado por colunistas sociais, sabujos do jornalismo e condestáveis do baixo e alto cleros políticos.


Os pouco mais de 27 milhões de cruzeiros levados do trem pagador brasileiro eram, à época, fortuna considerável. Rudimentarmente guardados pelo funcionário Cícero de Carvalho, destinavam-se aos salários de aproximados mil empregados da Central do Brasil. Os assaltantes interromperam o comboio após dinamitar a via. Entraram nos vagões atirando. Logo dominaram a tripulação e se apossaram do dinheiro. Seria um trabalho totalmente limpo — segundo a linguagem popular — não fosse a morte de um agente ferroviário cumprindo a folga e viajando em despreocupada carona.


A alta quantia mais a audácia dos criminosos e rapidez da operação logo chamaram a atenção de policiais e jornalistas. O assalto ao trem pagador da Central do Brasil tomou conta dos noticiários e mobilizou investigadores. Afoitos na busca aos responsáveis, gastaram energia às tontas. Partiram do pressuposto de que uma quadrilha internacional, composta de gente em boa condição financeira, executara o serviço. Pistas encontradas no local do assalto — cheques de viagem, restos de uísque e cigarros importados — assim levaram a supor. Chegou-se a cogitar que brasileiros não teriam preparo para levar a cabo ação de tamanha envergadura.


Com tantas pistas falsas, alimentadas principalmente pela imprensa sensacionalista — mais interessada em vender jornais —, as diligências, coordenadas pelo delegado Amil Ney Rachid, de Duque de Caxias, terminavam invariavelmente em becos sem saída. O assalto iria completar um ano. As investigações entraram em novo patamar quando receberam o suporte do célebre detetive Perpétuo Freitas da Silva, da polícia do Rio de Janeiro. Metódico, conhecedor do submundo carioca, abastecido por informantes de confiança e apoiado em anotações pessoais que formavam um precioso arquivo sobre ações da marginalidade, não demorou para elucidar o crime. Percebeu semelhanças entre o assalto ao trem pagador com dois golpes que tiveram participação de Nilo Peru. Com este nome chegou a Anastácio de Souza e aos irmãos Manoel, Zeferino e Sebastião, o Tião Medonho. As deduções estavam corretas. Em maio de 1961 o caso estava praticamente elucidado. A polícia sabia a quem procurar. Nilo Peru — para muitos a liderança intelectual da quadrilha — jamais foi encontrado. Há suspeitas de seu assassinato pelos comparsas, por causa de desavenças sobre os gastos do dinheiro. Os demais foram presos. Tião Medonho, gravemente ferido na tentativa de escapar a uma emboscada, foi capturado à beira da morte, na casa da amante, no subúrbio carioca de Barros Filho. As sobras do assalto reapareceram aos poucos, em esconderijos diversos.


Ao centro, interpretado por Jorge Dória, o delegado responsável pelas investigações

  
O assalto ao trem pagador é, provavelmente, o melhor filme de Roberto Farias. Representa significativo salto de qualidade se comparado aos precedentes. Também é um dos grandes títulos do cinema brasileiro. Antes de realizá-lo, o diretor teve boa experiência no cinema policial ao abordar livremente a trajetória do notório bandido paulista Promessinha, rebatizado como Passarinho e interpretado por Reginaldo Faria em Cidade ameaçada (1960). Roberto Farias se impôs lentamente e com vontade no mundo do cinema. Antes de passar à realização, aprendeu o bê-a-bá do ofício ao participar de diversas equipes de filmagens no Rio de Janeiro e São Paulo. De início, fez assistência de direção de Aviso aos navegantes (1950), de Watson Macedo e, também do diretor, Aí vem o barão (1951), É fogo na roupa (1952), O petróleo é nosso (1954), Rio fantasia (1957) e A grande vedete (1958). Na mesma função trabalhou em Areias ardentes (1952), de J. B. Tanko, e O diamante (1956), de Euripídes Ramos. Experimentou a gerência de produção — Maior que o ódio (1951), de José Carlos Burle, O primo do cangaceiro (1955), de Mario Brasini, e Depois eu conto (1956), de José Carlos Burle e Watson Macedo — e a assistência de produção para Carlos Hugo Christensen — Mãos sangrentas (1955), Leonora dos sete mares (1955) — e Ruy Costa — Tira a mão daí! (1956).


Roberto Farias estreou na direção em 1957. Prudente, fincou os pés no já conhecido terreno da comédia popular que lhe permitiu observar os métodos dos realizadores José Carlos Burle, J. B. Tanko e Watson Macedo. A chanchada Rico ri à toa se apoia nos talentos e popularidades de Zé Trindade e Violeta Ferraz. O segundo filme, No mundo da lua (1958), também chanchada, tem Walter D'Ávila, Violeta Ferraz e o irmão Reginaldo Faria. O seguinte, realizado com maior segurança, seria a oportunidade de se firmar no panorama cinematográfico. Infelizmente, o bom Cidade ameaçada (1960) não vingou. Fracassou nas bilheterias. Ainda é um título pouco conhecido. A culpa disso, segundo Glauber Rocha, é da visão estreita[1] do produtor A. J. Orsini.


A quarta realização tem sabor de retrocesso. É como se Roberto Farias voltasse à segurança do universo conhecido para mais uma chanchada: Um candango na belacap (1961), com Grande Otelo e Ankito. Por outro lado, aproximou-o de Herbert Richers, produtor fundamental à existência do seguinte O assalto ao trem pagador.


Pode-se dizer que a gestação de O assalto ao trem pagador começou no próprio ano em que o fato teve lugar. Roberto Farias estava na França com Cidade ameaçada — indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes — quando recebeu as notícias sobre o crime. Logo se viu diante de uma boa história para o cinema. Na volta ao Brasil, começou a trabalhar no assunto. Acompanhou de perto o trabalho da imprensa e as investigações empreendidas pelo delegado Amil Ney Rachid. Fez laboratório e pesquisa de campo. Conheceu de perto as miseráveis condições de vida dos favelados, destituídos dos mais elementares princípios do direito e acossados sem o menor pudor por jornalistas e policiais. Leu tudo sobre o caso e entrevistou personalidades posicionadas nos dois lados da investigação.


Com o rumo da história definido, procurou Glauber Rocha[2]. Queria ajuda para escrever o roteiro. Envolvido com a realização de Barravento, o cineasta baiano indicou o repórter fotográfico da revista O Cruzeiro, Luiz Carlos Barreto. Pelo que se sabe, ele e Farias se reuniram algumas vezes, mas pouco produziram de efetivo. Apenas trocaram ideias sobre o assunto. O realizador escreveu o guião praticamente sozinho. Inseriu à peça muito do que testemunhou das diligências policiais e do comportamento dos jornalistas. O assalto ao trem pagador guarda fidelidade aos fatos, mas Farias desenvolveu o tema com liberdade de criação. O roteiro vigoroso, preciso e enxuto teve o respaldo de Alinor Azevedo e Otto Lara Rezende. O aval de Rezende foi fundamental para José de Magalhães Lins — cinéfilo e sócio do Banco Nacional — emprestar cerca de 18 milhões de cruzeiros para as filmagens. O banqueiro impôs apenas uma condição[3], aceita sem objeções pelo diretor: Herbert Richers seria um dos produtores.


O assalto propriamente é apenas ponto de partida a uma história feita de drama, crônica policial, crítica social e tragédia. É apresentado de imediato, em começo tenso e antológico. As imagens iniciais o antecipam. Os acontecimentos posteriores são os que mais interessam: o destino dado à quantia roubada e sua interferência na vida dos assaltantes, possuidores de uma riqueza que jamais teriam pelas vias normais. É quando começam as trampas da desdita. Que podem fazer, concretamente, homens que nunca ultrapassaram os limites da pobreza e da exclusão social, com tanto dinheiro? Como gastá-lo para suprir as necessidades mais básicas sem chamar a atenção? Uma das condições impostas por Grilo (Reginaldo Faria) — branco e único não favelado do grupo — logo após a partilha é a de evitar as tentações do consumo. Cada qual deve usar, no máximo, ao longo de um ano, apenas 10% do valor recebido. É uma obrigação a ser acatada por todos. Quem descumpri-la será morto, não importa quando e onde. Então, todo cuidado é pouco. Polícia, vizinhos e conhecidos podem desconfiar de qualquer aquisição além dos padrões corriqueiros. A premissa funciona como prisão. Potencialmente, cada integrante da quadrilha está imobilizado, sem muito poder fazer, às vultuosas quantias guardadas.


Reginaldo Faria interpreta o assaltante Grilo, uma alcunha para o nunca encontrado Nilo Peru


Margarida (Migliaccio) — realista esposa de Edgar (Rosenberg) — praticamente sofre um colapso nervoso ao vê-lo em casa com tanto dinheiro, depositado no interior de um vaso sanitário inaproveitado. Contas bancárias nem pensar. "Pobre não pode passar de ladrão de galinhas" — diz a mulher. À frente, diante do dispêndio do marido na aquisição de um automóvel de segunda mão, afirma: "Onde já se viu favelado ter carro?". É o grande paradoxo do roteiro de influências neorrealistas: o dinheiro não possui valor, pois está impedido de circular. Aos favelados estão barradas as possibilidades de alterações qualitativas na existência, mesmo que possuam condições materiais para tanto. Resta a Tião Medonho (Gomes) a opção de pequenos gastos com a aquisição de alguns bens para as duas famílias que sustenta, inclusive brinquedos para os filhos. Deverá permanecer no trabalho, como funcionário de baixo escalão, para manter as aparências. Então, só resta improvisar esconderijos para o dinheiro. Um dia, imagina, poderá servir à educação dos filhos.


A revelação de O assalto ao trem pagador: Eliezer Gomes no papel de Tião Medonho


As tensões crescem entre os membros da quadrilha desde o momento da partilha. É quando se percebe, pela primeira vez, a presença de Eliezer Gomes, o intérprete de Tião Medonho. Preenche a tela e a banda de som com sua movimentação e voz. Fora, até então, mero funcionário público de 42 anos sem experiência na atuação. Oferece um desempenho afinado, poliédrico, insuperável. Pode passar de sujeito cordato (como normalmente aparenta ser), pai carinhoso e marido compreensivo a um vulcão prestes a explodir, violento, na imposição de sua ascendência sobre os demais. A ele pertence o filme. Tião garante o cumprimento da barreira dos 10% junto aos companheiros. Em princípio, não é algo difícil de fazer, graças ao seu poder de intimidação acrescido do fato de que todos são seus vizinhos, exceto Grilo. Este, branco, louro e de olhos azuis, mora em condições remediadas na Zona Sul do Rio. Por suas características, põe-se acima dos demais e gasta além das medidas acordadas, sem despertar suspeitas. O rompimento do acordo, baseado em critérios raciais, é explosivo. Expõe uma das principais fissuras, não só do bando mas da sociedade brasileira em sua conformação histórica. Negros e favelados estão, por suas próprias origens, condenados à marginalidade estrutural. Basicamente, estão impedidos de ascender. O assalto serve como metáfora para acirrar a realidade dessa impossibilidade prática. Inclusive pelo fato logo revelado acerca dos membros da quadrilha: não são bandidos na estrita acepção do termo. São homens marginalizados, acuados pela miséria, vítimas de uma situação que não podem individualmente solucionar por seus próprios méritos. O dinheiro não resolve o problema. Apenas queima dedos, gera desconforto, impõe a paranoia e desencadeia a violência.


As condições de vida na favela são chocantes. Crianças nuas e barrigudas, brincando próximas ao esgoto correndo sob céu aberto, são os aspectos mais evidentes. Também há o fantasma da morte, sempre presente. Pode-se morrer devido à violência ou por banais problemas de saúde. Cachaça — pequena e marcante interpretação de Grande Otelo —, membro da quadrilha sempre alcoolizado — para alegria dos guris —, encontra na bebida o refúgio para suportar a vil situação. De que vale o dinheiro que recebeu? Diante do féretro de um menor, pronuncia com cortante ênfase: “Quando morre uma criança na favela, todo mundo devia cantar, pois é menos um pra se criar nessa miséria”.


Grande Otelo no pequeno e marcante papel de Cachaça

  
Na exposição da cruel exclusão característica da estratificação social brasileira, O assalto ao trem pagador é um dos painéis mais fortes e contundentes. Explicita o alijamento econômico de amplos setores e seus prolongamentos lógicos nas esferas social, política e civil. Tião Medonho e os demais estão destituídos de todos os direitos básicos que comportam a cidadania. Disso são exemplares os tratamentos que recebem da polícia e dos jornalistas posicionados no papel de parceiros da investigação e repressão. Estão constantemente ameaçados. Têm os casebres invadidos e revirados por qualquer pretexto. Ao final, Zulmira (Maranhão) — já na condição de viúva de Tião Medonho — se desespera com o acintoso assédio de repórteres e investigadores. Diante dos filhos menores e assustados, responde à agressão com golpes de machado deferidos contra o guarda-roupa, no que revela significativa parte do dinheiro roubado.


Zulmira (Luiza Maranhão) e Tião Medonho (Eliezer Gomes)


A direção de Roberto Farias é exemplar, principalmente por manter o ritmo em tensão crescentemente acelerada e por tocar em mazelas sociais que expõem a cruel e original desigualdade brasileira. Dos dois lados do aparato legal a violência surge como forma conveniente de resolver conflitos. Tião Medonho procura manter os que lhe são próximos dentro de limites condizentes com o tolerável, para evitar suspeitas. Mesmo quando dialoga, está no limite da explosão violenta. São exemplares os momentos em que enquadra Cachaça — sempre falando demais devido à bebida —, Edgar — em decorrência da paranoia crescente de Margarida —, ou o sobrinho Miguel Gordinho (Ângelo) — que se torna, segundo a caracterização de um repórter, capitalista do morro por adquirir vários barracos para aluguel, com os quais explora acintosamente os mais necessitados. Tião também cumpre o trágico mandamento de matar, sem piedade, quem põe em risco a segurança dos demais. É exemplar o instante da execução do tio de Edgar: "Tu é o valente que não tem medo de homem, não é? Levanta que não mato homem sentado". É uma das falas antológicas do cinema brasileira. Ou quando acerta as contas com o perdulário Grilo, momento em que se acirram as diferenças sociais e raciais em níveis raras vezes permitidos pela dissimulação brasileira — tão zelosa no ocultamento dessas questões. O personagem vivido por Reginaldo Faria, totalmente imobilizado, sabe que morrerá. Sem nada a perder, dispara: "Você tem inveja de mim, Tião. Você é feio. Eu sou branco e bonito. Seu destino é viver na favela. Eu tenho cara de ter carro, tenho olho azul e você tem cara de macaco". Vêm à tona, com força, as permissões e interdições nacionais decretadas pela aparência, inclusive a cor da pele.


Edgar (Miguel Rosemberg) e Margarida (Dirce Migliaccio)


O realismo de O assalto ao trem pagador contou com dois poderosos aportes: a direção de fotografia de Amleto Daissé, tão valorizadora dos cenários e dos personagens, ainda mais ao destacar suas expressões; e a trilha musical de Remo Usai. As imagens de Daissé só não são estonteantes devido ao caráter verídico. Descortinam trajetórias construídas sobre o chão da mais bruta miséria. Por outro lado, também se aliam às intenções do diretor, pois auxiliam a contar a história de forma cinematograficamente condizente, graças aos posicionamentos e movimentos da câmera. Já a música é do maior expert brasileiro no ramo. Usai se especializou na composição cinematográfica. Segundo consta, aprendeu as artes do ofício em Hollywood, junto a mestres como Miklós Rózsa. A trilha foi diretamente inspirada nas imagens enquanto se desenrolavam ao compositor, na fase da moviola. Graças a isso, as notas, compassos e comentários melódicos estão inventiva e perfeitamente integrados às cenas, momentos, personagens e ações.


Na divisão do dinheiro do assalto: em primeiro plano, Tião Medonho (Eliezer Gomes) e Tonho (Átila Iório); ao fundo, Grilo (Reginaldo Faria)


Quanto às interpretações, se há Eliezer Gomes ocupando todos os espaços, também há Grande Otelo no pequeno mas essencial desempenho de Cachaça. Conforme admitiu, é o melhor personagem de sua carreira. Confessou que morou na favela durante a produção, para sentir as agruras de um favelado. Mergulhou tanto no papel a ponto de temer pela sanidade mental, segundo testemunho de Roberto Farias[4]. Destaca-se ainda a sóbria e contida atuação de Jorge Dória como o delegado que conduz as investigações. Duro, arbitrário, mas racional e atento a detalhes, acaba se tornando, ao final, admirador de Tião Medonho desde que o aprisionou praticamente moribundo. Dirce Migliaccio garante credibilidade como a pobre e paranoica Margarida. O mesmo se dá com Reginaldo Faria.


Tião Medonho (Eliezer Gomes) e o filho Queiróz (Cosme dos Santos)

  
Praticamente não há senões em O assalto ao trem pagador, a não ser a encenação excessivamente exagerada da futilidade granfina da Zona Sul carioca por parte de Marta (Ignez). Pelo menos são momentos de pouca duração e não chegam a ser piores que o estereótipo da burguesia no segmento Zé da Cachorra, de Miguel Borges, em Cinco vezes favela, também de 1962. Para contrabalançar tais equívocos, há as críveis representações da solidariedade nas relações sociais no seio da pobreza e a impactante cena final de Zulmira com os filhos, na estrada, recobertos pela poeira levantada pela disparada dos veículos de policiais e jornalistas.


O assalto ao trem pagador fez jus a muitos prêmios. Foi considerado o Melhor Filme no Festival da Bahia/1962. Recebeu a Caravela de Prata no Festival de Lisboa/1963 e o Prêmio Especial do Festival de Arte Negra em Dakar, Senegal/1963. Roberto Farias, pelo Melhor Roteiro, venceu no Festival da Bahia, recebeu o Saci conferido pelo jornal O Estado de São Paulo e o Prêmio Governador do Estado de São Paulo. Eliezer Gomes teve a láurea de Ator Revelação no Festival de Curitiba/1962. Mereceu na mesma condição o Troféu Cinelândia/1962. Ainda foi considerado Melhor Ator no Festival da Bahia. Como Melhores Coadjuvantes, Jorge Doria e Dirce Migliaccio receberam o prêmio Saci. Já Luíza Maranhão foi a Melhor Atriz Coadjuvante nos festivais de Curitiba e da Bahia.


Rumo ao assalto: o trem pagador SAP-21

  
Argumento: Roberto Farias, Luiz Carlos Barreto, com contribuição de Alinor Azevêdo. Roteiro: Roberto Farias. Direção de fotografia (preto e branco): Amleto Daissé. Música: Remo Usai. Montagem: Rafael Justo Valverde. Operador de câmera: José Rosa. Cenografia: Alexandre Horvath, Pierino Massenzi. Ruídos de sala: Geraldo José. Assistente de direção: Billy Davis. Direção de produção: Riva Faria. Produtor associado: Arnaldo Zonari, Jarbas Barbosa. Assistência de produção: José Ribeiro, Mozael Silveira, Wilmar Menezes. Assistente de câmera: José Vicente da Silva. Direção de som: Nelson Ribeiro, Jorge dos Santos Felício, José Tavares. Assistente de montagem: Lúcia Erita. Contrarregra: Vinícius Silva. Maquiagem: Paulo Carias. Costureira: Zilma Fechô. Canção: Eu quero essa mulher assim mesmo, de Monsueto Menezes e José Batista. Supervisão da produção: Victor Lima. Gerente de produção: José Silva. Desenho do cartaz original: Ziraldo. Efeitos especiais: Sérgio Farjalla. Tempo de exibição: 102 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1982)



[1] Cf. ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. p. 111.
[2] Apesar das diferenças que os separam, Glauber Rocha considera Roberto Farias "O mais completo artesão" do cinema brasileiro. "Enfrenta o espectador sem retórica, narra com simplicidade e segurança. É quem melhor se comunica entre os diretores brasileiros. Apesar de prisioneiro de esquemas, fez de Tião Medonho a melhor personagem da dramaturgia brasileira". Veja ROCHA, Glauber. Op. cit. p. 110 e 111.
[3] O assalto ao trem pagador foi o primeiro dos muitos filmes brasileiros a contar com o suporte financeiro do Banco Nacional.
[4] AZEREDO, Ely; FONSECA, Carlos. Roberto Farias em ritmo de indústria. Filme Cultura, Rio de Janeiro: INC, p. 10, jul.-ago.1970.