domingo, 30 de dezembro de 2012

DUVIVIER ANTECIPA O CONSUMO DE MASSAS

Inédito nos cinemas brasileiros, Au bonheur des dames (1930) é o último filme mudo do francês Julien Duvivier. Por muito pouco não atingiu o patamar da plena excelência. Passou por recente processo de restauração, quando ganhou acompanhamento musical dos mais vibrantes. Um arrojado trabalho de câmeras flagra o processo de modernização de Paris, o surgimento das grandes lojas de departamentos e os efeitos de tudo isso sobre os indivíduos que ficam à margem. A realização está apoiada em romance homônimo de Émile Zola. O epílogo, infelizmente, é problemático.







Au Bonheur des Dames

Direção:
Julien Duvivier
Produção:
Charles Delac, Marcel Vandal
Le Film d’Art
França — 1930
Elenco:
Dita Parlo, Ginette Maddie, Andrée Brabant, Madame Barsac, Nadia Sibirskaïa, Germaine Rouer, Simone Bourday, Cognet, Colette Dubois, Récopé, Yvonne Taponié, Marthe Barbara-Val, Marcelle Adam, Pierre de Guingand, Fabien Haziza, Fernand Mailly, René Donnio, Albert Bras, Adolphe Candé, Armand Bour, Charles Franck, Jean-Paul Roger, Durafour, Jean Liézer.



O diretor Julien Duvivier



Não fossem as derradeiras cenas, Au bonheur des dames — inédito nos cinemas brasileiros — seria absoluta peça de mestre. É o último filme mudo de Julien Duvivier, cineasta francês admirado por Orson Welles[1], com 70 títulos realizados de 1919 a 1967[2]. Esteve, durante os anos 30, entre os principais nomes do cinema de seu país: Jean Renoir, René Clair, Marcel Carné, Jean Vigo e Jacques Feyder, todos integrantes do movimento passado à história como Realismo Poético.


Duvivier começou no cinema como ator e assistente de direção de Marcel L’Herbier, Louis Feuillade e Marcel Deschamps[3]. Levou às telas dramas sociais, comédias, adaptações literárias e religiosas. Mas são os filmes estruturados em episódios que lhe conferiram maior fama, como Seis destinos (Tales of Manhattan, 1942) e O diabo e os Dez Mandamentos (Le diable et les Dix Commandements, 1962). Graças ao sucesso angariado durante os anos 30, principalmente com a realização de O demônio da Argélia (Pepe Le Moko, 1937), é convidado a trabalhar em Hollywood. Aí realiza A grande valsa (The great waltz, 1938), biografia pouco satisfatória de Johann Strauss. Volta a Hollywood durante a ocupação nazista do seu país, obtendo sucesso com Seis destinos e Os mistérios da vida (Flesh and fantasy, 1943). Retorna à França alguns anos após o término da guerra. Na década de 50 realiza seus maiores sucessos de bilheteria, unido ao ator Fernandel: O pequeno mundo de Don Camillo (Il piccolo mondo di Don Camillo, 1951) e O regresso de Don Camillo (Il ritorno di Don Camillo, 1953). Além dos títulos referidos, merecem consideração: La machine à reffaire la vie (1923), Credo (1924), também conhecido como La tragédie de Lourdes, Tragédia de um homem rico (David Golder, 1930), Pega-Fogo (Poil de carotte, 1932), A cabeça de um homem (La tetê d’un homme, 1933), Gólgota (Golgotha, 1935), A bandeira (La bandera, 1935), Um carnet de baile (Un carnet de bal, 1937), Anna Karenina (Anna Karenina, 1948) e Sinfonia de uma cidade (Sous le ciel de Paris, 1951)[4].


Em seu conjunto, vista hoje, fica a impressão de que a obra de Duvivier envelheceu. A ponto de parecer injustificável posicioná-lo entre os grandes do cinema francês. Mesmo assim, está longe de ser apenas um artesão competente, destituído de maiores atributos, como atesta Guido Brilharinho, que não o tem como diretor de filmes “consistentes ou criativos, mas alguém dominado pelo convencionalismo, linearidade e naturalismo, que significam absoluta submissão à estória, cingindo-se seu objetivo à narrativa de fatos e acontecimentos”[5]. Ele seria, para o autor, apenas um diretor competente ao qual faltam ambições poéticas por tratar a natureza e os personagens de modo seco e direto, com o agravante de escravizar a imagem às imposições da narrativa[6].


Talvez Brilharinho tenha sido excessivamente duro com Duvivier. A impressão decorre do modo geral como o caracterizou artisticamente. Assim, escapam da apreciação as obras de exceção. Duvivier as tem, certamente; ao menos uma. Pode ser que Brilharinho não tenha visto Au bonheur des dames, dado o seu ineditismo no Brasil. Até o momento, por aqui, sequer teve lançamento em disco. É um filme brilhante, formalmente belo e ousado. Suas imagens não são desprovidas de poesia, apesar de o naturalismo perpassar a narrativa e modelar as ações e destinos dos personagens. Isto, provavelmente, é consequência do argumento de Émile Zola, no qual a realização se baseia. Infelizmente, decorrem dessa submissão do cineasta ao naturalismo os senões do filme, observados nos derradeiros momentos, tão evidentes a ponto de incomodar e impedir a classificação de Au bonheur des dames como obra plenamente realizada.


Émile Zola


As impressões sobre a realização, a seguir, decorrem de sua apreciação em DVD de procedência francesa, lançado em 2009 e distribuído pela Art Editions. As imagens passaram por meticulosa restauração sob responsabilidade dos produtores Serge Bromberg e Eric Lange. Nesse processo, ganharam acompanhamento musical — de andamento operístico (para os momentos dramáticos) e ligeiro — composto por Gabriel Thibaudeau e executado pelo Octuor de France.



Dita Parlo no papel de Denise Baudu


O começo do filme revela a maturidade atingida pelo cinema mudo na apresentação dos personagens e exposição de detalhes. Deixa perceber, também, a influência do expressionismo de vertente alemã, principalmente de Aurora (Sunrise, 1927), de F. W. Murnau, e Metrópolis (Metropolis, 1927), de Fritz Lang. Acompanha a chegada de Denise Baudu (Parlo) a Paris. Órfã, de origem provinciana, depara-se com a cidade grande em ebulição. Desembarca do trem e acompanha o fluxo da multidão. Está perplexa com tanta pulsação, sedução e movimento. Lembra a personagem da esposa camponesa, interpretada por Gloria Gaynor, no filme de Murnau, no momento em que é surpreendida em pleno turbilhão do grande centro urbano impulsionado pelo poder das máquinas e tecido na impessoalidade das relações sociais. Tudo obedece ao ritmo da pressa. Não há tempo para parar e admirar com calma as novidades reveladas por um mundo novo e hipnótico. Denise precisa se mexer, para não congestionar o fluxo vibrante possibilitado pelo automatismo. A grande e moderna Paris, fascinante por um lado, também se assemelha a uma criatura indomável, pronta a devorar os incapazes de acompanhá-la e compreendê-la. A vibração imposta por Walter Ruttmann a Berlin, sinfonia da Metrópole (Berlin: Die sinfonie der grosstadt, 1927), também se faz presente na concepção imagética do início de Au Bonheur des Dames, assim como os horrores antecipados por Lang na sua fantasia futurista, há pouco citada.


O grande magazin: Au Bonheur des Dames


A perplexidade de Denise é ampliada por folhetos lançados de aviões, outdoors, cartazes e pessoas comunicando a inauguração de Au Bonheur des Dames, gigantesco e departamentalizado complexo comercial direcionado à satisfação das necessidades femininas. Mas ela não tem tempo para saber do que se trata. Não ainda, pelo menos. Precisa encontrar o tio que se ofereceu para ampará-la, o velho Baudu (Bour), proprietário do Au Vieil Elbeuf, pequeno e decadente comércio de tecidos.


Denise não poderia chegar em momento mais dramático. O negócio do tio vai de mal a pior. Os clientes desapareceram, atraídos pelas facilidades e variedades prometidas por Au Bonheur de Dames. O grande magazin está instalado logo em frente ao quase falido Au Vieil Elbeuf. Além do mais, Baudu já tem sob seus cuidados a filha Geneviève (Sibirskaïa) e o noivo desta, Colomban (Haziza) — funcionários do estabelecimento. Diante do quadro, a sobrinha se obriga a procurar emprego. As melhores oportunidades estão em Au Bonheur des Dames.


Talvez Duvivier seja pioneiro no tratamento cinematográfico de um fenômeno urbano relativamente novo: as lojas de departamentos, surgidas na segunda metade do século 19 e que deram origem ao consumo em massa graças aos estoques variados concentrados no mesmo espaço. Ofereciam facilidades aos clientes, principalmente custos mais convidativos, graças à formação de estoques que permitiam economia em escala. Acabaram originando oligopólios e monopólios, impondo preços à venda e à compra, pois liquidavam os pequenos comerciantes, incapazes de concorrer em pé de igualdade com a nova estrutura. Os grandes magazins simbolizam o perfil da metrópole modernizada, reconfigurada pela indústria e pelo capitalismo, transformada em paraíso de consumo, centro à exibição da ostentação e à fruição de prazeres e desejos. Apressam o fim de um tempo reservado à celebração de valores agora antigos e desprezados, apoiados nas relações comunitárias e pessoais, nas éticas familiares e religiosas.



Publicidade de inauguração do magazin Au Bonheur de Dames


A tímida e assustada Denise entra no magazin. Parece que penetrou na garganta de um monstro. O luxo, a diversidade, a movimentação, o burburinho e a multidão a diminuem. Vigilantes estão por toda parte, atentos aos deslizes dos clientes. Os interiores de Au Bonheur des Dames foram obtidos na Galeria Lafayette, de Paris. Um brilhante trabalho de câmeras — distribuídas em diversos locais, algumas ocultas entre os produtos — capta o assombro de Denise. São cenas dignas de antologia.


Denise é encaminhada ao chefe de pessoal, Sébastien Jouve (Mailly). Lançando olhares lúbricos sobre a jovem, oferece-lhe vaga de modelo. Encaminhada ao setor, deve ficar em trajes menores na frente de todos. Acanhada e sem jeito, é ridicularizada pelas colegas, principalmente por Clara (Maddie), intriguenta cúmplice das pérfidas articulações de Jouve. Ela, além do mais, postada na janela da sala de modelos, tem visão privilegiada da loja do velho Baudu. Desvia, com acenos convidativos, os prováveis clientes de Au Vieil Elbeuf e também se insinua para Colomban. Por causa disso, Denise entra em conflito com Clara e é demitida. Mas é recontratada ao ganhar a atenção do proprietário do magazin, Octave Mouret (Guingand), apaixonado por ela.


As manequins do magazin

  
A esta altura, o espectador já está familiarizado com Dita Parlo e com a expressividade de seu olhar felino, penetrante, carregado de melancolia. Apesar do ineditismo de Au bonheur des dames no Brasil, teve, provavelmente, oportunidade de vê-la em O Atalante (L’Atalante, 1934), de Jean Vigo, e em A grande ilusão (La grande illusion, 1937), de Jean Renoir. Atuou no cinema de 1928 a 1965[7]. Nascida com o nome de Grethe Gerda Kornstädt, desenvolveu carreira principalmente na Alemanha de suas origens e na França, onde angariou considerável prestígio popular. Atuou em alguns filmes nos Estados Unidos[8], sem sucesso. Retornou à Alemanha com estouro da Segunda Guerra Mundial, decisão que, provavelmente, levou ao precoce eclipse de sua carreira. Trabalhou em apenas dois filmes após o conflito[9]. Admirada por Madonna, foi resgatada pela cantora em 1992: ela se apresenta como Dita no livro Sex e no álbum Erotica, cuja primeira faixa se inicia com “My nane is Dita, I’ll be your mistress tonight”[10].


Apesar da timidez e do assédio que sofre de Sébastien Jouve e Clara, Denise se mantém e consolida carreira no magazin, principalmente depois de despertar, involuntariamente, a paixão de Octave Mouret. Enquanto isso, em atenção à idéia naturalizada de progresso, considerada como necessidade inevitável, a modernização desencadeada pela inauguração do complexo comercial de Mouret avança com ímpeto renovado. Com o aporte de capital recebido do Barão Hartmann (Candé), Au Bonher des Dames se amplia sobre a vizinhança, isolando ainda mais o combalido Au Vieil Elbeuf. Não suportando as pressões, principalmente as afetivas decorrentes do abandono de Colomban, Geneviève adoece e morre. O velho Baudu, mesmo diante da crueza dos eventos, tenta manter a dignidade. Mas não resiste ao receber das autoridades, logo após o falecimento da filha, uma ordem de despejo solicitada por Mouret. Este, conduzido por Denise, testemunhara o fim de Geneviève e a miséria da decomposta família Baudu. Porém, segundo os imperativos que ordenam a narrativa fílmica, nada pode ser feito. Os dramas e tragédias fazem parte, segundo o roteiro, da ordem natural das coisas.



Dita Parlo interpreta Denise Baudu


O despejo é insuportável para Baudu. É o fim do sentido de sua existência. O grito de desespero que emite, para assombro geral, é propositalmente prolongado e ampliado com a alternância, permitida pela montagem, das cenas exibindo a demolição das construções no entorno para a expansão de Au Bonheur des Dames. Enlouquecido, toma o revólver. Invade o magazin repleto. Atira a esmo, tentando matar Mouret. Segue o pânico. Baudu, perseguido pela multidão, perece atropelado pelo caminhão de entregas do magazin. Morte mais simbólica não poderia haver. Toda a seqüência do desespero do velho, até seu trágico fim, é entrecortada por imagens de marretadas, paredes caindo, poeira se elevando. O novo ocupa o lugar do antigo tornado inviável.


Mas Mouret também é atingido. Pressionado pelas necessidades da ampliação e pela direção temerária do estabelecimento, não consegue honrar as dívidas contraídas com Hartmann. Vai à falência. Segue-se o final problemático, com a injeção de ânimo que recebe de Denise. Ela lhe adianta um futuro sorridente, com lugar reservado ao empreendedor aguerrido e ao novo e maior Ao Bonheur des Dames. O tio e Geneviève, há pouco mortos, sequer merecem lágrimas e lembranças. Pertencem ao passado. Estão sepultados no tempo, ocultos da memória. Desaparecem sob os alicerces da moderna metrópole em constante transformação, marchando sempre para a frente, como a cumprir um destino manifesto. É um final terrível, desumanizado, cruelmente otimista. Parece comunicar que o progresso é algo neutro e bom; deve vir de qualquer maneira, apesar dos custos humanos. Será imposição dos financiadores do filme? Ou é decorrência consciente do realizador, compatível com o roteiro e o argumento naturalista de Émile Zola?



Denise Baudu (Dita Parlo) e Octave Mouret (Pierre de Guingand)


Apesar do epílogo, que por pouco não o arruína, Au bonheur des dames resiste como obra quase máxima. As atuações de Dita Parlo e Armand Bour engrandecem o desvalorizado aspecto humano do filme. Mas a direção também soube tirar proveito do trabalho de câmera e da montagem. Esta tem impacto ampliado com a adição da trilha musical de Gabriel Thibaudeau e não é exagero afirmar que seria do agrado de Sergei Eisenstein.



Denise Baudu (Dita Parlo) e Pauline (Andrée Brabant)


Tudo é muito bem filmado e enquadrado. Os ângulos devidos aos posicionamentos de câmera cumprem função dramática, ainda mais quando auxiliam a comentar e a ilustrar as sensações dos personagens surpreendidos em sua pequenez, como que intimidados pelo cenário físico da cidade em mutação ou do magazin fervilhando como templo erguido à celebração do consumo.


Por fim, ficarão para sempre estes momentos de excelência: a apresentação dos interiores de Au Bonheur des Dames pelos olhos de Denise; as sequências que captam a doença e a morte de Geneviève, seguidas do enlouquecimento de Baudu imprensado contra o desabamento impiedoso de seu mundo.


Paris é remodelada. O velho vem abaixo para dar lugar ao novo. Desmorona o mundo de Baudu.

  
Au bonheur des dames é filme para ser visto e revisto sempre que a oportunidade se fizer presente. Figura entre aquele punhado privilegiado de obras peculiares que jamais se esgotarão com apenas uma visão. Há, em seus planos, muitas surpresas ainda a revelar. Estão ocultas, como algumas câmeras no interior da Galeria Lafayette, esperando o momento adequado para ganhar evidência. Quanto ao triste epílogo, melhor seria esquecê-lo, simplesmente, da mesma maneira que foram olvidados o velho Baudu e seu pequeno comércio. Infelizmente, não é possível.






Roteiro: Noël Renard, adaptado de novela homônima de Émile Zola. Direção de fotografia (preto-e-branco): André Dantan, René Guichard, Émile Pierre, Armand Thirard. Figurinos: Gerlaur, Marthe Pinchard. Guarda-roupa: Siegel. Obras de arte: Susse, Brendt. Desenho de produção: Christian-Jaque, Fernand Delattre. Pintura: W. Percy Day. Trilha musical (restauração): Gabriel Thibaudeau, executada por Octuor de France. Músicos (restauração): Jean-Louis Sajet, Yoriko Naganuma, Jean-Christophe Grall, Laurent Jouanneau, Paul Broutin, Michel Fouquet, Jacques Thareau, Antoine Degremont, Jacques Gauthier, Jean-Michel Davis, Sophie Fournier. Estúdio de som (restauração): Studio Acoust. Gravação de som (restauração): Ettienne Bultingaire. Assistente de edição de som (restauração): Ludovic Palabaud. Direção de som e mixagem (restauração): Jean-Paul Darras. Pós-produção (restauração): Giles Gautheron. Produção (restauração): Serge Bromberg, Eric Lange. Tempo de exibição: 85 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2012)



[1] Cf. TULARD, Jean. Dicionário de cinema. Porto Alegre: L&PM, 1996. p. 204.
[2] O primeiro filme que dirigiu é Haceldama ou Le prix du sang. O último é Diabolicamente tua (Diaboliquement vôtre). Cf. Ibidem.
[3] Cf. EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas. São Paulo: Nacional, 2002. p. 221.
[4] Recentemente, no Brasil, deve-se ao Telecine Classic — extinto canal por assinatura das operadoras Net e Sky — a exibição de muitos títulos de Julien Duvivier.
[5] BRILHARINHO, Guido. Tecnalidade artesanal. In: —. O filme dramático europeu. Uberaba: Instituto Triangulino de Cultura, 2010. Disponível em http://jornaltelescopio.blogspot.com.br/2011/12/julien-duvivier.html. Acessado em 18 nov. 2012.
[6] Cf. Ibidem.
[7] A estréia no cinema se deu em Geheimnisse des Orients (1928), de Alexandre Volkoff. Encerrou a carreira com La dame de pique (1965), de Léonar Keigel. Cf. DITA Parlo. Disponível em http://www.imdb.com/name/nm0663077. Acessado em 23 nov. 2012.
[8] Kismet (1931), de William Diertelle; Entre beijos e espadas (Honor of the family, 1931), de Lloyd Bacon; e Mr. Broadway (1933), de Johnnie Walker. Cf. Ibidem.
[9] Justice est fait (1950), de André Cayatte, e La dame de pique. Cf. Ibidem.
[10] Cf. Ibidem.















            

domingo, 23 de dezembro de 2012

NAZISTAS NO SUL DO BRASIL

Aleluia, Gretchen (1976) é, seguramente, o melhor filme de Sylvio Back e uma das grandes realizações do cinema nacional em qualquer tempo. Poucos cineastas conseguiram, de modo tão acurado, discutir as influências da tradição e do peso do passado na formação dos indivíduos e na permanência das ideias. Se ainda não o viu, veja! É realização de visão obrigatória. Acompanhe, ao longo de 40 anos, a saga dos alemães da família Kranz e seus agregados. Junte-se a eles na elaboradíssima sequência final, ao som de A cavalgada das valquírias. A apreciação a seguir foi escrita em 1979.








Aleluia, Gretchen

Direção:
Sylvio Back
Produção:
Sylvio Back
Sylvio Back Produções Cinematográficas Ltda., Embrafilme
Brasil — 1976
Elenco:
Kate Hansen, Selma Egrei, Sérgio Hingst, Miriam Pires, Carlos Vereza, José Maria Santos, Lilian Lemmertz, Elizabeth Destefanis, Lourival Gipiella, Narciso Assumpção, Lauro Hanke, Lala Schneider, Maurício Távora, Sale Wolokita, Edson D’Ávila, Abílio Mota, Rafael Pacheco, Joel de Oliveira, Lúcio Weber, Irineu Adami.




Sylvio Back



Certamente, no presente momento ao menos, Sylvio Back[1] é o único cineasta de renome em atividade no Sul do Brasil[2]. Desde a estreia no cinema com o curta Moradas (1964), dedica-se, com raras exceções, ao sistemático mapeamento cinematográfico da região, privilegiando a parte compreendida pelos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Aborda temas os mais diversos, dispersos por curtas — Os imigrantes (1965), Curitiba amanhã (1965), Curitiba, uma experiência em planejamento urbano (1974), Teatro Guaíra (1976), Um Brasil diferente? (1978) e Crônica sulina (1979) — e longas-metragens — Lance maior (1970), A guerra dos pelados (1971), Aleluia, Gretchen (1976) e República Guarani, em andamento.


Aleluia, Gretchen, empreendimento ambicioso e bem sucedido, é exercício de ficção alimentado por fatos. O roteiro está apoiado em informações obtidas nos arquivos das Secretarias de Estado da Segurança Pública do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, sobre a movimentação de simpatizantes do nazismo e membros da Quinta Coluna no Brasil. Recupera também a memória familiar e afetiva do diretor, descendente de imigrantes europeus: é filho de pai húngaro e mãe alemã. Aborda questões até então praticamente ausentes da temática geral do cinema brasileiro: a imigração alemã contra um pano de fundo histórico no qual se cruzam referências ao nacional-socialismo e ao seu correlato brasileiro, o integralismo. Registra, ao longo de 40 anos, a saga dos Kranz, fugitivos de Hitler instalados, desde 1937, em cidade paranaense onde exploram o Hotel Flórida. Para alegria de alguns familiares e relativa tristeza de outros, principalmente do patriarca Ross (Hingst), ex-professor universitário de ideias liberais, o local é transformado em ponto de encontro de simpatizantes do nazismo.



O Hotel Flórida, da família Kranz, hostilizado durante os anos da Segunda Guerra Mundial


Ross pertence a uma geração de alemães formada sob o signo da frustração. Apoia, sem muita convicção, a subida de Hitler ao poder. Optará pela omissão política tão logo a serpente desponte do ovo que a gerou. Horrorizado com a prática nazista de queimar livros “não recomendados” em praça pública, prefere emigrar.


Acompanham-no a esposa Frau Lotte (Pires), os filhos Josef (Gipiella), Gudrum (Egrei) e Heike (Hansen), a governanta Frau Minka (Schneider) e o filho desta, Wilhelm (Pacheco). Excluindo o professor, os demais vieram contra a vontade. Heike chega grávida de membro da SS. Ostenta as características arianas segundo a cartilha de Hitler. Fora agraciada pelo fuhrer como mãe privilegiada dos filhos da “nova Alemanha”. Dará a luz a Gretchen, saudada euforicamente por Frau Lotte como a primeira ariana nascida em solo brasileiro. Porém, com saúde frágil, a criança logo falece, trazendo profunda depressão aos Kranz. Josef é a esperança de recomposição do orgulho familiar. Jovem, entra em contato com grupos nazistas locais. Recebe treinamento militar e doutrinação política. Retornará à Alemanha para lutar ao lado das forças do Reich.


Velório de Gretchen

  
Circulam próximos aos Kranz, de certa forma complementando-os em estilo bem brasileiro, o serviçal negro Repo (Assumpção), quase um animal de estimação de Frau Lotte; o integralista Dr. Aurélio (Santos), simbolizando o cruzamento entre os ideais de superioridade germânica e o meio local; e Eurico (Vereza), caixeiro-viajante apolítico e ambicioso, hóspede regular do hotel e futuro marido de Gudrum.



Miriam Pires como Frau Lotte

Carlos Vereza no papel de Eurico



O Hotel Flórida, com o fim da guerra, torna-se referência para nazistas em fuga, principalmente para a Argentina. Assim, nos anos 50 os Kranz hospedam os casais SS Rose Marie (Lemmertz)/Kaput (Távora) e Merts (Wokolita)/Bruckner (Mota), que preenchem o ambiente de tensão física e psicológica. Eurico, refratário em lhes fornecer auxílio, recebe na carne, de forma crua, fria e brutal, mostras da superioridade e do poder de convencimento dos estrangeiros. Com eles os Kranz são obrigados a rememorar um passado dolorido, repleto de glórias efêmeras e ilusões perdidas.


O passado, que muitos preferem esquecer ou, no máximo, rememorar silenciosamente na solidão dos ambientes reservados, é o ponto central das preocupações de Sylvio Back em Aleluia, Gretchen. Motivo de orgulho ou vergonha, é o passado que alimenta os sobreviventes, fornecendo-lhes força para a continuidade da vida, ainda que a duras penas. Do passado ninguém escapa, parece dizer o diretor. É a raiz de nossa ligação com o mundo; contém os germes da nossa formação e os elementos que nos humanizam, apreciados ou não. E passado quer dizer História. Impõe lembranças constantemente reatualizadas, sobrevivências ou estruturas que nos embasam, que independem de nós e resistem à passagem do tempo.


Acima e abaixo, o treinamento da Juventude Hitlerista





Aleluia, Gretchen é o mais importante trabalho de Sylvio Back. Encerra uma etapa de aprendizado. Se não atinge a perfeição, está muito à frente das limitações quase artesanais que marcaram a condução dos longas anteriores, Lance maior e A guerra dos pelados. Momentos de notável intensidade dramática são conseguidos ao longo de uma narrativa que, apesar de linear, não lança mão da continuidade para ligar os blocos que a compõem. Essas unidades formam sequências que se completam; encerram pedaços de dramas que dão significado à saga de 40 anos dos Kranz; possuem início, meio e fim, ordenando-se em número de seis, separadas umas das outras por frações não definidas de tempo. Primeiro há a chegada da família Kranz ao Brasil e o recomeço da vida no Hotel Flórida. Seguem-se o treinamento de Josef com os membros da juventude hitlerista local (cenas prejudicadas pela censura, pois os rapazes estavam sempre nus demonstrando a pretensa superioridade física ariana) e seu retorno à Alemanha; o nascimento e morte de Gretchen; o casamento de Gudrum e Eurico; os anos de guerra com as hostilidades praticadas contra os imigrantes; e a acolhida aos nazistas em trânsito.


Por fim, há a incrível e engenhosa sequência de encerramento: o piquenique de confraternização ao qual comparecem todos os personagens, brasileiros e alemães, nazistas e integralistas, pretos e brancos, torturadores e torturados. Neste epílogo, ao som de inédito arranjo rock de A cavalgada das valquírias, de Wagner, pelo grupo O Terço, percebe-se que a passagem dos anos não significou o envelhecimento físico dos personagens. Apenas atualizou aparências. Mentalmente, também continuam os mesmos, crentes na força de ideias e convicções trazidas de longa data. Esse recurso dramático é ampliado por observações e comentários pronunciados ao longo da sequência: “Quando as ideias não envelhecem o corpo resiste”, diz Dr. Aurélio. Outro personagem afirma em tom questionador: “A história se repete, se imita, não lhe parece?”. Por fim, um participante observa profeticamente: “Continua fecundo o ventre de onde saiu essa gente”. São sentenças que informam a percepção que o diretor tem de História. Ao mesmo tempo contribuem para o espectador compreender as intenções narrativas. Mais que encenar um drama a respeito do nazismo, do integralismo e da imigração, Back quer saber dos fatos que sobreviveram a tão turbulento período. De forma proposital, não recorre à palavra “Fim” no encerramento do filme. Isto porque, conforme explicou, o drama encenado termina apenas na tela. Prossegue na vida real. A História continua.



Kate Hansen no papel de Heike e Elizabeth Destefanis como Inge


Os personagens, ao longo de quase todo o tempo, são captados na fixidez de planos próximos que evidenciam apenas rostos e, ocasionalmente, porções maiores dos corpos. Geralmente estão enclausurados e sentados. Não há, pois, muito espaço à movimentação dos atores. Portanto, não são as ações que definem os personagens mas os diálogos. Tudo é compartilhado com o espectador: conversas, discursos, monólogos, bate-papos, lamentações, exaltações e recordações. Este acaba envolvido na intimidade dos Kranz. É praticamente intimado a decifrar enigmas e metáforas em diversos trechos do filme.


Aleluia, Gretchen demandou muito tempo de preparo. Foram quatro meses de pré-produção, dois de filmagem em Blumenau e Curitiba, outros quatro para montagem e finalização. O resultado vale a pena. Dentre os últimos filmes produzidos no Brasil, é o de melhor elaboração. Chega a ser detalhista na reconstituição dos figurinos, ambientes e épocas. A direção de atores é um trunfo à parte. Difícil dizer quem interpreta melhor.


Eurico (Carlos Vereza) é submetido ao poder de convencimento do nazismo

  
Convidado a participar de vários festivais de cinema nacionais e internacionais, Aleluia, Gretchen recebeu 15 prêmios nas mais diversas categorias apenas em um ano. Também colecionou polêmicas, algumas gratuitas e estúpidas como a desencadeada por Alberto Cavalcanti, presidente do Júri no Festival de Brasília. Homem inteligente e cineasta de renome internacional que construiu a maior parte da carreira no exterior, Cavalcanti não se conteve. Não contente por não entender o filme, resolveu acusá-lo de fazer pregação do nazismo, uma incrível bobagem. Aliás, o Festival de Brasília foi o único a não conferir prêmios a Aleluia, Gretchen. Inconformado, o público vaiou o júri. Em compensação, no Festival de Gramado recebeu láureas pela Melhor Fotografia (José Medeiros) e Melhor Ator Coadjuvante (José Maria Santos). Da Air France conquistou prêmios para Melhor Direção e Melhor Atriz (Miriam Pires). Pela Associação Paulista dos Críticos de Arte foi agraciado pelo Melhor Roteiro (Sylvio Back, Oscar Volpini e Manoel Carlos Karan), Melhor Ator (Sérgio Hingst), Melhor Figurino (Afonso Burigo) e Melhor Cenografia (Ronaldo Leão Rego e Marcos Carrilho). Também recebeu a Coruja de Ouro nas categorias de Melhor Atriz (Miriam Pires) e Melhor Fotografia. Conquistou o Golfinho de Ouro para Melhor Direção. Da Embrafilme veio o Prêmio Qualidade. Por fim, foi brindado com o Troféu Governador do Estado de São Paulo para Melhor Argumento (Sylvio Back), Melhor Cenografia e Melhor Fotografia.



Eurico (Carlos Vereza), Frau Lotte (Miriam Pires), Professor Ross (Sérgio Hingst) e Gudrun (Selma Egrei)


Indicado pela Embrafilme para participar do Festival de Berlim, foi inexplicavelmente retirado da lista de concorrentes. Mas recebeu elogios entusiasmados nos festivais de Chicago e Manheim.






Roteiro: Sylvio Back, Oscar Volpini, Manoel Carlos Karan, a partir de um argumento de Sylvio Back. Diálogos: Sylvio Back. Fotografia (Eastmancolor): José Medeiros. Cenografia: Ronaldo Leão Rego, Marcos Carrilho. Montagem: Inácio Araújo. Figurinos: Afonso Burigo. Música: A cavalgada das valquírias, de Wagner, interpretada por O Terço; fragmentos de Avante, hino integralista de Plínio Salgado. Direção musical: Carlos Castilho. Assistente de direção: Manoel Carlos Karan. Diretor de produção: Plínio Garcia Sanchez. Tempo de exibição: 109 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1979)



[1] Apesar de surgir grafado como Silvio, inclusive no material de divulgação, o correto é Sylvio.
[2] Esta apreciação é de 1979. Atualmente, a afirmação carece de sentido. O Rio Grande do Sul é um dos mais dinâmicos pólos de produção e criatividade cinematográfica no Brasil, concentrando nomes como Jorge Furtado, Carlos Gerbase, Giba Assis Brasil, Ana Luísa de Azevedo, José Pedro Goulart, José Roberto Torero, Cecílio Neto etc., reunidos em torno da Casa de Cinema de Porto Alegre, produtora independente fundada em 1987.