Nem sempre é prudente o retorno aos filmes marcantes da infância,
ainda mais quando nos tornamos adultos. A experiência costuma ser
decepcionante. Que o diga, no meu caso, a revisão de Marcelino pão e vinho (Marcelino pan y vino, 1955), de Ladislao Vajda, em 1977. Foi o primeiro
que vi, em 1958, no colo de minha mãe, ao contar dois anos bem vividos. Arenas
sangrentas (The brave one, 1956), de Irving Rapper, é outro clássico dos
meus tempos de garoto. Também é o primeiro filme ao qual enderecei uma apreciação, escrita em 1974, revisada em 1976. Foram três as vezes que o vi,
desde 1966, quando tinha 10 anos. Emocionou-me o drama do menino Leonardo
Miguel Rosillo (Michel Rey) para salvar da morte o seu animal de estimação no cenário
de um México frustrado em suas esperanças revolucionárias. É uma produção
simples, narrada com eficiência, que suportou razoavelmente bem a passagem dos
anos. Além do mais, ganhou fama devido aos seus bastidores, que terminaram expondo
as entranhas e consequências do macarthismo.
Arenas sangrentas
The brave one
Direção:
Irving
Rapper
Produção:
Maurice
King, Frank King
King Brothers
EUA —1956
Elenco:
Michel Rey, Elsa Cárdenas, Fermín
Rivera, Carlos Navarro, Rodolfo Hoyos Jr., Joi Lansing, Jorge Treviño, Carlos
Fernández e os não creditados Eduardo Alcaraz, Rafael Alcayde, Manuel de la Vega, Miguel Ángel Ferriz, Pascual Garcia Peña, Beatriz Ramos, Manuel Sánchez Navarro, Manuel Vergara 'Manver'.
O diretor Irving Rapper - à esquerda - na companhia dos atores Bette Davis e James Stephenson Bastidores de Gloriosa vitória (Shining victory, 1941) |
O macarthismo fez
a fama de Arenas sangrentas. A “caça às bruxas” terminara, mas não os
efeitos da famigerada “lista negra”. Era a noite de 27 de março de 1957,
entrega do Oscar aos melhores do ano anterior. O filme de Irving Rapper ganha o
prêmio de Melhor Roteiro. O autor do argumento, o desconhecido Robert Rich, não
está presente. É representado por Jesse Laski Jr. Rich não poderia comparecer mesmo.
Oficialmente, não existia. Descobriu-se, bem mais tarde, que se tratava de
alcunha do roteirista Dalton Trumbo, banido das atividades cinematográficas e
da vida pública por se recusar a colaborar com o Comitê de Investigação de
Atividades Antiamericanas do Senado.
A história é
conhecida. Trumbo, incluído entre os "Dez de Hollywood”[1],
foi um dos primeiros nomes a figurar na “lista negra”. A conservadora Academia
de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, responsável pelo Oscar, não
perdoou o atrevimento. Em seus arquivos não consta o nome do premiado, apenas
do filme vencedor na categoria. Trumbo foi redimido somente em 1960, graças à coragem
do ator Kirk Douglas. Produtor de Spartacus (Spartacus, 1960), de
Stanley Kubrick, Douglas desmoralizou a “lista negra” ao creditá-lo como roteirista
do filme.
Dalton Trumbo, ao centro, recusando-se a colaborar com o Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas |
Não fosse a
celeuma causada pela revelação da verdadeira identidade de Robert Rich, ninguém
mais se lembraria de Arenas sangrentas. A história se passa
no México. O menino Leonardo Miguel Rosillo (Rey) é o personagem principal.
Mora num casebre na companhia do pai e da irmã. A família é agregada à fazenda
do despótico Varga Videgaray. Don Alejandro (Navarro), filho do patrão,
presenteou-a com Chaba, vaca em idade avançada. Ela morre ao parir Gitano. Este,
criado com afeto por Leonardo, deflagra os conflitos da história. Pertence a
uma raça de touros de arena. Reclamado como propriedade da fazenda, é arrolado
entre os bens de Don Alejandro — morto em acidente automobilístico — e leiloado.
Leonardo perdeu a carta que confirmava a posse de Gitano pela sua família. O
destino do animal será a grande plaza de
toros da capital, onde enfrentará o famoso matador Fermín Rivera (o
próprio).
Leonardo Miguel Rosillo (Michel Rey) |
Leonardo Miguel Rosillo (Michel Rey) e o pai Rafael Rosillo (Rodolfo Hoyos Jr.) |
Leonardo move
céus e terra para salvar Gitano. A ponto de embarcar clandestino no caminhão
que o transporta à arena. Na Cidade do México é instruído a procurar o
Presidente da República. Com dificuldade penetra no Palácio e sai de lá com uma
carta do Chefe da Nação, endereçada ao patrocinador do espetáculo, com pedido
de indulto para o touro. Mas chega tarde à arena. A função começou e Gitano
enfrenta Rivera. Matador e animal levam os espectadores ao delírio. Nos
instantes finais, o público, de pé, grita por indulto. Salvo, Gitano é
conduzido por Leonardo para fora da arena, sob uma chuva de aplausos.
Leonardo Miguel Rosillo (Michel Rey) na cidade do México e na solidão da plaza |
A maior parte da
história transcorre na fazenda do senhor Varga. Aí o espectador acompanha o
desenvolvimento da amizade do menino por Gitano. Parte do tempo de Leonardo é
dedicado ao aprendizado na escola local. É visto principalmente nas aulas de
história do México. É com base nos feitos de Benito Juarez — um dos mais populares
heróis do longo processo revolucionário mexicano —, que encontra coragem para
se avistar com o Presidente.
Leonardo Miguel Rosillo (Michel Rey) e Gitano |
A narração,
simples direta, chega aos limites do simplório. Mas é marcada pela eficiência.
O senão é o excesso de sentimentalismo em decorrência da exploração incômoda de
tanta choradeira e sofrimento. Porém, em se tratando de uma produção americana,
não carnavaliza as imagens do México de tanta pobreza e eventos trágicos. A
produção é honesta com o país. A escolha do elenco, composto praticamente por
nomes mexicanos, é disso confirmação. Na passagem em que Gitano é posto à
prova, Manoel (Fernández) — noivo de Maria (Cárdenas), irmã de Leonardo — faz
uma afirmação que não é gratuita: “Cicatrizes são a glória do México”.
Trata-se, evidentemente, de uma contribuição do presente ao original de Dalton
Trumbo. A frase remete mais aos aspectos sangrentos do processo histórico
mexicano que aos ferimentos expostos na arena. Não para menos se fala tanto no
revolucionário Benito Juarez numa escola de camponeses. O filme mostra pouco as
condições de vida da família Rosillo. Mesmo assim, principalmente quando
relaciona esse núcleo com o despotismo do patrão, traz de volta, ainda que
timidamente, as causas da Revolução. Parece dizer que Emiliano Zapata, Pancho
Villa e o próprio Benito Juarez, apesar de mortos, ainda têm um trabalho a
completar com o povo mexicano.
Leonardo Miguel Rosillo (Michel Rey) entre o público presente à plaza |
A ressaltar a
fotografia de cores quentes de Jack Cardiff e a música de Victor Young. Também merece
atenção a sequência que exibe Leonardo no vazio grandioso da arena, mirando do
alto das arquibancadas o círculo amarelado da encenação da tourada.
Direção de fotografia (Cinemascope, Technicolor): Jack Cardiff. Roteiro:
Harry Franklin, Merrill G. White, com base em original de Robert Richi (Dalton
Trumbo). Música: Victor Young. Supervisão de montagem: Merrill G.
White. Supervisão de produção e
assistente de direção: Clarence Eurist. Assistente para os produtores: Reg O’Neill. Edição de som: George Reid (não creditado). Edição musical: Audrey Granville. Orquestração: Sidney Cutner (não
creditado). Direção de arte: Ramon
Rodriguez. Continuidade: Mario
Cisneros. Assistente do supervisor de
produção: Barry Crane. Supervisão
técnica: Nacho Trevino. Efeitos
fotográficos: Jack Rabin, Louis Dewitt. Tempo de exibição: 100 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1974; revisado e ampliado
em 1976)
[1] São os diretores Herbert Biberman e Edward
Dmytryk, o produtor Adrian Scott e os roteiristas Lester Cole, Albert Maltz,
Samuel Ornitz, Dalton Trumbo, Ring Lardner Jr., John Howard Lawson e Alvah
Bessie. Recusaram-se a colaborar com o Comitê de Investigação de Atividades Antiamericanas e,
principalmente, a denunciar colegas filiados ao Partido Comunista ou
simpatizantes da agremiação.
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