domingo, 16 de dezembro de 2012

O WESTERN INSPIRADO EM DIVERSAS FONTES DA LITERATURA HEROICA

Esqueça o pavoroso título Os brutos também amam, dado pelo distribuidor brasileiro. Mas fique com Shane. É um dos mais belos westerns; um dos mais míticos também. Se você o viu quando era criança, nos anos 50 ou 60, entenderá as razões da atração que o filme de George Stevens exercia sobre a garotada. Nós, meninos de então, éramos fascinados como Joey. E queríamos que nossos pais fossem como Shane. No fim, crescíamos assistindo a partida do mito que embalava nossas ilusões infantis. E aprendíamos a assobiar ouvindo The call of the far-away hills.









Os brutos também amam
Shane

Direção:
George Stevens
Produção:
George Stevens, Ivan Moffat
Paramount
EUA — 1953
Elenco:
Alan Ladd, Jean Arthur, Van Heflin, Brandon De Wilde, Jack Palance, Ben Johnson, Edgar Buchanan, Emile Meyer, Elisha Cook Jr., Douglas Spencer, John Dierkes, Ellen Corby, Paul McVey, John Miller, Edith Evanson, Leonard Strong, Ray Spiker, Janice Carroll, Martin Mason, Nancy Kulp, Helen Brown, Howard J. Negley, Beverly Washburn, Charles Quirk, George J. Lewis, Chester W. Hannan, Bill Cartledge, Steve Raines, Jack Sterling, Henry Wills, Rex Moore, Ewing Brown.



O diretor George Stevens




Pobre Shane (Ladd)! Cavalgou rumo ao norte, fugindo de seu passado e de sua sina! Cavaleiro errante, poderá, quem sabe, encontrar lugar para se enraizar e escapar das trampas que o destino trágico armou à sua revelia. Porém, convenhamos: realizar tal missão seria bem mais fácil que esta, não prevista no roteiro de A. B. Guthrie Jr.: Shane teria que cavalgar muito mais para se livrar da maldição do nefasto título dado pelo distribuidor brasileiro, que o estigmatizou para sempre. É lamentável! Ainda hoje Shane é reconhecido entre nós pelo bestial e piegas Os brutos também amam, quando de bruto nada tem.


Desprestigiado no lançamento, Shane ampliou seu valor com a passagem do tempo. É o mais mítico dos westerns; sublimação de todas as referências e variações do gênero do qual se tornou síntese e quintessência. Foi realizado por um cineasta pouco identificado com a horse opera e os enquadramentos em meio aos grandes espaços. Em algumas das atuais listagens dos melhores westerns, Shane ocupa a primeira posição, apesar de Rastros de ódio (The searchers, 1956), O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valance, 1962), Paixão dos fortes (My darling Clementine, 1946) e do paradigmático No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), todos dirigidos por John Ford e, definitivamente, os meus preferidos. Mas o filme de Stevens faz jus ao prestígio granjeado.


Como cavaleiro das canções de gesta em busca do Graal, Shane, em roupas marrons de pele de alce, desce as Grand Tetons, no Wyoming, ao som de The call of the far-away hills — uma das mais inspiradas baladas do western. Chega ao vale onde Joe Starret (Heflin) cultiva um rancho ao lado da esposa Marian (Arthur) e do filho menor Joey (Wilde). O menino — sob cujo olhar Stevens constrói a narrativa e delineia o protagonista — será o primeiro a vê-lo. Solitário, também, testemunhará a partida do herói nos momentos finais.


Joey (Brandon De Wilde)

Shane (Alan Ladd)


Shane é um cavaleiro sem passado. Informações a respeito são omitidas pelo personagem e roteiro. Mas a aproximação furtiva de Joey às suas costas, com o rifle danificado transformado em brinquedo, mostra o quanto é arisco e rápido no saque. Essa informação basta para o espectador concluir sobre a vida pregressa de Shane. Foi, provavelmente, um pistoleiro. Usou as armas para ganhar a vida. Agora, foge do próprio passado, numa jornada por montanhas e planícies, sempre para o norte, buscando onde não o conheçam para repousar em paz.


Taciturno, ascético e solitário, Shane é também justo, corajoso e leal. O rosto pouco expressivo de Ladd contribui para transformar essa mistura de Orlando e Lancelot, moldada pelas mais diversas fontes da literatura heroica, no mais enigmático dos cowboys. Seu senso de justiça é imediatamente posto à prova. Ryker (Meyer)  todo poderoso barão de gado local, acompanhado de seus homens  pressiona Starret a se desfazer de suas terras. A presença de Shane o afugenta. Agradecido, o rancheiro lhe oferece pouso e trabalho. O cowboy aceita. Nômade, tentará se estabelecer. Trocará a roupa caqui de aventureiro errante pelos trajes azuis característicos do agricultor. É também a oportunidade de não mais empunhar armas. Shane vê na oferta de Starret a oportunidade de recomeçar a vida. Mas as circunstâncias o obrigarão a ser, mais uma vez, o personagem que preferia esquecer.



Joe Starret (Van Heflin)


Starret é uma liderança informal dos rancheiros do vale. Tenta convencê-los a unir forças contra as pretensões monopolistas de Ryker. Este quer a propriedade de todas as terras para transformá-las em pastagens. Mas frente a homens poderosamente armados, dispostos a matar, os agricultores nada podem. A sobrevivência da comunidade ou a semente da civilização é posta na dependência das armas de Shane. O cavaleiro andante dos montes e planícies será obrigado a dar vazão à sua sina, mesmo sabendo que tal opção custará o sacrifício da vida estável que, mesmo brevemente, almejara construir. Um ás do gatilho não tem sossego e paradeiro. Há algo de trágico nas escolhas oferecidas ao personagem.


Marian (Jean Arthur) e Shane (Alan Ladd): "Todos estaríamos em melhor condição se não houvesse arma alguma neste vale, inclusive a sua"

  
A comunidade ordeira e pacífica que o protagonista ajudará a consolidar não tem lugar para homens como ele. Mesmo que não queira, Shane é símbolo do poder individual arbitrário e armado  apesar de seu alto senso de justiça. Essa contradição contribui para a percepção de outras tantas, que apoiam a estrutura narrativa do filme. 


O individualismo antissocial de Ryker se contrapõe ao desejo de estabilidade, comunidade, terra e família de Starret e dos rancheiros. Mas o fim das pretensões monopolizadoras e violentas do barão do gado decretará também, simbólica e concretamente, o desaparecimento do próprio Shane e de seus significados. É o que se depreende deste curto diálogo: "O seu tempo está chegando ao fim", diz a Ryker o personagem representado por Alan Ladd. O outro retruca: "E o seu tempo pistoleiro?" Consciente do lugar que lhe reserva a chegada da civilização ao vale, com seus aparatos firmados na objetividade e impessoalidade da lei e do direito, Shane encerra a conversa com: "A diferença, Ryker, é que eu sei disso".


Outras oposições fazem a separação estrita entre "Bem" e "Mal", "Força" e "Fragilidade", "Pradaria" e "Civilização". Mas nenhuma é tão forte como a que opõe o "Dentro" e o "Fora". É nessa dicotomia que Shane se reconhece sem lugar. Apesar de estar "dentro", morando com os Starret e unido aos rancheiros em sua luta, sabe que esse não é o seu mundo. Sente-se deslocado nesse meio. Toma partido ao lado da comunidade, mas não se identifica com ela. Na festa, na casa de um dos rancheiros, enquanto todos estão juntos, ele está apartado. No fundo está "fora", apesar da ambiguidade da situação.



Shane (Alan Ladd) deslocado em meio à comunidade de rancheiros


Marian é a única a compreender a condição de Shane. Entre ambos logo se estabelece uma relação surda, abafada, de paixão impossível de ser correspondida. Apenas a troca de olhares revela a cumplicidade testemunhada por Joey. De certa maneira, por motivos diferentes, todos entre os Starret são atraídos por Shane. Mais um motivo para partir, pois ele não poderá satisfazer a todos os seus desejos.



Shane (Alan Ladd) e Marian (Jean Arthur)


Marian sabe: o cavaleiro que idolatra com o filho partirá um dia. Por isso, prepara-o para a eventualidade. Pede ao garoto para não ficar muito amigo de Shane. Assim, não sofrerá tanto com o desenlace. Ela própria adianta essa possibilidade ao cowboy: "Todos estaríamos em melhor condição se não houvesse arma alguma nesse vale, inclusive a sua". Após enfrentar e vencer  como a imagem do "Bem"  a ameaça de Wilson (Palance)  o pistoleiro de negro e sorriso cínico, personificação do "Mal" que veio de fora , Shane, ferido, se lembrará das palavras de Marian. Ao se despedir de Joey, faz do garoto o emissário de um recado: "Diga a sua mãe que não há mais armas no vale".


O "Mal" personificado: Wilson (Jack Palance)


Testemunhando a partida de Shane, Joey chama de volta o ídolo de sua infância — e de toda uma geração que cresceu vendo westerns. Inútil! O herói sobe as montanhas e ganha distância.  Joey continua a chamá-lo. Enquanto isso, simbolicamente cresce e experimenta a perda da inocência: "Volte, Shane! Mamãe gosta de você!". Finalmente o cavaleiro, representação arquetípica do western e do cowboy, some de vista. Não pertence mais a este mundo. É o fim das ilusões de Joey, dos seus sonhos e desejos de menino. Então parece crescer ao substituir o chamado por uma despedida curta e simples, condizente com o tom lacônico dos westerns: "Adeus, Shane!".



Joey (De Wilde) testemunha a partida de Shane (Ladd) rumo às colinas distantes: "Volte, Shane! Mamãe gosta de você!"


Shane é o primeiro filme colorido de George Stevens. Se demorou a cair no gosto da crítica foi, por outro lado, o western de melhor bilheteria dos anos 50. Seus 120 minutos são de ação viva  não propriamente violenta, mas desprovida de tempos mortos. Sua estrutura é enfeixada por clima solene e atmosfera arrebatadora. Para tanto contribuem decisivamente a complexidade dos personagens e a densidade, tanto dramática quanto temática, de uma narrativa carregada de sofisticação.


As filmagens se valeram das paisagens naturais do Wyoming. O troar do disparo que mata Stonewall (Cook Jr.) é a ampliação do eco de um tiro de canhão gravado no fundo do Grand Canyon. Stevens preferiu filmar o embate final dentro do armazém pela falta de experiência com a ação nos grandes espaços.


Todos os valores considerados fundamentais estão presentes em Shane: responsabilidade, honra, orgulho, amizade, dignidade e amor em todas as suas variações.



Joey (Brandon De Wilde) e a arma quebrada improvisada como brinquedo





Roteiro: A. B. Guthrie Jr., com base no romance de Jack Schaefer. Diálogos adicionais: Jack Sher. Direção de fotografia (Technicolor): Loyal Griggs, premiado com o Oscar. Consultor de Technicolor: Richard Mueller. Fotografia de segunda unidade: Irmin Roberts. Efeitos especiais fotográficos: Gordon Jennings. Fotografia de fundo projetado: Farciot Edouart. Consultor técnico: Joe De Young. Maquiagam: Wally Westmore. Assistente de direção: John Cooman. Assistente de produção: Howie Horwitz. Som: Harry Lingren, Gene Garvin. Música: Victor Young (canção tema: The call of the far-away hills). Diretor associado: Fred Guiol. Produtor associado: Ivan Moffat. Desenho de produção: Hal Pereira, Walter Tyler. Decoração: Emile Kuri. Costumes: Edith Head. Montagem: William Hornbeck, Tom McAddo. Tempo de exibição: 118 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1974)