domingo, 12 de fevereiro de 2017

DE PERSONAGEM DE CHARLES DICKENS A PERVERTIDO SEXUAL E PSICOPATA

Certos filmes, passados alguns anos da estreia, entram inexplicavelmente no limbo da mais completa obscuridade. É o caso de Uma fresta no teto (Night hair child, 1971), ousada e desconcertante coprodução entre Espanha, Inglaterra, Itália e República Federal da Alemanha dirigida pelo britânico e praticamente desconhecido James Kelly, com carreira limitada a apenas dois títulos. Desapareceu completamente das vistas. Fico até com a impressão de que fui o único a vê-lo ou de que é decorrente de alucinação. Para piorar, é complicado levantar informações a respeito, inclusive pelo Internet Movie DatabaseIMDb. Este banco de dados não o registra pelas denominações com as quais se apresentou ao espectador brasileiro. Uma fresta no teto se transformou em Diabólica malícia e o original Nigh hair child cedeu lugar a What the peeper saw, atribuído pelo mercado exibidor estadunidense. Às vezes, é possível localizá-lo pela curta designação Night child. Na ocasião do lançamento estranhei o cochilo da então sempre vigilante e truculenta Divisão de Censura da Polícia Federal que o liberou sem cortes. Já na Inglaterra algumas cenas não puderam ser mostradas. A situação piorou nesse país a partir de 1978, quando da aprovação de normas mais rigorosas do British Board of Film Classification. Submetido à nova apreciação, sofreu supressões que praticamente o desfiguraram. Uma fresta no teto apresenta uma relação perversa e doentia desenvolvida pelo precoce Marcus (Mark Lester), de 12 anos, com a assustada e frágil madrasta Elise (Britt Ekland), 10 anos mais velha. O ritmo frio e propositalmente lento da encenação amplia consideravelmente a tensão e a atmosfera perturbadora. O garoto é, certamente, uma das crianças mais sinistras reveladas pelo cinema. Segue apreciação escrita em 1974.







Uma fresta no teto
Night hair child

Direção:
James Kelley
Produção:
Graham Harris
Cemo film, Corona Filmproduktion, Eguiluz Films, Leander Films, Leisure Media
Espanha, Inglaterra, Itália, República Federal da Alemanha — 1971
Elenco:
Mark Lester, Britt Ekland, Hardy Krüger, Lili Palmer, Harry Andrews, Conchita Montes, Collette “Jack” Giacobine, Ricardo Palacios, Emilio Rodríguez, Ricardo Valle.



Mark Lester - caracterizado como Oliver Twist em Oliver! (Oliver!, 1968), de Carol Reed -, Hardy Krüger e Britt Ekland atuam em Uma fresta no teto




Mark Lester... Quem diria!? No que se transformou o simpático garotinho que interpretou o sofredor personagem-título do oscarizado musical Oliver! (Oliver!, 1968), de Carol Reed, baseado no celebrado romance Oliver Twist, de Charles Dickens? Presença constante nas telas do cinema e da TV desde 1964, quando mostrou o rostinho bonito pela primeira vez como Gérald em Allez France! (1964), de Robert Dhéry e Pierre Tchernia, Lester exibiu a estampa como um não creditado estudante em Fahrenheit 451 (Fahrenheit 451, 1966), de François Truffaut. A seguir fez Jiminee no denso e perturbador Todas as noites às nove (Our mother's house, 1969), de Jack Clayton. Após Oliver! viveu Philip Ransome em Sem medo de viver (Run wild, run free, 1969), de Richard C. Sarafian; Ziggy em A testemunha ocular (Eyewitness, 1970), de John Hough; Daniel em Melody: quando brota o amor (Melody, 1971), de Waris Hussein; Joe em O potro negro (Black beauty, 1971), de James Hill; e Christopher Coombs no assustador Fábula macabra (Whoever slew auntie Roo?, 1972), de Curtis Harrington. Em todos esses títulos, inclusive nos mais inquietantes, interpretou personagens que podem ser enquadrados nos limites da normalidade mais ordinária. Agora, em Uma fresta no teto, comparece como Marcus: aos 12 anos é um pervertido sexual e o mais frio e indiferente dos psicopatas.


Mark Lester interpreta o precoce Marcus

  
A fisionomia de Lester contribuiu para o aspecto gelado e blasé do personagem. Se não fosse uma leve propensão para o cinismo e o humor, Marcus passaria muito bem como um dos louros filhos do imponderável gerados pelas mulheres do vilarejo inglês de Midwich em A aldeia dos amaldiçoados (Village of the damned, 1960), de Wolf Rilla.


O menino é filho único de Paul Bezant (Krüger) e Sara (Giacobine). A infeliz mãe foi mortalmente eletrocutada em um estranho e praticamente impossível acidente enquanto tomava banho. Aparentemente — a realização é dúbia para permitir uma certeza taxativa —, foi assassinada pelo garoto. Vários testemunhos do personagem conduzem à crença nessa terrível verdade. O pai, escritor bem de vida, é praticamente ausente. Dá a impressão de fugir a uma revelação à qual, confortavelmente, prefere não dar crédito. Após a morte da esposa, fixa residência num aprazível recanto ao norte da Espanha e confia o filho ao tratamento psicológico e colégio interno.


Hardy Krüger interpreta Paul Bezant, o ausente pai de Marcus (Mark Lester)

Britt Ekland no papel da madrasta Elise


Ao longo do seu desenvolvimento Marcus se revelou um pesadelo personificado. É sádico, frívolo, voyeur, narcisista, mentiroso contumaz, esquivo, manipulador, libertino e, pelo visto, assassino. Ainda por cima, é intelectualmente precoce. Está preparado para vencer qualquer debate, geralmente pela ímpar capacidade de inibir o oponente. No internato, depois de provocar inúmeros transtornos, foi irremediavelmente expulso após provocar a morte lenta de um gato.


Devolvido ao lar pelas autoridades educacionais, não encontra o pai. Para sua satisfação, depara-se com Elise (Britt Ekland), jovial madrasta de 22 anos, prato cheio para lábias e provocações. As apresentações se completam com uma mentira: um surto de varicela fechou temporariamente a escola. Porém, a frieza, o aspecto zombeteiro e as investidas ousadas — como agarrá-la pelos seios — não demoram a se evidenciar. Marcus desconsidera a existência de qualquer barreira moral e se insinua claramente para Elise. Observa-a na intimidade e não titubeia em confessar, zombeteiro, a suposta participação na morte da mãe.



Acima e abaixo: Elise (Britt Ekland) e Marcus (Mark Lester)


Insegura e temerosa com a inesperada companhia, Elise passa por momentos de verdadeiro sufoco. Ainda mais quando o enteado se vê no direito de reivindicá-la sexualmente, apoiado no argumento de que a diferença etária entre ambos é de apenas 10 anos, enquanto o dobro disso a separa de Paul. Este, ao contrário do razoavelmente esperado, não rompe com a apatia em relação ao filho. Sobra para a personagem interpretada por Britt Ekland firmar uma certeza sobre os acontecimentos, inclusive os pretéritos. Por iniciativa própria procura o diretor do colégio (Andrews) e toma ciência dos graves problemas protagonizados por Marcus na instituição. A empertigada e difícil Dra. Viorne (Palmer), psicóloga do enteado, também revela um quadro preocupante.


A psicóloga Dra. Viorne (Lili Palmer)

Elise (Britt Ekland) e o diretor da escola (Harry Andrews)


A partir daí Uma fresta no teto evolui para um clima de franco e ousado suspense psicológico. As investidas de Marcus sobre a madrasta são cada vez mais abertas. Para formar ciência sobre a morte de Sara, Elise cede incrivelmente às exigências e se desnuda para ele. Despidos, ambos partilham do mesmo leito. Apesar de revestidas de todos os cuidados para não passar por apelativas, são cenas suficientemente fortes e arrojadas. É um mistério que tenham passado incólumes pela censura brasileira — tão vigilante à época — e do país sede da produção — a Inglaterra —, ainda mais quando se sabe que os atores não tiveram dublês. Fragilizada, Elise tem apenas uma certeza: o assédio e a manipulação não terão fim, justamente depois que a relação doentia evoluiu para a mais explícita tensão sexual. Pensa em alternativas radicais para se livrar do enteado. Acaba incorporando-o à sua personalidade. A narrativa se encaminha para um epílogo tão frio e indiferente quanto inesperadamente surpreendente e desconcertante.


Elise (Britt Ekland) começa a se despir para Marcus (Mark Lester)


É um filme bem dirigido, principalmente na valorização dos cenários e atores. O ritmo é lento, fato que só amplia a tensão e a atmosfera perturbadora. As sequências foram planejadas para expressar a crescente insanidade das situações. Neste quesito, a sedutora trilha musical de Stevio Cipriani tem papel fundamental. Os diálogos, às vezes, repetitivos, são intensos e explicitam o estado de nervos de Elise em sua antagônica relação com o enteado. Marcus é, certamente, uma das crianças mais sinistras reveladas pelo cinema.


Marcus (Mark Lester) e Elise (Britt Ekland) nos momentos finais de Uma fresta no teto



Roteiro: Trevor Preston, Andréa Bianchi, Bautista Lacasa Nebot, baseados em história de Erich Kröhnke. Direção de fotografia (Eastmancolor): Luis Cuadrado, Harry Waxman. Música e direção musical: Stelvio Cipriani. Montagem: Nicholas Wentworth. Produção executiva: Andrés Vicente Gómez, Oliver A. Unger. Gerente de produção: Primitivo Álvaro. Gravação de som: Roger Goodall, Peter Lodge. Edição de som: Brian Holland, John Ireland. Operadores de câmera: Walter Byatt, Ronnie Maasz. Assistente de montagem: Alan Jones (não creditado). Gerente de locações: John Southwood. Produção do álbum da trilha musical: Luca di Silvério (não creditado). Continuidade: Isabel Mulá. Estúdio de gravação da trilha musical: Digitmovies Alternative Entertainment. Estúdio de gravação: Sound Associates. Tempo de exibição: 89 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1974)