domingo, 15 de abril de 2018

GIUSEPPE TORNATORE NA SEARA DE KAFKA — COM DEPARDIEU E POLANSKI

Documentarista egresso da televisão que o teve por breve período — de 1981 a 1984 —, Giuseppe Tornatore não demorou a encontrar o cinema. Estreou na tela grande com o curioso e pouco conhecido O professor do crime (Il camorista, 1986). Por sorte — ou azar —, emplacou na segunda investida o filme que o projetou internacionalmente: Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso, 1988). É terna, nostálgica e compassada declaração de amor à sétima arte, ambientada num tempo de maior disponibilidade para o comparecimento das massas às salas de exibição. Por outro lado, é realização com o peso da maldição: público e críticos sempre aguardaram filmes de igual calibre da parte de Tornatore. Cinema Paradiso é obra de exceção numa filmografia atualmente composta de aproximados 15 títulos essencialmente cinematográficos. São, em geral, trabalhos pouco extraordinários, apesar de interessantes e corretos. Dentre essa leva merece amplo destaque, inclusive nos aspectos formais, o angustiante e tenso jogo de manipulação inspirado em Kafka e abrilhantado por dois atores em estado de graça: Gérard Depardieu e um surpreendente Roman Polanski na coprodução ítalo-francesa Uma simples formalidade (Una pura formalità/Une pure formalité, 1994). Interpretam respectivamente o aclamado escritor Onoff e um admirador qual implacável algoz: o comissário de polícia que o interroga na desconfortável condição de suspeito de assassinato. Nada é o que parece. É um filme tão cativante e desafiador como a realidade em estado de aparente suspensão e dissolução a envolver os fatos apresentados. Minimalista e claustrofóbico, com ação transcorrida quase que exclusivamente no ambiente escuro e decadente de uma delegacia de polícia, Uma simples formalidade tem direção inspirada e excelente aproveitamento dramático do cenário. A trilha musical de Ennio Morricone — abrilhantada pelo nervoso violino de Franco Tromponi — não é excessiva. É usada ocasionalmente, para enfatizar a tensão e os aspectos mais sombrios da narrativa. Segue apreciação escrita em 1996.






Uma simples formalidade

Una pura formalità/Une pure formalité

Direção:
Giuseppe Tornatore
Produção:
Mario Cecchi Gori, Vittorio Cecchi Gori
Cecchi Gori Group, Tiger Cinematografica, TF1 Films Production, Film Par Film, DD Productions, Orly Films, Sidonie
Itália, França — 1994
Elenco:
Gérard Depardieu, Roman Polanski, Sergio Rubini, Nicola Di Pinto, Tano Cimarosa, Paolo Lombardi, Maria Rosa Spagnolo, Alberto Sironi, Giovanni Morricone, Massimo Vani, Sebastiano Filocano, Mahdi Kraiem e o não creditado Timothy Martin.



O cineasta Giuseppe Tornatore


Este bom trabalho passou despercebido no Festival de Cannes de 1994 e no Brasil. É pena. Porém, Tornatore teve muita cara-de-pau ao informar, como se percebe nos créditos, que o roteiro de Uma simples formalidade é baseado em ideia original sua. O filme logo desmente. Há muito de Kafka no embate entre os personagens de Depardieu e Polanski, tal qual nos cenários escuros, claustrofóbicos e góticos elaborados pela desenhista de produção Andréa Crisanti. O crítico Antônio Gonçalves Filho também notou a falta de originalidade ao apontar semelhanças com a peça radiofônica Crepúsculo de uma tarde de outono, de Friedrich Dürrenmatt. Ambos os trabalhos apresentam igual tema, afirma: o inusitado encontro entre um escritor — suspeito de praticar os crimes expostos nos livros[1] — e um fã.


Apesar de tudo, merecia melhor atenção a quinta incursão de Giuseppe Tornatore na direção, praticamente destratada pelos apreciadores. Uma das exceções é Roni Filgueiras[2]. Em geral, Uma simples formalidade foi visto como mero e enfadonho exercício verborrágico e metafísico, executado por um diretor com pretensões virtuosísticas e desprovido de estilo. Nada mais falso. Julgamentos assim apenas revelam má vontade e têm explicação. Logo na segunda experiência como realizador, o praticamente desconhecido Tornatore teve o azar de extrair uma obra-mestra: Cinema Paradiso (Nuovo Cinema Paradiso, 1988), narrativa simples que homenageia a sétima arte como poucas em seu campo. Ambientada em pequena cidade italiana no imediato pós Segunda Grande Guerra, o filme revela o poder de atração da imagem em movimento sobre uma criança. Além disso, trata com humor e sensibilidade o fascínio do cinema sobre as massas em geral, durante período de maior disponibilidade para o comparecimento às salas de exibição. Desde então Tornatore ficou marcado. Os próximos filmes eram aguardados como equivalentes de Cinema Paradiso. No entanto, seguiram-se os relativamente menores Estamos todos bem (Stanno tutti bene, 1990), Uma simples formalidade e O homem das estrelas (L'uomo delle stelle, 1995). Cinema Paradiso permanece como obra de exceção. Por outro lado, a nenhum criador é dada a sorte de extrair somente peças de alto nível — apesar do desejo e vontade dos críticos.


Gérard Depardieu como o escritor Onoff
  
Apesar de não apresentar novidades, Uma simples formalidade é peça curiosa e envolvente. Quase toda a ação está concentrada numa noite fortemente chuvosa. A precipitação ininterrupta tem papel essencial. Confere à encenação aspectos movediço, fluido e etéreo. Nada parece ser o que é. Dúvida e certeza se diluem num três de fevereiro de qualquer tempo e lugar. É aniversário do renomado escritor Onoff (Depardieu). Estranhamente, é detido na estrada — em barreira policial. Estava a pé, ofegante, encharcado e enlameado. Apresentava expressão catatônica. Pouco antes, as primeiras imagens exibiram, em primeiro plano, um tiro contra a plateia. A seguir, eficiente e subjetiva steadicam acompanha, durante a apresentação dos créditos e ao som do nervoso violino de Franco Tamponi, a trôpega corrida pela mata de personagem não revelado.


Houve um assassinato. Somente disso se sabe. Onoff é o criminoso? Detido sem documentos e explicações convincentes, é levado à delegacia de polícia — principal e quase onipresente cenário da trama. A identidade de escritor ainda não foi revelada. Recebe um cobertor para disfarçar o frio enquanto aguarda o comissário (Polanski). Durante a espera, a câmera explora o ambiente por ângulos os mais variados. Capta o rosto assustado e apreensivo do detido; percorre as paredes escuras e mal iluminadas do recinto; capta latas, canecas e panelas espalhadas pelo chão — insuficientes para receber a água das goteiras. Revela do alto, em plongée, o jogo de gato e rato prestes a começar. O som do gotejamento é constante. Todos os elementos antecipam narrativa ao gosto do absurdo de Kafka.


O policial Andre (Sergio Rubini) e Onoff (Gérard Depardieu)

O comissário e interrogador (Roman Polanski) e Onoff (Gérard Depardieu)

Onoff pede pressa. Em poucas horas encontrará o Ministro da Cultura, justifica. Sente vontade de fumar. Não é atendido. Apenas recebe olhares de burocrática indiferença. A exceção é o solícito carcereiro (Cimarosa): oferece-lhe leite. Tomado por fúria aparentemente inexplicável e gratuita — as explicações surgirão à frente —, o escritor lança a bebida no rosto do homem. É contido pelos policiais.


Chega o comissário. Duvida quando o detido revela o nome. É simplesmente o autor que mais aprecia. Só se convence quando Onoff passa a citar trechos inteiros dos próprios livros. Diante das evidências, seguem-se os pedidos de desculpas. O inquiridor, perplexo, quer saber os antecedentes da detenção. A princípio, crê em equívoco. Gentil, oferece roupas secas e limpas ao ídolo. Passa a impressão de que o liberará.


Onoff se troca no banheiro em sequência francamente desnecessária. Aparentemente foi realizada com o intuito de iludir o espectador. Dela não se tem desdobramentos ou resultados práticos. Tenta se desfazer de vários pertences guardados nos bolsos. Lança-os ao vaso sanitário e os recolhe diante do não funcionamento da descarga. Sem conseguir ocultar o material, resolve engoli-lo. Está visivelmente tenso. Alguém o observa por uma fresta.


Onoff percebe que terá facilidades. Será interrogado — uma simples formalidade, adianta o comissário. Com má vontade responde às questões de praxe: nome, idade, endereço... Tenta resistir às perguntas específicas, sem sucesso. Sua história não condiz com as lembranças desconectadas ou parcialmente esquecidas. O comissário percebe falhas e incoerências. Segue um corte no fornecimento de luz. Onoff aproveita a escuridão para tentar a fuga. Agride um guarda e se esvai pela janela. Acaba contido e ferido por uma armadilha de caça. Logo é devolvido à cena do interrogatório.





Acima, ao centro e abaixo: Roman Polanski como o comissário e Gérard Depardieu no papel de Onoff

Diante da tentativa de evasão, o comissário encontra mais justificativas para prosseguir. Faz sucessão interminável de perguntas. Retalhos de lembranças assaltam o depoente. Irritado, comete desacato e agressão. Novamente contido, é algemado e espancado. Recebe olhar indiferente do inquiridor. Sangra. Ainda assim, o depoimento prossegue. De um lado está a objetividade do policial; de outro, a subjetividade e fluidez do escritor. Autor e fã disputam quem é melhor na arte da manipulação. De que lado está o poder? O comissário faz tudo para desacreditar Onoff. Tem a convicção de estar diante de um criminoso que se vale do talento literário para encobrir o malfeito; só precisa cometer um passo em falso para ser desacreditado e relativizado.


Onoff (Gérard Depardieu) e o comissário (Roman Polanski)

Surge o nome de Faubin, inusitado mendigo e anotador compulsivo dotado de rara inteligência. Após a morte, deixou para o escritor vasto, desordenado e aparentemente indecifrável material escrito. Exigiu anos de dedicação para ganhar sentido. Durante esse período de organização da herança, Onoff nada produziu. Entretanto, retornará à cena literária com o romance O palácio de nove fronteiras, aclamado como obra mestra. Na verdade, não passa de compilação de textos do anônimo Faubin. Tal revelação basta para o comissário concluir pela culpa. Aos seus olhos, Onoff é um manipulador de mão cheia. Para piorar, abusou da boa fé do público, principalmente de fãs e leitores. Não é confiável. Isso basta para incriminá-lo.


Onoff (Gérard Depardieu) com a fotografia do emblemático Faubin

Dois grandes atores preenchem a cena. Há quanto tempo não surge um bom filme apoiado exclusivamente no talento dos intérpretes? Uma simples formalidade supre tal lacuna. Sabe-se da capacidade de Depardieu. No entanto, Polanski surpreende. O afamado diretor marcou presença várias vezes à frente das câmeras em realizações próprias e de terceiros. Destaques para o sádico gângster — praticamente uma figuração — que retalha o nariz do detetive particular J. J. Gittes (Jack Nicholson) em Chinatown (Chinatown, 1974); o perplexo Alfred, assistente do professor Abronsius (Jack MacGowran) em A dança dos vampiros (The fearless vampire killers or Pardon me, but your teeth are in my neck, 1967); e o tímido, assustado e angustiado Trelkovsky, atormentado pelo fantasma da suicida Stella (Isabelle Adjani) em O inquilino (Le locataire, 1976). Sob a condução de Tornatore o cineasta Polanski se emancipa como ator total. Oferece um desempenho segundo a cartilha naturalista que marcou o receituário da velha e informal escola de interpretação: sem maneirismos, frescuras e exageros; apenas contenção e convicção.



  
Roteiro: Giuseppe Tornatore, baseado em ideia própria. Direção de fotografia (cores): Blasco Giurato. Música: Ennio Morricone, Andréa Morricone. Orquestração e direção musical: Ennio Morricone. Montagem: Giuseppe Tornatore. Figurinos: Beatrice Bordone. Desenho de produção: Andrea Crisanti. Colaboração nos diálogos: Pascal Quignard. Assistentes de montagem: Massimo Quaglia, Pamela Quaglia, Tatiana Taverna. Direção geral de produção: Pietro Notarianni, Monica Verzolini. Direção de produção: Giuseppe Giglietti. Produção associada: Alexandre Mnouchkine, Jean-Louis Livi. Assistentes de câmera: Vincenzo Vodovato, Fabio Lanciotti, Maurizio Serafini, Alessandro Martella, Adriano Gianninni, Roberto Barbona, Fausto Cancellieri, Renato Ciarrocchi, Claudio Diamanti, Angelo Donatone, Roberto Emidi, Pietro Fabbri, Sergio Faina, Massimo Lombardi, Mauro Misino, Carlo Moreschini, Flaviano Ricci, Maurizio Salvatori, Aldo Stella, Enrico Stella, Mario Stella, Doriano Torriero, Giuseppe Petrignani, Massimiliano Dessena, Franco Di Bernardino. Assistente de figurinos: Luigi Bonanno. Assistente de desenho de produção: Natasha Tanzilli. Contrarregra: Marcellino Nolfo, Claudio Villa, Oreste Quercioli. Chefe de eletricistas: Nazzareno Brescini. Efeitos especiais: Antonio Corridori, Giovanni Corridori. Fotografia de cena: Luca Biamonte. Assistentes de direção: Stefania Girolami Goodwin, Giovanni Morricone, Massimo Sagramola. Produção de elenco: Francesco Ascione. Assistentes para o diretor: Massimo Sagramola, Giovani Morricone. Câmera elevada: Bernard Chalmefii. Continuidade: Egle Guarino. Assistente de produção: Monica Verzolini. Secretaria de produção: Massimo Di Rocco, Francesco Liberati, Roberta Nardoni. Administração de produção: Gloria Del Gracco. Trucagens: Maurizio Frani, Penta Studio. Penteados: Vitaliana Patacca. Produção executiva: Bruno Altissimi, Claudio Saraceni. Canção: Effacer le pass (letra: Pascal Guinard, Giuseppe Tornatore; música: Andréa Morricone, Ennio Morricone), interpretada por Gerard Depardieu. Som: Pierre Gamet. Diálogos em francês: Nadine Muse. Transportes: Ricardo Ricci. Execução musical: Orquestra da União dos Músicos (Roma) sob a regência de Ennio Morricone. Solo de violino: Franco Tamponi. Engenheiros de som: Sergio Marcotulli, Tullio Petricca, Roberto Petrozzi. Mixagem de som: Alberto Doni. Combinação de sons: Stefano Nissolino. Efeitos sonoros e ruídos de sala: Cineaudio Effects, Fernando Caso, Alvaro Gramigan. Efeitos óticos: Production Film 82, Alvaro Passerj. Supervisão de cor: Pasquale Cuzzupoli. Decoração: Vincenzo De Camillis, Mauro Passi. Maquiagem: Maurizio Trani. Operador de microfones: Bernard Chaumeil. Assistente de combinação de sons: Isabella Marucci. Edição de son: Nadine Muse. Técnicos de efeitos especiais: Pasquino Benassati, Danilo Bollettini, Gastone Callori, Massimo Cardajoli, Antonio Corridori, Giovanni Corridori, Marco Corridori. Dublês: Giampiero Comanducci, Gianluca Petrazzi, Massimo Vanni. Eletricistas: Vittorio D'Ammassa, Maurizio di Stefano, Paolo Di Stefano, Sergio Dori, Massimo Millozzi, Giuseppe Sgarra, Marcello Tallone. Operadores de câmera: Giuseppe Di Biase, Carlo Passari. Direção de dublagem: Cesare Barbetti. Pagamentos: Claudio Bassetti. Dublagem de Roman Polanski: Leo Gullotta. Instrução de diálogos: Joelle Mnouchkine. Dublagem de Gérard Depardieu: Corrado Pani. Companhia de produção executiva: Maura International Films. Sistema de mixagem de som: Stereo Dolby SR. Tempo de exibição: 111 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1998)



[1] GONÇALVES FILHO, Antônio. Tornatore faz policial metafísico. O Estado de São Paulo. São Paulo, 5 maio 1995. Caderno dois. p. 2.
[2] FILGUEIRAS, Roni. Tornatore faz viagem à alma e ao absurdo. O Globo. Rio de Janeiro, 24 fev. 1998. Rio Show. p. 6.