Em 1941 quase toda a Europa — com exceção da Península
Ibérica e da Itália de Mussolini — estava ocupada pelas forças de Hitler. A URSS
ainda confiava na validade do Pacto Molotov-Ribbentrop
de 1939. A Inglaterra, sob intenso bombardeio, resistia praticamente sozinha. A
neutralidade dos Estados Unidos incomodava os combatentes ao nazifascismo. Tio
Sam deveria se juntar aos combalidos aliados. Antes que os japoneses
conseguissem a proeza com o ataque ao Havaí em 7 de dezembro de 1941, o cinema
inglês chamava os estadunidenses à responsabilidade. Invasão de bárbaros (49th
parallel/The invaders, 1941), de Michael Powell, é digno representante
deste período. No filme, um pequeno grupo nazista desembarca no Canadá e ruma
para os Estados Unidos, entrando em confronto com representações concretas e
simbólicas da liberdade individual e dos valores democráticos.
Invasão de bárbaros
49th
parallel/The invaders
Direção:
Michael
Powell
Produção:
Michael
Powell
Ortus
Films
Inglaterra,
Canadá — 1941
Elenco:
Laurence
Olivier, Leslie Howard, Richard George, Eric Portman, Raymond Lovell, Niall MacGinnis, Peter Moore, John Chandos, Basil Appleby, Finlay Currie, Ley On,
Anton Walbrook, Glynis Johns, Charles Victor, Frederick Piper, Tawera Moana,
Eric Clavering, Charles Rolfe, Raymond Massey, Theodore Salt, O. W. Fonger.
Emeric Pressburger, autor do argumento, e o diretor Michael Powell: parceria das mais sólidas e criativas do cinema |
Filmes
estrangeiros no Brasil costumam receber títulos problemáticos. Por diferenças
de língua, sabe-se que nem tudo pode e deve ser traduzido ao pé da letra. Mas,
não importando os nomes originais, os tituladores nacionais chegam às raias do
absurdo mais desvairado com os excessos que cometem. Os exemplos são muitos.
Vejamos dois: Shane (1953), de George Stevens, e A streetcar named desire
(1951), de Elia Kazan, foram convertidos, respectivamente, para Os
brutos também amam e Uma rua chamada pecado. Como
explicar essas aberrações? Parece que o espectador brasileiro é exclusivamente
formado de ignorantes irremediáveis. Por isso, pode ser desrespeitado sem a
menor cerimônia.
O descaso também
prossegue por outras vias. Às vezes o filme é lançado com um nome; anos depois
reaparece com outro, provocando confusões e dissabores entre cinéfilos e
estudiosos acometidos de desconhecimento e/ou falta de atenção. Isso acontece
com a realização de Michael Powell, ora em apreço: conhecida por 49th
Parallel nos Estados Unidos e Canadá e por The invaders na Inglaterra,
essa co-produção anglo-canadense chamou-se Invasão de bárbaros quando passou
nos cinemas brasileiros. Manteve a denominação ao chegar à televisão. Porém, em
vídeo, atende por Paralelo 49, mais sóbrio e respeitoso com uma das formas
originais. Com esse "novo" nome voltou a frequentar a programação da
TV. Aparentemente, o troca-troca parece questão de somenos importância. Mas é
séria para quem gosta de cinema.
O vencedor do
Oscar de Melhor Filme de 1941 foi Rosa da esperança (Mrs. Miniver),
de William Wyler. Nesse ano, também eram candidatos ao prêmio máximo da
Academia de Artes e Ciências Cinematográficas: Em cada coração um pecado
(Kings
row), de Sam Wood; Soberba (The magnificent Ambersons),
de Orson Welles; Abandonados (The pied piper), de Irving Pichel; Ídolo,
amante e herói (The pride of the Yankees), de Sam
Wood; Na noite do passado (Random harvest), de Mervyn LeRoy; ...E
a vida continua (The talk of the town), de George
Stevens; Nossos mortos serão vingados (Wake island), de John
Farrow; A canção da vitória (Yankee Doodle Dandy), de Michael
Curtis; e, Invasão de bárbaros, que acabou conquistando a estatueta para
Melhor História Original.
Emeric
Pressburger escreveu o argumento de Invasão de bárbaros. Roteirizou-o em
parceria com Rodney Ackland. Conta uma história passada nas proximidades do
Paralelo 49, onde o Canadá faz fronteira com os Estados Unidos. "Esta é a
única fronteira não defendida do mundo, selada apenas com um aperto de mão e
assim mantida até hoje", informam os letreiros de abertura do filme.
Financiado pelo
Ministério da Informação da Inglaterra e Governo Canadense, Invasão
de bárbaros não deixa dúvidas sobre a quem se dirige. Apesar dos
letreiros iniciais informarem que o filme é dedicado ao Canadá, aos canadenses,
aos Estados Unidos e ao Reino Unido, o destinatário principal da mensagem
veiculada é mais que claro: os Estados Unidos da América em sua posição de
neutralidade nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial, num momento em que
forças canadenses já lutavam na Europa e o Reino Unido sofria a ação das bombas
alemãs, lançadas a todo instante sobre Londres e outras cidades pela Luftwaffe.
A neutralidade
americana incomodava os europeus, principalmente os britânicos, praticamente
solitários na frente ao agressor nazista. Todo o resto da Europa estava de
joelhos. A URSS ainda confiava na validade do Pacto Molotov-Ribbentrop de 23 de agosto
de 1939. Se o conflito bélico do outro lado do Atlântico não era suficiente
para sensibilizar Tio Sam, as coisas não mudariam com a ameaça nazista
mostrando-se mais próxima? Invasão de bárbaros é um filme de
propaganda que cumpre o propósito de alertar o facilmente impressionável povo
americano sobre a possibilidade de a barbárie hitlerista se instalar, um dia,
próxima de seus lares e liquidar de vez as bases liberais da democracia
americana, firmadas no princípio da livre iniciativa individual.
Os invasores: "A cortina se levanta sobre o Canadá" |
A ação de Invasão
de bárbaros acontece em 1940. Um submarino alemão emerge nas costas do
Canadá e torpedeia um navio mercante desse país. O ataque irrompe próximo à
Baia de Hudson e do Paralelo 49. "A cortina se levanta sobre o
Canadá", diz exultante o Comandante (George) da embarcação agressora.
Depois, meia dúzia de nazistas desembarca no continente em busca de provisões e
combustível. São os tenentes Hirth (Portman) — líder do grupo — e Kuhnecke
(Lovell), mais os soldados Vogel (MacGinnis), Kranz (Moore), Lhurmann (Chandos)
e Jahner (Appleby). Mas o navio abatido teve tempo de enviar mensagem
identificando os atacantes. Logo a força aérea canadense se apresenta. Da
praia, os desembarcados avistam o submarino indo a pique sob intenso
bombardeio. Estão isolados, sem meios imediatos para voltar à Alemanha. Buscando
alternativas, orientam-se via mapas e informações que lhes foram passadas por
um missionário alemão que viveu no Canadá. Rumam para um entreposto comercial
isolado, que abastece caçadores e esquimós.
Powell e
Pressburger não têm complacência com os nazistas, como era de se esperar. Estes
são apresentados como celerados arrogantes e irracionais. Conhecem apenas a
"verdade" do Mein kampf e enquadram a diversidade
da vida sob as capas do militarismo, da hierarquia, do racismo e do mito da
supremacia germânica. Consideram com desdém a liberdade e a verdade dos homens
comuns. Tomam a democracia por ficção decadente. Acreditam piamente que os
homens só se fazem na guerra; por isso o pacifismo é uma degeneração da espécie.
Esse conjunto de características e crenças é acentuado diante da desesperada situação em que o grupo se encontra.
Por onde passam,
os soldados de Hitler estampam a marca da sua estupidez, materializada em
horror, destruição e desprezo a tudo o que julgam inferior. Barbarizam o
entreposto, ferindo o esquimó Nick (On) e matando o caçador Johnny (Olivier).
Apoderam-se de um hidroavião. Na decolagem, um membro do grupo é fatalmente
atingido por um tiro.
O caçador Johnny (Laurence Olivier) e o gerente de um posto comercial (Finlay Currie) imobilizados pelos invasores |
O caçador Johnny (Laurence Olivier) diante do Tenente Hirth (Eric Portman) |
Não conseguem ir
longe. Por falta de combustível o aparelho cai, deixando mais um morto. Os
quatro sobreviventes alcançam uma comunidade alternativa agrícola de
Hutterites, formada por canadenses e imigrantes, dentre os quais muitos alemães.
Não compreendem o modo de vida local, pois ali ordens são desnecessárias e cada
qual faz o que achar conveniente, contanto que o respeito ao bem estar grupal
esteja em primeiro lugar. Os Hutterites servem como metáfora da liberdade
americana. Acolhem com hospitalidade os forasteiros. O Tenente Hirth —
acreditando grosseiramente que todos os alemães se parecem —, tenta converter à
causa nazista os conterrâneos que encontra. Mas seu proselitismo só atrai
repulsa. Vogel, o mais cordato dos fugitivos — que aderiu ao nazismo por falta
de opção —, aprecia o modo de vida hutterite. Após salvar a jovem Anna (Johns) da
fúria dos companheiros, é convidado por Peter (Walbrook), coordenador local, a
permanecer com eles. Entretanto, para Hirth tal ato seria traição. Assim,
ordena a morte do ex-companheiro.
Peter (Anton Walbrook) é a liderança dos Hutterites |
O Tenente Hirth (Eric Portman) faz proselitismo nazista para os pacíficos Hutterites |
Novamente em
fuga, reduzidos a três e cada vez mais desesperados, assaltam um vendedor de
roupas. Já próximos à fronteira com os EUA, tentam se apresentar a uma
representação diplomática alemã, aproveitando a neutralidade americana. Alcançam
uma cidade, junto com as notícias das barbaridades praticadas desde o
desembarque. Não conseguem ocultar as identidades. Hirth e Kuhnecke fogem pelas
montanhas após a prisão do outro companheiro. Deparam-se com o acampamento
de Philip Armstrong Scott (Howard), pesquisador da etnia algonquina.
Scott,
desavisado, oferece-lhes abrigo. É indivíduo contrário à guerra, de gosto
refinado, apreciador de arte e literatura modernas. É o bastante para atrair o imediato
desprezo de Hirth e Kuhnecke, ainda mais ao revelar semelhanças entre nazistas
e algonquinos, povo inferior segundo o ideal germânico de superioridade. Estes,
nas palavras de Scott, treinam desde cedo os meninos para a guerra, pois a consideram
como única ocupação digna do homem. São traiçoeiros, atacam pelas costas, da
forma recomendada por Goebbels, continua o pesquisador. Possuem liderança que
se repete de maneira insistente e exaustiva, à semelhança de Hitler, completa.
À noite, Hirth e
Kuhnecke se revelam. Imobilizam Scott. Danificam-lhe obras de criadores que julgam
degenerados: quadros de Matisse e Picasso e o livro A montanha mágica, de
Thomas Mann. Lançam ao fogo as anotações sobre os Algonquinos, roubam uma arma,
o que mais podem e fogem. Percebendo a estranha movimentação, guias e
auxiliares de Scott despertam. Logo estão à caça dos fugitivos. Kuhnecke se
desentende com Hirth, deixando-o momentaneamente fora de combate. Mas é
alcançado pelos perseguidores. É hora do intelectual Scott revelar o quanto
pode um homem livre. Encurrala Kuhnecke numa caverna e lhe desfere quatro
decisivos golpes, por conta de Thomas Mann, Matisse, Picasso e por ele mesmo.
Por fim, observa interrogativamente: "Um homem armado contra um democrata
decadente e desarmado! Será que Goebbels explicaria isso?".
Philip Armstrong Scott (Leslie Howard) dominado pelo Tenente Hirth (Eric Portman) |
Resta Hirth. Este
alcança um trem de carga, ocultando-se num vagão. Na composição embarca Andy
Brook (Massey), fazendeiro canadense e voluntário alistado para a guerra. É
atacado pelo alemão, que lhe toma o uniforme. O trem chega à fronteira. Os
agentes da aduana (Salt e Fonger) fiscalizam o vagão. O disfarce do nazista não
engana. Brook, com os sentidos recobrados, convence os fiscais a ordenar marcha
a ré ao maquinista. Motivo: carga não declarada — o alemão — não pode entrar nos
Estados Unidos. Hirth lança as imprecações de costume. Mas ouve lições sobre
democracia e liberdade da parte de Brook. Este recupera o uniforme e mostra ao
nazista o valor do punho de um homem livre.
Considerado o
momento da realização e do lançamento, Invasão de bárbaros se revela filme
de boa atmosfera. A presença dos nazistas — escuramente trajados — perambulando
pelo território não conflagrado da América do Norte deve ter provocado impacto
nas mentes dos espectadores de então. Para isso contribuiu a montagem dinâmica,
a cargo do futuro cineasta David Lean, que não deixou espaço aos tempos mortos
entre os momentos de ação.
Philip Armstrong Scott (Leslie Howard) |
Entretanto, visto
hoje, mais de meio século após o término da Segunda Guerra Mundial, percebe-se
que o filme se ressente da perda de vigor e impacto. Não é culpa da realização.
Diretor algum sabe se seu trabalho continuará correspondendo às expectativas
com a passagem dos anos. Invasão de bárbaros sofreu a ação do
tempo e do desenvolvimento do cinema. Cumpriu seu papel. Sobrevive como digno
exemplo de uma produção de aventura voltada à propaganda.
Para finalizar,
uma pergunta: o que Philip Armstrong Scott fazia com telas de Matisse e Picasso
no meio do mato?
Roteiro: Rodney Ackland, Emeric Pressburger, com base em
história de Emeric Pressburger. Música: Michael Vaugham
Williams. Direção musical: Muir
Mathieson, regendo a London Symphony Orchestra. Direção de fotografia (preto-e-branco): Frederick Young. Montagem: David Lean. Supervisão
de som: A. W. Watkins. Gravação de
som: C. C. Stevens, Walter Darling. Direção
de arte: David Rawnsley. Consultoria
canadense: Nugent M. Clougher. Assistente
de direção: A. Seabourne. Associado
à montagem: Hugh Stewart. Operadores
de câmera: Skeets Kelly, Henty Henty-Greer. Gerente de produção: John Sutro. Produção executiva: Harold Boxall. Produção associada: Roland Gillett, George Brown. Cenários de fundo: Osmond Borrowdaile. Associados à direção de arte: Sydney S.
Streeter, Frederick Pusey. Tempo de
exibição: 117 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1998)
O engraçado é que li certa vez falarem mal deste filme, e por isso fui conferir e depois disso não acredito mais em críticas negativas. Este é um gênero de filme que eu adoro. Michael Powell fez milhares de filmes que eu coleciono, Amo filmes britânicos que retratam a segunda guerra. Outro grande filme que vi dele com o mesmo teor é "E Um dos Nossos Aviões Não Regressou". Tem outro filme dele que queria ter acesso para ver "A Batalha do Rio da Prata", deve ser tão bom quanto estes dois. :)
ResponderExcluirO cineasta Michael Powell e seu costumeiro parceiro Emeric Pressburger passaram por um processo de reavaliação positiva nos últimos anos, siby13. Talvez você possa conseguir "A batalha do Rio da Prata" por meio de sites de downloads. Só fui conhecê-lo há pouco tempo, graças a uma mostra que o Centro Cultural do Banco do Brasil organizou em homenagem à dupla. Na programação também constava "E um dos nossos aviões não regressou". Você deve conhecer "Narciso negro", não?
ExcluirAbraços.
Hola querido Eugenio, me quedo sin palabras ante la precisión de tu reseña y como el filme es vinculado con el período nazista, vemos como el cine es mucho más que entretenimiento, está cargado de mensajes subliminales políticos, sociales y este filme es una prueba de ello...Estupenda reseña, ya sabes que mi segunda parte favorita son las fotografías, gracias por compartirnos un trabajo tan completo, besitos...miles.
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