domingo, 4 de junho de 2017

"UM FILME BRASILEIRO DE PADRÃO INTERNACIONAL", INFORMAVA A PUBLICIDADE

O filme é Missão: matar, produção brasileira de 1972 com direção de Alberto Pieralisi. Está entre os títulos injustamente olvidados do cinema nacional. Tenho nítidas lembranças das campanhas publicitárias que precederam o lançamento. A produção, caprichada para os critérios da época, foi fartamente anunciada em todas as mídias como "Um filme brasileiro de padrão internacional". Missão: matar tem pretensões cosmopolitas. Apesar de ambientado e filmado no Rio de Janeiro, poderia se passar em qualquer grande centro urbano. Diferente de outros policiais do cinema brasileiro rodados na capital do então estado da Guanabara, a "Cidade Maravilhosa" surge apenas como passivo e despersonalizado pano de fundo a uma intriga sobre herança que evolui para a tentativa de assassinato de personalidade estrangeira do corpo diplomático. Tarcísio Meira, principal estrela das novelas da TV Globo, vivia o auge de uma popularidade logo canalizada para o cinema. Interpreta José da Silva, perspicaz detetive de elite da polícia brasileira com a missão de descobrir e imobilizar o matador profissional Nácio Moreira Mendes (Luís de Lima). O roteiro, adaptado às cores locais por João Bethencourt, é de autoria do estadunidense Robert L. Fish e foi extraído de sua novela Always kill a stranger. Também escreveu o livro do qual elaborou o roteiro de Bullitt, levado ao cinema em 1968 por Peter Yates. Segue apreciação de 1974.







Missão: matar

Direção:
Alberto Pieralisi
Produção:
André Fodor
Taurus Filmes
Brasil — 1972
Elenco:
Tarcísio Meira, Luís de Lima, Yvonne Buckingham, Rubens de Falco, Eva Christian, Marcello Aguinaga, Nádia Maria, Allan Lima, Rodolpho Arena, Regério Fróes, Francisco da Silva, Luiz Ernesto, Eunice Teixeira, Lícia Magna, Nydia de Paulo, Anna Maria Maranhão, Larry Carr, John Mason, Condessa Antje Herald, Ewa Proctor, As Cigarras, Naila Graça Melo, Sanin Cherques, Amauri Guariba.



O ator Tarcísio Meira no papel de João Coragem na novela da TV Globo Irmãos Coragem (1970)



Apesar do formato em tudo diferente, Missão: matar honra a vasta tradição do cinema policial brasileiro. Pouco valorizado e referenciado, o gênero se afirma desde os anos 50. Em geral, não trata apenas de crimes. Também faz a crônica das gritantes contradições da vida urbana no país, principalmente nos grandes centros. É um cinema de denúncia, nem sempre explícita — devido às vicissitudes políticas nacionais. Alguns exemplos do filão: Dominó negro (1950), de Moacyr Fenelon; Amei um bicheiro (1952), de Jorge Ileli e Paulo Wanderley; Na senda do crime (1954), de Famílio Bollini Cerri; e Veneno (1954), de Gianni Pons, são, pelo que sei, marcos iniciais de uma onda que se propagará com mais intensidade pela década seguinte, desde Cidade ameaçada (1960), de Roberto Farias. A seguir vieram Mulheres e milhões (1961), de Jorge Ileli; Assassinato em Copacabana (1962), de Eurípides Ramos; Assalto ao trem pagador (1962), de Roberto Farias; Tocaia no asfalto (1962), de Roberto Pires; Crime no Sacopã (1963), de Roberto Pires; Boca de Ouro (1963), de Nelson Pereira dos Santos; A morte por 500 milhões (1965), de Antonio Orellana; Paraíba, vida e morte de um bandido (1966), de Victor Lima; Mineirinho vivo ou morto (1967), de Aurélio Teixeira; Perpétuo contra o Esquadrão da Morte (1967), de Miguel Borges; A lei do cão (1967), de Jece Valadão; O anjo assassino (1967), de Dionísio Azevedo; O caso dos Irmãos Naves (1967), de Luís Sérgio Person; Máscara da traição (1968), de Roberto Pires; Massacre no supermercado (1968), de J. B. Tanko; Os viciados (1968), de Braz Chediak; O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, Os raptores (1968), de Aurélio Teixeira; Tempo de violência (1969), de Hugo Kuznet; O matador profissional (1969), de Jece Valadão; Sete homens vivos ou mortos (1969), de Leovigildo Cordeiro; Vida e glória de um canalha (1969), de Alberto Salvá; Pedro Diabo ama Rosa Meia Noite (1970), de Miguel Faria Jr.; e Nenê Bandalho (1971), de Emílio Fontana.


Quando do lançamento, Missão: matar foi fartamente anunciado como "Um filme brasileiro de padrões internacionais". Segundo as previsões, inauguraria uma série de aventuras dedicadas ao detetive José da Silva, interpretado por Tarcísio Meira. A carreira do ator estava no auge graças à visibilidade conquistada em decorrência das novelas protagonizadas para a TV Globo, principalmente A rosa rebelde (1969), na qual viveu o espanhol Sandro de Aragon no contexto histórico das guerras napoleônicas; Irmãos Coragem (1970), talvez seu maior sucesso, quando fez o garimpeiro João Coragem; logo seguida por O homem que deve morrer (1971), que lhe permitiu interpretar o misterioso Ciro Valdez. Deu partida à carreira cinematográfica em 1963, no papel de Nestor em Casinha pequenina, veículo para Amácio Mazzaropi com direção de Glauco Mirko Laurelli. Em 1966 foi coadjuvante no obscuro A desforra, de Gino Palmisano. A partir de 1969 as presenças na tela grande ficaram mais constantes. Meira estrelou Máscara da traição com a esposa Glória Menezes e Cláudio Marzo, realização marcante para a época, merecedora de várias chamadas publicitárias na TV. Atuou como matador profissional em Verão de fogo (OSS 117 prend des vacances, 1970), coprodução entre Itália, França e Brasil dirigida por Pierre Kalfon. Seguem-se Quelé do Pajeú (1970), de Anselmo Duarte; As confissões de Frei Abóbora (1971), de Braz Chediak; Missão: matar; Independência ou morte (1972), de Carlos Coimbra; e O marginal (1974), de Carlos Manga. Até o momento, infelizmente, não vingaram outras aventuras cinematográficas centradas no detetive José da Silva.


Tarcísio Meira como o policial brasileiro de elite José da Silva


Em comparação às demais tramas dos filmes policiais brasileiros, Missão: matar é único. Percorre faixa inteiramente própria. O padrão é o de uma aventura de tons cosmopolitas, ambientada nas áreas urbanas do Rio de Janeiro. A metrópole — com sua exuberante paisagem natural e o conjunto formado pelo Aterro do Flamengo — se oferece apenas como passivo pano de fundo a uma trama no mais das vezes vibrante e bem urdida, envolvendo assassinato a soldo por problemas de herança e com repercussões na área diplomática. A história poderia se passar em qualquer país do mundo sem sofrer alterações de monta.


As origens da história sequer são brasileiras. O diretor Alberto Pieralisi, responsável por bem sucedida adaptação de obra homônima de Monteiro Lobato, O comprador de fazendas (1951), assinou em 1970 duas comédias de conotações eróticas com muito sucesso nas bilheterias: Memórias de um gigolô e O enterro da cafetina. Para Missão: matar se apoiou em roteiro que Robert L. Fish extraiu de sua novela Always kill a stranger. O material foi adaptado por João Bethencourt às cores locais cariocas. Fish, sob a alcunha de Robert L. Pike, também é autor de Mute witness, livro vertido para cinema por Alan Trustman e Herry Kleiner. Resultou em Bullitt (Bullitt, 1968), de Peter Yates.


Tarcísio Meira dá conta do recado como o sempre atento, perspicaz e tranquilo detetive José da Silva, membro da elite policial brasileira. É um dos mais eficazes agentes da Polícia Federal. Tem direito à vida boa permitida pela prática dos esportes marítimos, condução de carros esportivos do último tipo, cerco de belas mulheres e residência segundo os padrões da granfinagem. É praticamente um cruzamento de James Bond com Frank Bullitt. Desconfia que um assassino profissional brasileiro, foragido no exterior, viaja em cargueiro prestes a atracar no Rio de Janeiro. Avistou-o rapidamente, na amurada da embarcação, quando praticava esqui aquático no litoral carioca. De início, gravou-lhe apenas a fisionomia, ponto de partida a um retrato falado. Após algumas reviravoltas provocadas por motivos meramente circunstanciais, Silva descobre a identidade do notório Nácio Moreira Mendes (Lima). Apesar de o navio ter alterado o curso para Salvador, por ordem da Capitânia dos Portos, o assassino executou manobra médica que exigiu sua urgente remoção por helicóptero para a cidade mais próxima: o Rio de Janeiro. Aí recebe do advogado Sebastião Pinheiro (Aguinaga) a incumbência de se passar por Dr. Carvalho, médico hospedado no Hotel Serrador, de frente para o Monumento ao Soldado Desconhecido no Aterro do Flamengo. Deverá, no prazo de uma semana, assassinar do quarto que ocupa, com fuzil de mira automática, o diplomata argentino Juan Dorcas (de Falco) durante solenidade de abertura de reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA).


O assassino profissional Nácio Moreira Mendes (Luís de Lima)

Sebastião Pinheiro (Marcello Aguinaga) e a amante Iracema Freire Campos (Yvonne Buckingham)

Nácio Moreira Mendes (Luís de Lima) no disfarce de Dr. Carvalho


Já informado da presença de Nácio Moreira Mendes no Rio de Janeiro, José da Silva — após sucessivos cruzamentos de informações — consegue associá-lo à reunião da OEA e à missão para o qual foi contratado. As investigações do detetive valorizam acima de tudo a inteligência com o mínimo de dispêndio da ação física. Ponto para o diretor Alberto Pieralisi, por prender adequadamente a atenção do espectador tão somente com diálogos e narrativa pausada. Em apoio a José da Silva chega ao Brasil o investigador Wilson (Carr), dos serviços de inteligência dos Estados Unidos. É praticamente uma espécie de Felix Leiter, agente da CIA e amigo de James Bond, interpretado por diferentes atores nos filmes sobre as peripécias do espião inglês do MI6. Juntos, Silva e Wilson tentam descobrir o paradeiro de Mendes e tomam providências para garantir segurança aos representantes da OEA, principalmente ao diplomata argentino.


Os momentos à liberação da ação física ficam restritos praticamente ao final, quando da descoberta de Nácio e da perseguição automobilística que lhe move José da Silva pelas ruas do Rio de Janeiro. Percebe-se, nestes momentos, a intenção de reeditar sequências idênticas às de Bullitt, o que de certa forma foi conseguido — apesar das limitações técnicas.


Wilson (Larry Carr), agente dos serviços de inteligência dos EUA

 Iracema Freire Campos (Yvonne Buckingham)

A telefonista Moema (Nádia Maria)

Os detetives Ramos (Rogério Froés), José da Silva (Tarcísio Meira) e o agente estadunidense Wilson (Larry Carr)

  
O filme ganharia mais fluidez se alguns personagens excessivamente estereotipados e totalmente desnecessários fossem riscados pela edição, principalmente a atirada telefonista Moema (Nádia Maria) no inútil esforço de se passar por engraçada como se fosse uma espécie de Eve Moneypenny (Louis Maxwell), secretária de M (Bernard Lee) — chefe de James Bond (Sean Connery e Roger Moore) no MI6. Lícia Magna, no papel de inconveniente e inacreditável camareira do hotel, também merecia o chão da sala de corte, pois só atrapalhou o desenvolvimento de uma sequência marcada pela tensão. Entretanto, rendeu muito bem a participação da inglesa Yvonne Buckingham como Iracema Freire Campos, amante do advogado Sebastião Pinheiro e complemento ao disfarce de Nácio ao se passar por esposa do Dr. Carvalho no Hotel Serrador. Em geral, é um filme que flui agradavelmente. Tem o mérito de prender o interesse com longas sequências de atmosfera que servem simplesmente ao alongamento da história, no entanto firmadas na boa interação dos atores com a paisagem urbana. Neste ponto, destacam-se acima de tudo os momentos nos quais o Dr. Carvalho deixa o hotel para espairecer e conferir autenticidade ao disfarce, misturado aos populares e também ao ostensivo aparato policial que percorre as ruas em busca do assassino.





Produção executiva: André Fodor. Assistente de direção: John Procter, Rubens de Azevedo. Gerente de produção: Sanin Cherques. Roteiro: Robert L. Fish, baseado em sua novela Always kill a stranger, adaptada por João Bethencourt. Diálogos: João Bethencourt. Direção de fotografia (Eastmancolor): José Rosa. Cenografia: Emeric Lanyi. Vestuário: Natália Alves. Montagem: Raymundo Higino. Música, direção musical e arranjos: Guto Graça Mello. Assistentes de produção: Hélio de Oliveira, Yeda Rocha, Geraldo Gonzaga, Guido Cavour. Som: Juarez Dagoberto Costa. Victor Raposeiro, José Tavares. Assistência de câmera: José Assis de Araujo Dutra. Fotografia de cena: José Rosa, Kazmer Takács. Eletricista-chefe: Antenor da Silva Souza. Eletricistas: Ulisses Moura, Ademar Silva. Maquinista: Waldir Monteiro de Souza. Assistente de montagem: Ronaldo Marques. Créditos: Embrafilme, Líder. Cabelereiro: Célia Armand. Maquiagem: Josefina de Oliveira. Tempo de exibição: 92 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1974)