Vigoroso
na forma e no conteúdo, Sangue e areia (Blood and sand, 1941), de
Rouben Mamoulian, é a segunda transposição para o cinema da novela Sangre
y arena, de Vicente Blasco Ibañez. A primeira, de 1921, dirigida por
Fred Niblo e estrelada por Rodolfo Valentino, adaptou superficialmente o
original e passou ao largo da problemática social privilegiada pelo autor. Esta
questão é básica na realização de Mamoulian. O toureiro, centralizado no
personagem Juan Gallardo (Tyrone Power), é percebido como um deus de pés de
barro, pronto a ser imediatamente sacrificado pela insaciável volúpia das
massas e pelo oportunismo de jornalistas especializados em criar e destruir
mitos. Oriundo dos setores empobrecidos, o matador
conhece a glória quase sempre efêmera antes de perecer vitimado pelas próprias
circunstâncias que o geraram. Dele não sobrarão vestígios. A areia sempre
revolvida do piso das plazas não
preserva pegadas, sequer o vermelho escuro do sangue derramado. A apreciação é de 1976.
Sangue e areia
Blood and sand
Direção:
Rouben
Mamoulian
Produção:
Darryl F.
Zanuck, Robert Kane
20th. Century-Fox
EUA — 1941
Elenco:
Tyrone
Power, Linda Darnell, Rita Hayworth, John Carradine, Lynn Bari, Alla Nazimova,
Anthony Quinn, J. Carrol Naish, Laird Cregar, William Montagu, Vincente Gómez,
George Reeves, Pedro de Córdoba, Fortunio Bonanova, Victor Kilian, Michael
Morris, Charles Stevens, Cora Sue Collins, Russel Hicks, Maurice Cass, Rex
Downing, John Wallace, Jacqueline Dalya, Cullen Johnson, Larry Harris, Ted
Frye, Schuyler Standish, Armillita, Monty Banks, Harry Burns, Cecilia Callejo,
Lynne Carver, Maurice Cass, Paul Ellis, Esther Estrella, Mariquita Flores,
Rosita Granada, Cullen Johnson, Kay Linaker, Fred Malatesta, Francis McDonald,
Francisco Moreno, Alberto Morin, Gracilla Pirraga, Ann E. Todd.
O diretor Rouben Mamoulian |
Os toureiros são
estrelas passageiras, de brilho fugaz, que riscam o céu da Espanha. Semelhantes
a novos gladiadores, fazem a alegria de uma plebe faminta e ignorante, tão
carente de pão e circo como a similar da Roma imperial.
Para o jornalista Natalio Curro (Cregar) — figura emblemática de Sangue e areia —, o toureiro é um "cometa".
Faz a comparação em artigo que enaltece o surgimento de Manolo de Palma
(Quinn), novo valor das arenas, por volta do último quarto de hora do filme. Manolo
pergunta ao cronista o significado do termo. Não tem tempo para ouvir a
resposta. Mas parece saber que precisa correr, que conhecerá a glória por tempo
muito breve. Logo, outro lhe tomará o lugar; outro cometa, segundo Curro.
O jornalista Natalio Curro (Laird Cregar): construtor e destruidor de mitos |
O toureiro emerge
dos setores populares e empobrecidos da Espanha. Sobe na escala social, mas
permanece na ignorância. Coleciona prêmios, recebe aplausos, acumula riquezas,
mas não consegue capitalizar sobre os louros das vitórias. Logo estará tão
pobre como no inicio da carreira. Nacional (Carradine), integrante da equipe de
Juan Gallardo (Power; Downing quando criança), é o único a manifestar consciência da fragilidade do
fugaz herói das plazas. Denuncia o
analfabetismo a que estão relegados, juntamente com as massas que os aplaudem.
Ao morrer, vitimado por um touro, lamenta o fato de nunca ter aprendido a ler e a escrever. Sempre viveu na mais completa escuridão.
Nacional sabe: é
impossível construir sobre areia. O material do centro das plazas, sempre revolvido de função em função, é frágil, incapaz de
registrar por muito tempo as marcas dos pés que aí pisaram. Absorve e seca
rapidamente o sangue que jorra das feridas que marcam os corpos dos toureiros.
A areia serve de metáfora às vidas esfareladas de Nacional, Gallardo, Manolo,
Garabato (Naish) etc. Estes, numa hora conhecem a mais completa evidência.
Depois estarão condenados à mendicância e ao esquecimento. Suas imagens, como
se feitas de areia, serão levadas pelo vento. Foi assim com Gallardo, pai do jovem
Juan. Brilhou de forma intensa e rápida. Não soube preservar a fortuna
recebida. Morreu na arena e deixou a família na miséria. Garabato termina
esquecido e na sarjeta. Será contratado como serviçal de Juan no breve período
de glória deste. Manolo será o próximo a reinar nas plazas. E assim se vai, de cometa em cometa.
A novela Sangre
y arena, de Vicente Blasco Ibañez, enfoca criticamente o papel das
touradas e dos toureiros na sociedade espanhola. Localiza a ação no final do século
19, época em que o matador experimentava a contradição entre a visão romântica
de sua atividade e a modernização do país que ensaiava passos na trilha da
valorização profissional segundo o espírito do capitalismo. Portanto, é num
momento de transição que se passa a história. Esse dado é relevante, mas pouco
importante para o filme que Mamoulian realizou com tintas trágicas. Aqui, o que
mais conta é o fascínio que a profissão de matador exerce entre os pobres,
principalmente rapazes e garotos. Para eles, tourear é praticamente a única
possibilidade de ascensão social, acrescida do reconhecimento público angariado
junto a amplas camadas da população.
Tyrone Power interpreta Juan Gallardo, o protagonista de Sangue e areia |
Da pena de Ibañez
surge o simplório Juan Gallardo. É uma força da natureza. Guia-se por rompantes
e pela intuição, desprovido de qualquer tino profissional e empresarial. Vive
apenas o momento imediato. O personagem foi visto nas telas pela primeira vez
em 1922: Sangue e areia (Blood and sand) assinado por Fred
Niblo e estrelado por Rodolfo Valentino.
O Sangue
e areia de 1941 é vigoroso na forma e no conteúdo. Avança por questões
complexas que a rapidez da versão silenciosa não permitiu abordar. Agora, o
roteiro de Jo Swerling dá vazão a toda a atmosfera trágica do original de
Ibañez, impregnado de fatalismo e religiosidade tipicamente espanholas. Tudo
isso é realçado pela fotografia (premiada com o Oscar) de cores fortes e
carregadas — com predominância do negro, vermelho,
roxo e azul — a cargo da dupla Ernest Palmer e Ray
Rennaham, bem como pela cenografia assumidamente barroca que explora motivos de
pintores como Goya e El Greco. Digno de créditos é também o trabalho musical de
Alfred Newman. Apesar de pouco original, conferiu a devida carga dramática a
temas reconhecidamente espanhóis, dentre os quais La Virgen de Macarena,
melodia alusiva à padroeira dos toureiros. Seus acordes vibrantes comentam o
filme desde a apresentação dos créditos de abertura.
Sangue e areia acompanha a
trajetória do pobre Juan Gallardo, órfão do toureiro de mesmo nome. Nascido em
Sevilha, deixou-se fascinar, desde a infância, por assuntos ligados à plaza. Idolatra o pai — para ele, o
homem mais corajoso das arenas. Está sempre pronto para defendê-lo de
detratores, como Curro, em cuja cabeça desferiu uma garrafada devido a um
comentário ofensivo. Juan é arrogante. Vive à noite. Perambula por tavernas,
atento às conversas dos matadores, ou invade currais alheios para praticar a
tauromaquia. É apaixonado por Carmem Espinosa (Darnell; Todd quando criança). Na companhia dos
amigos Manolo, Sebastian, Pablo e Gonzales abandona a família e Sevilha. Parte para
Madri em busca de melhores oportunidades. Antes da partida, Juan e Manolo
brigam pelo direito de cavalgar a única montaria do grupo. O primeiro vence a
disputa. Mas esta sequência revela mais que um simples entrevero. Oculta um
comentário cruel: os amigos de Juan também querem ser toureiros. Muitos se
candidatam, mas nem todos serão agraciados com talento e sorte. A plaza reconhece, num só tempo, o brilho
de poucas estrelas. Juan será entronizado primeiro; depois dele, Manolo. Os
outros terão que se contentar nos papéis de membros secundários das equipes.
Dez anos depois
os companheiros retornam a Sevilha. Juan traz presentes para familiares e
amigos. É estrela em ascensão, apesar de violentamente criticado em artigo de
Curro. Mas continua analfabeto, ingênuo, impulsivo e fácil de ser enganado.
Sabe da matéria ao perceber o próprio retrato publicado pelo jornal. O passageiro do trem que
lhe lê a notícia, sem coragem de dizer a verdade, transforma o ataque impresso em
elogio. Mais tarde, o orgulho de Juan cai por terra ao reencontrar Carmem. Ela recompõe
a fidelidade ao artigo. Esses dois momentos comentam a percepção limitada do
toureiro — impossibilitado de conhecer até mesmo aspectos tornados públicos de
sua vida e de seu caráter. Não obstante, Juan é a estrela da vez. Logo estará
no auge, casado com Carmem e habitando palacete no centro de Sevilha, junto com
a mãe, Senhora Angústias (Nazimova), a irmã Encarnación (Bari) e o marido
desta, Antônio Lopez (Montagu). Encarnación e Antônio fazem parte da corte de
parasitas que circula em torno de Juan. Sua casa está sempre cheia de
jornalistas, apaniguados, afilhados, compadres, parentes, oportunistas,
interesseiros e bajuladores que só desejam sugá-lo. É o preço da fama. Mas
Gallardo sente o maior prazer em ser o centro das atenções. Será tarde quando
se arrepender.
O amor de infância de Juan Gallardo (Tyrone Power): Carmen Espinosa (Linda Darnell) |
O processo de
decadência começa quando Juan se deixa seduzir pela rica, fatal, fútil e
caprichosa Dona Sol, interpretada pela exuberante Rita Hayworth[1].
A atriz antecipa o sorriso e os cabelos da personagem-título de Gilda
(Gilda,
1946), de Charles Vidor. Por ela Juan esquece Carmem, que mais tarde o
abandona. Deixa também de administrar a carreira. De tão simplório não percebe que é apenas um brinquedo para a amante entediada. Ela o descarta quando o jogo perde
a graça. A distância social entre Juan e Dona Sol é cruelmente explicitada na
sequência do banquete: o toureiro simplório e bronco se revela por completo
diante da aristocracia de gostos e modos refinados.
Juan Gallardo (Tyrone Power) nas mãos da caprichosa Dona Sol (Rita Hayworth) |
De outro lado, o
flanco que Juan deixou aberto na arena começa a ser ocupado por Manolo de
Palma. O personagem de Power experimenta o processo de queda, do qual não terá
volta. Angustiado pelos revezes afetivos e financeiros, descuida-se durante uma
função e provoca a morte de Nacional. Curro, que tantas carreiras impulsionou —
e destruiu — em seus artigos, antecipa cruelmente o trágico canto de
cisne de Juan. O jornalista é a síntese esclarecida da massa selvagem, faminta,
ignara e agressiva. Interessa-se apenas pelo brilho e continuidade do espetáculo,
nada mais.
Juan chega ao fim,
abandonado por todos, exceto Carmem — que volta por
amor e para lhe dar apoio — e pela Senhora
Angustias. Esta lhe arma o espírito para receber o pior que, sabe, virá muito em breve. Passou por
processo semelhante quando perdeu o marido. Conforme o previsto, Juan é
mortalmente ferido. Ironicamente, instantes antes, reconheceu efêmero retorno
aos dias de glória. O público, que o tratara de forma tão feroz e desapiedada,
aclamou-o como nunca. Curro se viu obrigado a fazer coro ao apelo da massa.
Juan morre na capela da plaza,
amparado por Carmem. Lá fora, o público volúvel como areia já o esqueceu.
Extasiado, aplaude a atuação de Manolo de Palma, saudado por Curro como “O
primeiro homem do mundo”. A câmera enquadra o matador em sua glória. Depois,
afasta-se para focalizar o que ninguém quer perceber: a areia ainda tingida
pelo sangue fresco de Juan.
Juan Gallardo (Tyrone Power) no leito de morte de National (John Carradine) |
Sangue e areia é brilhante, um
drama vigoroso como raramente se viu. Pena ter sido tão mal recebido quando
lançado. Muitos não compreenderam o significado e o contexto da história. Simplesmente
o classificaram, pejorativamente, de dramalhão ou novelão. Outros lamentaram a
ausência de romantismo no personagem de Juan, quando ele, de fato, não deveria
ostentar essa característica que o esvaziaria por completo. Tyrone Power, ator
de recursos limitados, não decepciona. Brilhara um ano antes sob as ordens de
Mamoulian numa das mais gostosas películas de aventura, o hoje clássico A
marca do zorro (The mark of Zorro).
Dona Sol (Rita Hayworth) na manipulação de Juan Gallardo (Tyrone Power) |
Juan Gallardo (Tyrone Power), um joguete das circunstâncias impossíveis de controlar |
Mas as maiores
polêmicas em torno de Sangue e areia foram provocadas pelo
Technicolor, que não teve pudor em abusar de cores fortes e carregadas. Para os
mais críticos, o recurso significou uma clara adesão ao mau gosto. Outros, mais
acertadamente, reconheceram na opção um apoio à dramaticidade exigida pelo
filme. Cabe ressaltar que o Technicolor não era estranho a Mamoulian. O
cineasta dirigiu, em 1935, o primeiro filme a empregar o sistema: Vaidade
e beleza (Becky sharp).
Roteiro: Jo Swerling, baseado na novela Sangre
y arena, de Vicente Blasco Ibañez. Produtor
associado: Robert T. Kane. Direção
de fotografia (Technicolor): Ernest Palmer, Ray Rennaham. Direção de Technicolor: Natalie Kalmus,
Morgan Padelford. Música: Alfred
Newman. Guitarras: Vicent Gomez. Direção de arte: Richard Doy, Joseph C.
Wright. Decoração: Thomas Little. Coreografia: Hermes Pan. Cenas de multidão e consultoria técnica:
Budd Boetticher. Montagem: Robert
Bischoff. Costumes: Travis Banton. Jóias: Flaty. Som: W. D. Flick, Roger Herman. Ilustrações: Carlos Ruano Lopis. Tempo de exibição: 123 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1976)
Confesso que não li este romance de Blasco Ibañez (deste pacifista, li somente "Os quatro cavaleiros do Apocalipse", também adaptado ao cinema, com Valentino, numa primeira versão, e Glenn Ford, na segunda), mas vi as duas adaptações. Particularmente, gostei muito da versão com Valentino, a despeito de a temática social ter sido ali negligenciada. Isto porque, em compensação, a psicologia algo ambígua de Gallardo fica mais evidente, bem como a própria mensagem acerca da atratividade do sangue para a grande massa, em que acabam aparecendo como vítimas tanto o "matador" quanto o touro, e do negócio altamente lucrativo representado pelo capitalizar dessas tendências algo sádicas. Isto não quer dizer que não tenha gostado muito da versão de Mamoulian e que não subscreva, em relação a ela, os teus comentários.
ResponderExcluirCaro Ricardo Antônio Lucas Camargo,
ExcluirGrato pelo comentário. Acabou me chamando a atenção para aspectos aos quais não atinei na versão de "Sangue e areia" estrelada por Valentino. Incluirei o filme na lista das próximas revisões.
Um abraço.
interesante su blog aunque no hablo portugués.lo invito a leer el mio
ResponderExcluirhttp://mobileswebtendencies.blogspot.com/
Muchas gracias por la visita, por el elogio y por la recomendación, Luiz Carlos. Reciba mi abrazo brasileño. Creo que el portugués no es una lengua así tan difícil para los espanhois. Ya soy su seguidor y etive en visita a su blog.
ExcluirSaludos y abrazos.
Filme clássico ,mas uma história atual.Ainda temos em vários países essa pseudo glória .
ResponderExcluirNo Brasil temos casos semelhante com esportes ,mas não tão sanguíneo como as touradas .
Assisti várias vezes ,por ser fã de Rita .
Seu comentário é impecável ,mais uma vez .
Obrigado