domingo, 20 de outubro de 2013

DISNEY POPULARIZA OS DÁLMATAS NUMA AVENTURA CONTEMPORÂNEA E SECULARIZADA

O décimo desenho animado longo da Walt Disney Productions a contar apenas uma história é o primoroso e inovador — para os padrões clássicos da companhia — A guerra dos dálmatas (One hundred and one dalmatians, 1961), de Wolfgang Reitherman, Clyde Geronimi e Hamilton Luske. É realização ambientada no mundo contemporâneo, sem brechas para intervenções do sobrenatural. Predomina o lado mais prosaico da existência. Por isso, a esquálida e perversa vilã Cruella De Vil — perua da alta sociedade londrina — assume contornos assustadoramente reais em sua gana de transformar uma simpática matilha em vistoso casaco de peles. Percebe-se também uma rendição do padrão Disney de qualidade ao estilo mais leve e solto da United Productions of América, confirmando uma tendência que se evidenciava desde a primeira metade dos anos 50.







A guerra dos dálmatas
One hundred and one dalmatians

Direção:
Wolfgang Reitherman, Clyde Geronimi, Hamilton Luske
Produção:
Walt Disney
Walt Disney Productions
EUA — 1961
Elenco:
Vozes originais de: Rod Taylor (Pongo), Betty Lou Gerson (Cruella De Vil, Miss Birdwell), Cate Bauer (Perdita), Lisa Daniels, Ben Wright (Roger Radcliff), Frederick Worlock (Horace Badun, Inspector Craven), Lisa Davis (Anita Radcliff), Martha Wentworth (Nana, Queenie, Lucy), J. Pat O'Malley (Coronel, Jasper “Gaspar” Badun), Tuder Owen (Towser), Tom Conway (anunciante da televisão, Collie), George Pelling (Danny), Thurl Ravenscroft (Capitão), David Frankham (Sargento Tibs), Ramsay Hill (Locutor televisivo, cão labrador), Queenie Leonard (Princesa), Marjorie Bennett (Duquesa), Barbara Beaird (Rolly), Mickey Maga (Patch), Sandra Abbott (Penny), Mimi Gibson (Lucky), Barbara Luddy (Rover), Paul Frees (Dirty Dawson), Lucille Bliss (cantora do comercial de TV), Bob Stevens, Max Smith, Sylvia Marriott, Dal McKennon, Rickie Sorensen, Basil Ruysdael, Don Barclay, Jeanne Bruns, Bill Lee, Helene Stanley, Paul Wexler, Mary Wickes.



Os diretores Wolfgang Reitherman - à esquerda -, Hamilton Luske - acima, à direita - e  Clyde Geronimi



O nome original da vilã, Cruella De Vil, tem dupla variação no Brasil: Cruella Cruel nas versões dubladas de A guerra dos dálmatas e Malvina Cruella na adaptação do filme para as revistas em quadrinhos da coleção Clássicos Walt Disney (dezenove números), lançada em 1969 pela Editora Abril. Não é bruxa, sequer madrasta; não persegue princesas ou jovens órfãs desprovidas de sorte. É uma personagem assustadoramente real; por isso, das mais terríveis da vasta galeria maléfica da Disney. Esquálida, viciada em cigarros consumidos em longas piteiras e que expelem asquerosa fumaça verde, Cruella Cruel é petulante e mal-educada perua da alta sociedade londrina. Egoísta ao extremo, é capaz de tudo para entrar na posse de seus mais caros objetos de desejo: casacos de pele. Pretende costurar o mais novo deles com a cobertura tenra e macia de quinze filhotes do casal dálmata Pongo e Perdita (Prenda, nas versões dubladas do filme; Pedrita, nos quadrinhos). A princípio, insistiu para comprá-los. Pagaria qualquer preço. Mas teve as ofertas recusadas por Roger Radcliff e Anita, ciosos donos dos bichos. Contrariada e furiosa, Cruella ordena o roubo dos animais pelos desastrados meliantes Horácio e Gaspar. O crime deixa a polícia de mãos atadas. Desesperados com a imobilidade dos humanos, Pongo e Perdita apelam à solidariedade canina. Pela emissão do “latido ao luar”, acionam vasta rede de comunicação, busca e salvamento. Ninguém dormiu naquela noite. A mensagem de “quinze cãezinhos roubados” percorre Londres e arredores. Mobiliza cães, vacas, ganso, gato e cavalo. A prole desaparecida é encontrada num casarão abandonado, reunida a um lote de 84 outros filhotes dálmatas. O resgate exige rapidez, pois Cruella deu a ordem fatal: quer a pele de todos curtida, sem demora.


A governanta Naná e a vilã Cruella De Vil

Gaspar e Horácio, cúmplices de Cruella De Vil


A guerra dos dálmatas é o décimo desenho animado de longa metragem da Walt Disney Productions, considerados os que contam apenas uma história[1]. O roteiro é extraído de The one hundred and one dalmatians, novela de Doddie Smith publicada em 1957 e imediato sucesso na Inglaterra, justamente por destacar aspectos da geografia londrina e singularidades dos hábitos e costumes britânicos. A adaptação preservou a cor local do original: manteve a famosa fleuma dos personagens e seu rigoroso apego aos horários; incluiu imagens do Regent’s Park e do Big Ben; não descuidou do carro da vilã, um Rolls Royce, sequer das raças caninas que auxiliam os dálmatas: collie, yorkshire, scottish terrier, típicas da terra, às quais se juntam dinamarquês, labrador, perdigueiro, fila etc.


A guerra dos dálmatas representa o mundo aos olhos do cão. Seis anos antes, a Disney Productions fizera o mesmo em A dama e o vagabundo. Tanto em um como em outro os papéis são relativamente invertidos: os humanos tornam-se mascotes dos cachorros. O que separa os filmes é o traço. O rigoroso classicismo cede lugar a um desenho de formato mais simples, livre de fórmulas e menos pretensioso, que nem por isso abandona a estilização, a suavidade e a elegância características da companhia de Mickey, Donald, Pateta e Pluto. A vantagem é que, agora, os animadores puderam dar maior atenção aos movimentos e preciosos detalhes. A guerra dos dálmatas inova desde a apresentação dos créditos de abertura, à moda de Saul Bass. Não são fundos fixos que servem à identificação dos técnicos e artistas[2], mas suportes animados que transmitem a responsabilidade de cada um ou da equipe no processo de criação. No centro da apresentação está a mancha negra que salpica a pele branca dos dálmatas. Ela dá linha e compasso não apenas à sequência de abertura, mas a muitas passagens do filme.


O casamento dos cães Pongo e Perdita celebrado durante o enlace matrimonial de Roger Radcliff e Anita 

Anita e Roger Radcliff


Aliás, a complexidade da reprodução das manchas obrigou a produção a revolucionar a técnica de animação. Segundo estatísticas, Pongo e Perdita possuem, respectivamente, 72 e 68 pintas pretas. Cada filhote apresenta 32 que multiplicadas por 99 somam 3.168. No total são cerca de 6.469.952 manchas negras distribuídas pelos 113.760 fotogramas de A guerra dos dálmatas[3]. Filme com tanta mancha deveria ser viabilizado sem cansar excessivamente os desenhistas. Pensando nisso, a Disney introduziu a leveza do lápis de cera e a fotocopiagem. Esta permitiu um avanço fundamental: a transcrição magnética do desenho no papel para a folha de celuloide. “Sem isso seria praticamente impossível reproduzir os milhões de pintas e dar veracidade aos precisos movimentos”[4].


Pelo estilo do traço, percebem-se em A guerra dos dálmatas nítidas influências da United Productions of América (UPA), empresa criada em 1945 por dissidentes da Disney: Stephen Bosustow, Saul Bass, Robert Cannon, John Hubley, Pete Burness, Ted Parmelee e William Hartz. O grupo, ao qual se juntaram Art Babitt, Lew Keller e Al Kouser, estava insatisfeito com o academicismo e a rígida padronização que imperavam na casa de origem. Na UPA  que se notabilizaria por Mr. Magoo e Gerald McBoing-Boing, entre outros personagens , propuseram-se a experimentações que geraram um traço livre de amarras. Disney não demorou a sentir o golpe. Em 1953 adota o estilo UPA e ganha mais um Oscar com o curta O Tatá, o Fifi, o Plim e o Chibum (Toot, Whistle, Plunk and Boom). Vestígios da mesma influência são notados também em A bela adormecida. Em A guerra dos Dálmatas o estilo rival é percebido desde a apresentação dos créditos de abertura, à moda do dissidente Saul Bass. Está impresso no fenótipo dos personagens, no risco que desenha o exterior da vizinhança de Roger e Anita, no interior escuro da casa assaltada por Horácio e Gaspar, quando são notados apenas os contornos dos móveis e utensílios.


Pongo, Perdita e seus quinze filhotes


Ao contrário de outros desenhos longos da Disney, A guerra dos dálmatas inova por se apoiar num enredo secularizado, que deixa de lado o enfoque pedagógico e moralista. Abre mão da lenda, da magia e do sobrenatural. Limita-se a contar uma história contemporânea da modernidade televisiva e não de eras antigas e imemoriais. Tudo acontece na prosaica e pacata Londres de começo dos 60. Marcas da época se traduzem em detalhes como: 1) Roger, profissional da indústria cultural, tenta ganhar a vida como compositor popular de sucesso; 2) a desarrumação típica do apartamento de solteiro; 3) o hábito da leitura dos humanos; 4) os passeios nos parques e jardins; 5) a trilha musical de George Bruns, à base de jazz e blues, unida ao cosmopolitismo da capital inglesa.


Antes de iniciar propriamente a produção, os desenhistas estudaram a fundo a biologia dos dálmatas, principalmente as características do pelo e da movimentação. Tudo isso em nome do padrão Disney de qualidade. Pouco conhecidos até então, os cães do título ficaram mundialmente famosos após o filme. A raça é de fato prolífica. Não é a toa que Pongo e Perdita são pais de uma ninhada de 15 filhotes cujas manchas  explica o didatismo da realização  só aparecem após alguns dias de vida.


A guerra dos dálmatas possui, desde o começo, muitas cenas de antologia: 1) Pongo, cansado com a modorra da vida de solteiro, seleciona na janela do apartamento as companheiras para ele e Roger; 2) os discretos olhares trocados no parque; 3) os olhos vidrados e as pernas bambas do orgulhoso Pongo ao se descobrir pai de 15 filhotes; 4) as caudas agitadas dos cãezinhos vendo na TV as aventuras do cão Trovão; 5) o assanhamento de Roger ao descer as escadas cantando a letra de seu futuro sucesso e, a seguir, dançando com Anita e Pongo; 6) o despertar de Cruella com bobs no cabelo  realmente um horror  num ambiente reproduzido à imagem e semelhança da megera; 7) a debandada dos filhotes coordenada pelo gato Sargento; 8) os corpos vergados dos cãezinhos em fuga sob o cortante vento gelado; 9) as graciosas e falantes vacas que alimentam a matilha faminta; 10) os pingos de chuva retirando a fuligem que camuflava o branco da pele dos cães; 11) a criada Nana espanando a camuflagem escura, provocando nítido e vigoroso contraste com a cor clara da pele e da luz do ambiente.


Depois de muitos riscos, Pongo, Perdita e os 99 filhotes chegam em casa na noite de Natal, alegrando os tristonhos Roger, Anita e Nana. A felicidade aumenta quando é anunciada a decisão de adotar todos os cães extras. O problema do espaço será resolvido com a mudança para um sítio no interior. Dinheiro deixou de ser problema. O compositor agora frequenta o topo do hit-parade com uma música que satiriza Cruella De Vil.


O gato Sargento escolta os filhotes para a liberdade

  
A guerra dos dálmatas recicla os cães do canil de A dama e o vagabundo, exibindo-os na vitrine de uma loja de animais como ouvintes atentos da mensagem de “15 filhotes roubados”. Também antecipa o desenho dos rurais Napoleão e Lafayette, os cães que infernizam o criminoso mordomo Edgar, algoz dos gatinhos herdeiros em Aristogatas (Aristocats, 1970), de Wolfgang Reitherman, passado na Paris da belle époque.



Acima e abaixo: Cruella De Vil com seu indefectível cigarro com piteira


Uma curiosidade: Bill Peet, responsável pela adaptação da novela de Doddie Smith, entrou para a história como o primeiro escritor a obter crédito individual na atividade de roteirista de desenho animado[5].





Música: George Bruns. Roteiro: Bill Peet, com base na novela The one hundred and one dalmatians, de Doddie Smith. Desenho de produção e direção de arte: Ken Anderson. Fotografia em Technicolor. Montagem: Roy M. Brewer Jr., Donald Halliday. Supervisão de som: Robert O. Cook. Direção de animação: Mark Davis, Milt Kahl, Eric Larson, John Lounsbery, Frank Thomas, Ollie Johnston. Orquestração: Franklyn Marks. Edição musical: Evelyn Kennedy. Supervisão de produção: Ken Peterson. Processos especiais: Ub Iwerks, Eustace Lycett. Letras das canções: Mel Leven. Animação dos personagens: Hal King, Les Clark, Cliff Nordberg, Blaine Gibson, Eric Cleworth, John Sibley, Art Stevens, Julius Svendsen, Hal Ambro, Ted Berman, Bill Keil, Don Lusk, Dick Lucas, Amby Paliwoda. Efeitos especiais: Jack Boyd, Dan MacManus, Ed Parks, Jack Buckley. Layout: Basil Davidovich, McLaren Stewart, Vance Gerry, Joe Hale, Dale Barnhari, Ray Aragon, Dick Ung, Homer Jonas, Al Zimmer, Samie June Larkhan, Victor Halousk. Estilo do layout: Don Griffith, Erni Nordli, Collin Campbell. Estilo dos personagens: Bill Beet, Tom Oreb. Estilo de cor: Walter Peregoy. Desenhos de fundo: Al Dempster, Ralph Hulett, Anthony Rizzo, Bill Layne. Tempo de exibição: 76 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1975; revisto e ampliado em 1996)



[1] Até A guerra dos dálmatas, pertencem a este grupo: Branca de Neve e os sete anões (Snow White and the seven dwarfs, 1937), de David Hand; Pinóquio (Pinocchio, 1940), de Ben Sharpsteen; Dumbo (Dumbo, 1941), de Ben Sharpsteen; Bambi (Bambi, 1942), de David Hand; A gata borralheira (Cinderella, 1950), de Clyde Geronimi, Hamilton Luske e Wilfred Jackson; Alice no país das maravilhas (Alice in Wonderland, 1951), de Clyde Geronimi, Hamilton Luske e Wilfred Jackson; Peter Pan (Peter Pan, 1953), de Clyde Geronimi, Hamilton Luske e Wilfred Jackson; A dama e o vagabundo (The lady and the tramp, 1955), de Clyde Geronimi, Hamilton Luske e Wilfred Jackson; e A bela adormecida (Sleeping beauty, 1959), de Clyde Geronimi. Os desenhos longos formados por episódios e/ou unidos à ação viva realizados até A guerra dos dálmatas são: Fantasia (Fantasia, 1940), de Samuel Armstrong, James Algar, Bill Roberts, Paul Satterfield, Hamilton Luske, Jim Handley, Ford Beebe, T. Bee, Norman Fergunson e Wilfred Jackson; O dragão relutante (The reluctant dragon, 1941), de Hamilton Luske, Jim Handley, Ford Beebe, Erwin Verity e Jasper Blystone; Victory through air power (1942), de Clyde Geronimi, Jack Kinney e James Algar; Alô amigos (Saludos amigos, 1943), de Bill Roberts, Jack Kinney, Hamilton Luske e Wilfred Jackson; Você já foi à Bahia? (The three caballeros, 1945), de Harold Young e Norman Fergunson; Música, maestro (Make mine music, 1946), de Jack Kinney, Clyde Geronimi, Hamilton Luske, Robert Cormack e Joshua Meador; A canção do sul (Song of the south, 1946), de Wilfred Jackson e Harve Foster; Bongo (Fun and fancy free, 1947), de Jack Kinney, Bill Roberts, Hamilton Luske e William Morgan; Melodia (Melody time, 1948), de Clyde Geronimi, Wilfred Jackson, Hamilton Luske, Jack Kinney e Winton Hoch; So dear to my heart (1948), de Harold Schuster e Hamilton Luske; e Dois sujeitos fabulosos (Ichabod and Mr. Toad, 1949), de Jack Kinney, Clyde Geronini e James Algar.
[2] A guerra dos dálmatas empregou 150 técnicos e artistas (cf. BECHARA, Jorge. Dálmatas cansam os desenhistas. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 jun. 1996. Ilustrada. p. 4). Nem todos foram creditados.
[3] Ibidem. Ao todo, a produção consumiu 800 galões de tinta, cada qual contendo 3.785 litros, e 1.218.750 lápis. Também usou 1000 tonalidades de cores obtidas de novas fórmulas.
[4] Ibidem. O tempo poupado pela fotocopiagem não é nada diante dos avanços que o desenvolvimento da informática possibilita atualmente à animação. Se feito hoje, A guerra dos dálmatas teria os 99 filhotes e seus movimentos desenhados por computador.
[5] Ibidem.