domingo, 4 de agosto de 2013

NAZISTAS "COMANDADOS" PELO BRITÂNICO MICHAEL POWELL DESEMBARCAM NA AMÉRICA

Em 1941 quase toda a Europa  com exceção da Península Ibérica e da Itália de Mussolini  estava ocupada pelas forças de Hitler. A URSS ainda confiava na validade do Pacto Molotov-Ribbentrop de 1939. A Inglaterra, sob intenso bombardeio, resistia praticamente sozinha. A neutralidade dos Estados Unidos incomodava os combatentes ao nazifascismo. Tio Sam deveria se juntar aos combalidos aliados. Antes que os japoneses conseguissem a proeza com o ataque ao Havaí em 7 de dezembro de 1941, o cinema inglês chamava os estadunidenses à responsabilidade. Invasão de bárbaros (49th parallel/The invaders, 1941), de Michael Powell, é digno representante deste período. No filme, um pequeno grupo nazista desembarca no Canadá e ruma para os Estados Unidos, entrando em confronto com representações concretas e simbólicas da liberdade individual e dos valores democráticos. 






Invasão de bárbaros
49th parallel/The invaders

Direção:
Michael Powell
Produção:
Michael Powell
Ortus Films
Inglaterra, Canadá — 1941
Elenco:
Laurence Olivier, Leslie Howard, Richard George, Eric Portman, Raymond Lovell, Niall MacGinnis, Peter Moore, John Chandos, Basil Appleby, Finlay Currie, Ley On, Anton Walbrook, Glynis Johns, Charles Victor, Frederick Piper, Tawera Moana, Eric Clavering, Charles Rolfe, Raymond Massey, Theodore Salt, O. W. Fonger.



Emeric Pressburger, autor do argumento, e o diretor Michael Powell:  parceria das mais sólidas e criativas do cinema



Filmes estrangeiros no Brasil costumam receber títulos problemáticos. Por diferenças de língua, sabe-se que nem tudo pode e deve ser traduzido ao pé da letra. Mas, não importando os nomes originais, os tituladores nacionais chegam às raias do absurdo mais desvairado com os excessos que cometem. Os exemplos são muitos. Vejamos dois: Shane (1953), de George Stevens, e A streetcar named desire (1951), de Elia Kazan, foram convertidos, respectivamente, para Os brutos também amam e Uma rua chamada pecado. Como explicar essas aberrações? Parece que o espectador brasileiro é exclusivamente formado de ignorantes irremediáveis. Por isso, pode ser desrespeitado sem a menor cerimônia.


O descaso também prossegue por outras vias. Às vezes o filme é lançado com um nome; anos depois reaparece com outro, provocando confusões e dissabores entre cinéfilos e estudiosos acometidos de desconhecimento e/ou falta de atenção. Isso acontece com a realização de Michael Powell, ora em apreço: conhecida por 49th Parallel nos Estados Unidos e Canadá e por The invaders na Inglaterra, essa co-produção anglo-canadense chamou-se Invasão de bárbaros quando passou nos cinemas brasileiros. Manteve a denominação ao chegar à televisão. Porém, em vídeo, atende por Paralelo 49, mais sóbrio e respeitoso com uma das formas originais. Com esse "novo" nome voltou a frequentar a programação da TV. Aparentemente, o troca-troca parece questão de somenos importância. Mas é séria para quem gosta de cinema.


O vencedor do Oscar de Melhor Filme de 1941 foi Rosa da esperança (Mrs. Miniver), de William Wyler. Nesse ano, também eram candidatos ao prêmio máximo da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas: Em cada coração um pecado (Kings row), de Sam Wood; Soberba (The magnificent Ambersons), de Orson Welles; Abandonados (The pied piper), de Irving Pichel; Ídolo, amante e herói (The pride of the Yankees), de Sam Wood; Na noite do passado (Random harvest), de Mervyn LeRoy; ...E a vida continua (The talk of the town), de George Stevens; Nossos mortos serão vingados (Wake island), de John Farrow; A canção da vitória (Yankee Doodle Dandy), de Michael Curtis; e, Invasão de bárbaros, que acabou conquistando a estatueta para Melhor História Original.


Emeric Pressburger escreveu o argumento de Invasão de bárbaros. Roteirizou-o em parceria com Rodney Ackland. Conta uma história passada nas proximidades do Paralelo 49, onde o Canadá faz fronteira com os Estados Unidos. "Esta é a única fronteira não defendida do mundo, selada apenas com um aperto de mão e assim mantida até hoje", informam os letreiros de abertura do filme.


Financiado pelo Ministério da Informação da Inglaterra e Governo Canadense, Invasão de bárbaros não deixa dúvidas sobre a quem se dirige. Apesar dos letreiros iniciais informarem que o filme é dedicado ao Canadá, aos canadenses, aos Estados Unidos e ao Reino Unido, o destinatário principal da mensagem veiculada é mais que claro: os Estados Unidos da América em sua posição de neutralidade nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial, num momento em que forças canadenses já lutavam na Europa e o Reino Unido sofria a ação das bombas alemãs, lançadas a todo instante sobre Londres e outras cidades pela Luftwaffe.


A neutralidade americana incomodava os europeus, principalmente os britânicos, praticamente solitários na frente ao agressor nazista. Todo o resto da Europa estava de joelhos. A URSS ainda confiava na validade do Pacto Molotov-Ribbentrop de 23 de agosto de 1939. Se o conflito bélico do outro lado do Atlântico não era suficiente para sensibilizar Tio Sam, as coisas não mudariam com a ameaça nazista mostrando-se mais próxima? Invasão de bárbaros é um filme de propaganda que cumpre o propósito de alertar o facilmente impressionável povo americano sobre a possibilidade de a barbárie hitlerista se instalar, um dia, próxima de seus lares e liquidar de vez as bases liberais da democracia americana, firmadas no princípio da livre iniciativa individual.



Os invasores: "A cortina se levanta sobre o Canadá"


A ação de Invasão de bárbaros acontece em 1940. Um submarino alemão emerge nas costas do Canadá e torpedeia um navio mercante desse país. O ataque irrompe próximo à Baia de Hudson e do Paralelo 49. "A cortina se levanta sobre o Canadá", diz exultante o Comandante (George) da embarcação agressora. Depois, meia dúzia de nazistas desembarca no continente em busca de provisões e combustível. São os tenentes Hirth (Portman) — líder do grupo — e Kuhnecke (Lovell), mais os soldados Vogel (MacGinnis), Kranz (Moore), Lhurmann (Chandos) e Jahner (Appleby). Mas o navio abatido teve tempo de enviar mensagem identificando os atacantes. Logo a força aérea canadense se apresenta. Da praia, os desembarcados avistam o submarino indo a pique sob intenso bombardeio. Estão isolados, sem meios imediatos para voltar à Alemanha. Buscando alternativas, orientam-se via mapas e informações que lhes foram passadas por um missionário alemão que viveu no Canadá. Rumam para um entreposto comercial isolado, que abastece caçadores e esquimós.


Seis invasores a serviço da Alemanha de Hitler desembarcam no Canadá


Powell e Pressburger não têm complacência com os nazistas, como era de se esperar. Estes são apresentados como celerados arrogantes e irracionais. Conhecem apenas a "verdade" do Mein kampf e enquadram a diversidade da vida sob as capas do militarismo, da hierarquia, do racismo e do mito da supremacia germânica. Consideram com desdém a liberdade e a verdade dos homens comuns. Tomam a democracia por ficção decadente. Acreditam piamente que os homens só se fazem na guerra; por isso o pacifismo é uma degeneração da espécie. Esse conjunto de características e crenças é acentuado diante da desesperada situação em que o grupo se encontra.


Por onde passam, os soldados de Hitler estampam a marca da sua estupidez, materializada em horror, destruição e desprezo a tudo o que julgam inferior. Barbarizam o entreposto, ferindo o esquimó Nick (On) e matando o caçador Johnny (Olivier). Apoderam-se de um hidroavião. Na decolagem, um membro do grupo é fatalmente atingido por um tiro. 



O caçador Johnny (Laurence Olivier) e o gerente de um posto comercial (Finlay Currie) imobilizados pelos invasores

O caçador Johnny (Laurence Olivier) diante do Tenente Hirth (Eric Portman)


Não conseguem ir longe. Por falta de combustível o aparelho cai, deixando mais um morto. Os quatro sobreviventes alcançam uma comunidade alternativa agrícola de Hutterites, formada por canadenses e imigrantes, dentre os quais muitos alemães. Não compreendem o modo de vida local, pois ali ordens são desnecessárias e cada qual faz o que achar conveniente, contanto que o respeito ao bem estar grupal esteja em primeiro lugar. Os Hutterites servem como metáfora da liberdade americana. Acolhem com hospitalidade os forasteiros. O Tenente Hirth — acreditando grosseiramente que todos os alemães se parecem —, tenta converter à causa nazista os conterrâneos que encontra. Mas seu proselitismo só atrai repulsa. Vogel, o mais cordato dos fugitivos — que aderiu ao nazismo por falta de opção —, aprecia o modo de vida hutterite. Após salvar a jovem Anna (Johns) da fúria dos companheiros, é convidado por Peter (Walbrook), coordenador local, a permanecer com eles. Entretanto, para Hirth tal ato seria traição. Assim, ordena a morte do ex-companheiro.



Peter (Anton Walbrook) é a liderança dos Hutterites

Tenente Hirth (Eric Portman) faz proselitismo nazista para os pacíficos Hutterites


Novamente em fuga, reduzidos a três e cada vez mais desesperados, assaltam um vendedor de roupas. Já próximos à fronteira com os EUA, tentam se apresentar a uma representação diplomática alemã, aproveitando a neutralidade americana. Alcançam uma cidade, junto com as notícias das barbaridades praticadas desde o desembarque. Não conseguem ocultar as identidades. Hirth e Kuhnecke fogem pelas montanhas após a prisão do outro companheiro. Deparam-se com o acampamento de Philip Armstrong Scott (Howard), pesquisador da etnia algonquina.


Scott, desavisado, oferece-lhes abrigo. É indivíduo contrário à guerra, de gosto refinado, apreciador de arte e literatura modernas. É o bastante para atrair o imediato desprezo de Hirth e Kuhnecke, ainda mais ao revelar semelhanças entre nazistas e algonquinos, povo inferior segundo o ideal germânico de superioridade. Estes, nas palavras de Scott, treinam desde cedo os meninos para a guerra, pois a consideram como única ocupação digna do homem. São traiçoeiros, atacam pelas costas, da forma recomendada por Goebbels, continua o pesquisador. Possuem liderança que se repete de maneira insistente e exaustiva, à semelhança de Hitler, completa.


À noite, Hirth e Kuhnecke se revelam. Imobilizam Scott. Danificam-lhe obras de criadores que julgam degenerados: quadros de Matisse e Picasso e o livro A montanha mágica, de Thomas Mann. Lançam ao fogo as anotações sobre os Algonquinos, roubam uma arma, o que mais podem e fogem. Percebendo a estranha movimentação, guias e auxiliares de Scott despertam. Logo estão à caça dos fugitivos. Kuhnecke se desentende com Hirth, deixando-o momentaneamente fora de combate. Mas é alcançado pelos perseguidores. É hora do intelectual Scott revelar o quanto pode um homem livre. Encurrala Kuhnecke numa caverna e lhe desfere quatro decisivos golpes, por conta de Thomas Mann, Matisse, Picasso e por ele mesmo. Por fim, observa interrogativamente: "Um homem armado contra um democrata decadente e desarmado! Será que Goebbels explicaria isso?".


Philip Armstrong Scott (Leslie Howard) dominado pelo Tenente Hirth (Eric Portman)


Resta Hirth. Este alcança um trem de carga, ocultando-se num vagão. Na composição embarca Andy Brook (Massey), fazendeiro canadense e voluntário alistado para a guerra. É atacado pelo alemão, que lhe toma o uniforme. O trem chega à fronteira. Os agentes da aduana (Salt e Fonger) fiscalizam o vagão. O disfarce do nazista não engana. Brook, com os sentidos recobrados, convence os fiscais a ordenar marcha a ré ao maquinista. Motivo: carga não declarada — o alemão — não pode entrar nos Estados Unidos. Hirth lança as imprecações de costume. Mas ouve lições sobre democracia e liberdade da parte de Brook. Este recupera o uniforme e mostra ao nazista o valor do punho de um homem livre.


Considerado o momento da realização e do lançamento, Invasão de bárbaros se revela filme de boa atmosfera. A presença dos nazistas — escuramente trajados — perambulando pelo território não conflagrado da América do Norte deve ter provocado impacto nas mentes dos espectadores de então. Para isso contribuiu a montagem dinâmica, a cargo do futuro cineasta David Lean, que não deixou espaço aos tempos mortos entre os momentos de ação.



Philip Armstrong Scott (Leslie Howard) 


Entretanto, visto hoje, mais de meio século após o término da Segunda Guerra Mundial, percebe-se que o filme se ressente da perda de vigor e impacto. Não é culpa da realização. Diretor algum sabe se seu trabalho continuará correspondendo às expectativas com a passagem dos anos. Invasão de bárbaros sofreu a ação do tempo e do desenvolvimento do cinema. Cumpriu seu papel. Sobrevive como digno exemplo de uma produção de aventura voltada à propaganda.


Para finalizar, uma pergunta: o que Philip Armstrong Scott fazia com telas de Matisse e Picasso no meio do mato?






Roteiro: Rodney Ackland, Emeric Pressburger, com base em história de Emeric Pressburger. Música: Michael Vaugham Williams. Direção musical: Muir Mathieson, regendo a London Symphony Orchestra. Direção de fotografia (preto-e-branco): Frederick Young. Montagem: David Lean. Supervisão de som: A. W. Watkins. Gravação de som: C. C. Stevens, Walter Darling. Direção de arte: David Rawnsley. Consultoria canadense: Nugent M. Clougher. Assistente de direção: A. Seabourne. Associado à montagem: Hugh Stewart. Operadores de câmera: Skeets Kelly, Henty Henty-Greer. Gerente de produção: John Sutro. Produção executiva: Harold Boxall. Produção associada: Roland Gillett, George Brown. Cenários de fundo: Osmond Borrowdaile. Associados à direção de arte: Sydney S. Streeter, Frederick Pusey. Tempo de exibição: 117 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1998)