domingo, 26 de janeiro de 2014

JOHN FORD TOMA LIBERDADES COM MARY STUART E SE APAIXONA PELA ATRIZ

Enfim o comentário a um filme de John Ford se apresenta neste blog. Já estava incomodado com a ausência. Afinal, é o meu cineasta preferido. Por causa dele, muitas vezes tive vontade de corromper as regras do sorteio aleatório fixadas para o espaço. Mary Stuart, rainha da Escócia (Mary of Scotland, 1936) não é das realizações mais notáveis da fordiana. Porém, como se afirmava até há pouco tempo, "É um filme de Ford! Então, basta!" A obra toma liberdades com o contexto histórico no qual a personagem se movimenta. Mas isso não é problemático, ainda mais considerando o posicionamento e a visão-de-mundo do cineasta, sempre atento ao tema dos indivíduos contra o peso das circunstâncias que os envolvem. Dignidade na derrota! Em essência, disso é feito o cinema de Ford. O retrato que ele extrai de Mary Stuart confirma o preceito. Merece especial destaque a fotografia iluminada de Joseph H. August, principalmente quando mira o expressivo semblante de Katharine Hepburn. Poucas vezes uma atriz se viu tão beneficiada pela combinação de lentes e luzes. É algo que somente o coração apaixonado de John Ford poderia explicar.






Mary Stuart, rainha da Escócia
Mary of Scotland

Direção:
John Ford
Produção:
Pandro S. Berman
RKO Radio Pictures Inc.
EUA — 1936
Elenco:
Katharine Hepburn, Fredric March, Florence Eldridge, Douglas Walton, John Carradine, Robert Barrat, Gavin Muir, Ian Keith, Moroni Olsen, William Stack, Ralph Forbes, Alan Mowbray, Frieda Inescort, Donald Crisp, David Torrence, Molly Lamont, Anita Colby, Jean Fenwick, Lionel Pape, Alec Craig, Mary Gordon, Monte Blue, Leonard Mudie, Brandon Hurst, Wilfred Lucas, D'Arcy Corrigan, Frank Baker, Cyril McLaglen, Doris Lloyd, Robert Warwick, Murray Kinnell, Lawrence Grant, Ivan F. Simpson, Nigel De Brulier, Barlowe Borland, Walter Byron, Wyndham Standing, Earle Foxe, Paul McAllister, Lionel Belmore, Gaston Glass, Neil Fitzgerald e os não creditados Frank Anthony, John Blood, Al Bridge, Tommy Bupp, David Clyde, Hallam Cooley, Jerry Frank, Bud Geary, Douglas Gerrard, Winter Hall, Robert Homans, Shep Houghton, Jean Kircher, Judith Kircher, Wedgwood Nowell, Leslie Sketchley, Wingate Smith, Harry Tenbrook, Bobs Watson, Harvey D'Roulle Foster, Jean De Briac, Hilda Grenier, Halliwell Hobbes, Maxine Jennings, Fred Malatesta, G. L. McDonnell, John Pickard, Father Raemers, Robert Ryan, Pat Somerset, John Tyke, Billy Watson, Niles Welch.


John Ford, à direita, com o ator Fredrich March no set de Mary Stuart, rainha da Escócia


John Ford, durante os anos 30, principalmente na primeira metade do período, pôs boa parte de seu talento a serviço do produtor William Fox e de sua companhia, a Fox Film Corporation — que se uniria, em 1935, à Twentieth Century Pictures de Darryl F. Zanuck, Joseph M. Schenck, Raymond Criffith e William Goetz, formando a 20th Century-Fox (o hífen desapareceria em 1985). Aliás, consultas à filmografia do diretor revelam que sua associação com a Fox começou em 1920 com Camaradas (Just pals). Até então, desde seu início na direção de filmes, em 1917, com O furacão (The tornado), a Universal — que passaria por diversas denominações[1] — foi, até 1921, a casa à qual Ford atuaria quase que invariavelmente, sob contrato. A única exceção foi Camaradas. De 1921 a 1931, desde a realização do desaparecido A dançarina (Jackie) até A garota (The breat), Ford teve relacionamento frutífero e duradouro com William Fox. A seguir, o realizador experimentou relativa independência, atuando para Samuel Goldwyn-United Artists — Médico e amante (Arrowsmith, 1931), Universal — Asas heróicas (Air mail, 1932), Metro-Goldwyin-Mayer — Carne (Flesh, 1932), RKO Radio — A patrulha perdida (The lost patrol, 1934) e Columbia — O homem que nunca pecou (The whole town’s talking, 1935). Voltou à Fox Film para realizar Peregrinação (Pilgrimage, 1933) e E o mundo marcha (The worlds moves on, 1934), além da importante trilogia com o precocemente falecido ator Will Rogers[2]: Doutor Bull (Doctor Bull, 1933), Juiz Priest (Judge Priest, 1934) e Nas águas do rio (Steamboat round the Bend, 1935) — este com a companhia produtora ostentando o nome de Fox Film-Twentieth Century.


A patrulha perdida foi o primeiro incontestável sucesso de público e crítica de Ford. Graças a este filme a RKO Radio permitiu, com muita relutância e o mínimo de apoio, que o diretor se entregasse à realização de um projeto inteiramente pessoal que tematizaria a Irlanda de suas raízes paternas: O delator (The informer, 1935), baseado em romance de Liam O’Flaherty. A produção de custo irrisório, ambientada claustrofobicamente numa Dublin noturna e enevoada, reconstruída em cenários erguidos em área marginal do estúdio, surpreendeu ao ser incluída nas indicações ao Oscar de melhor filme[3]. O vitorioso foi O grande motim (Mutiny on the Bounty, 1935), de Frank Lloyd. Mas O delator premiou John Ford (Melhor Diretor[4]), Victor MacLaglen (Melhor Ator) e Dudley Nichols (Melhor Roteiro).


À direita, na companhia de suas damas de honra, Katharine Hepburn no papel de Mary Stuart 


Para o público, parte da crítica e o sistema de estúdios, em particular a RKO Rádio, o sucesso de Patrulha perdida e as láureas conquistadas por O delator elevaram Ford à incômoda posição de diretor de prestígio. Tal situação lhe permitia realizar projetos mais ambiciosos e marcadamente pessoais. Significava também maior canalização de recursos da parte dos estúdios — fato que implicaria no aumento da vigilância dos produtores, logo, na perda da liberdade autoral e sujeição aos padrões em vigor. Foi o que aconteceu.


Em 1936 Ford realizou O prisioneiro da Ilha dos Tubarões (The prisioner of Shark Island) para a 20th Century-Fox. A seguir, nesse mesmo ano, sob auspícios da RKO Radio, estaria atrelado a uma superprodução segundo os cânones aos quais Hollywood habituou o público: cenários gigantescos e suntuosos, elaboradas direção de arte e decoração, luxuosos figurinos de época: Mary Stuart, rainha da Escócia, que forma com O delator e Horas amargas (The plough and the stars, 1936) a trilogia céltica do diretor.


Katharine Hepburn interpreta Mary Stuart


Infelizmente, Mary Stuart, rainha da Escócia fracassou nas bilheterias. Sentindo o prejuízo, a RKO Radio exacerbou seus controles sobre Horas amargas. Impôs Barbara Stanwyck no papel principal e afastou Ford da pós-produção, descaracterizando a obra que veio ao público com ridículos 67 minutos. Assim, essa abordagem da rebelião irlandesa durante a Páscoa de 1916 ficou reduzida à intimidade doméstica e angústia da esposa aguardando notícias ou a volta do marido revolucionário. Consequência disso foi a saída de Ford da RKO Rádio e o breve período de ostracismo que conheceu até 1939, quando reinventaria os códigos do western em No tempo das diligências (Stagecoach), voltando aclamado ao time dos grandes diretores do cinema. De Horas amargas a No tempo das diligências, realizou filmes que podem ser classificados como trabalhos de encomenda: A queridinha do vovô (Wee Willie Winkie, 1937), O furacão (The hurricane, 1937), Quatro homens e uma prece (Four men and a prayer, 1938) e Patrulha submarina (Submarine patrol, 1938).


Mary Stuart nasceu em 1543, fruto da união dos católicos rei escocês Jaime V com a francesa Maria de Guise. Também é sobrinha de Henrique VIII e prima da bastarda Elizabeth I. Vivendo na França desde os 5 anos, educada na corte de Henrique II e Catarina de Médici, contraiu núpcias com o príncipe herdeiro Francisco II, falecido dois anos após, em 1560. Viúva aos 18 anos, Mary, praticamente uma francesa de fé católica, aceitou os conselhos de Catarina e retornou à Escócia para assumir o trono nas mãos do irmão, o regente Jaime Stuart, conde de Moray. Sua situação política era frágil. Além de católica num mundo em mutação para o protestantismo, não conseguiu legitimação e equilíbrio num cenário tumultuado pela autonomia de lordes ávidos na defesa de seus interesses. Além disso, havia os problemas externos. A rainha da Inglaterra, a “virgem” Elizabeth I, filha do casamento de Henrique VIII com Ana Bolena, não obteve reconhecimento paterno e sequer possuía herdeiros. Mary a ameaçava como legítima pretendente ao trono inglês. Contra ela e seu catolicismo preveniram-se Elizabeth e a nobreza inglesa temerosa com a provável perda de privilégios territoriais caso Mary se fizesse rainha e reatasse os laços com o papado, sem esquecer possíveis contrações de núpcias com herdeiros aos tronos de Espanha ou França, potências inimigas.


Em busca de força política e pressionada por sua corte, Mary se casou a contragosto com o primo Henrique Stuart, conde Darnley, também aspirante ao trono inglês. Dessa união nasceu o predestinado a se tornar Jaime VI da Escócia e, de 1603 a 1625, Jaime I da Inglaterra. Intrigas palacianas provocaram o assassinato mal esclarecido de Darnley em 1567. Ele, anos antes, participou do complô que resultou no assassinato do italiano David Rizzio, conselheiro político de Mary e um dos favoritos da rainha. Meses após a morte do segundo marido, Mary contrariou toda a nobreza ao se casar com o conde de Bothwell, suspeito de assassinar Darnley. Esse ato resultou no total isolamento da rainha. A nobreza escocesa e a pregação presbiteriana do reformador John Knox impuseram o exílio a Bothwell e a abdicação de Mary em nome do herdeiro ainda criança. Encarcerada na ilha de Loch Laven, ela escapou em 1568 e tentou recuperar o trono. Derrotada, empreendeu golpe arriscado: refugiou-se na Inglaterra, buscando apoio de Elizabeth I. Aprisionada por 18 anos foi acusada de conspiração, julgada e decapitada. Bothwell, aprisionado na Dinamarca, morreu em 1578.


Mary Stuart (Katharine Hepburn) com o conselheiro David Rizzio (John Carradine)


O filme acompanha o percurso de Mary desde seu retorno à Escócia, em 1560, à sua execução na Inglaterra, em 1587. O roteiro de Dudley Nichols não faz uso de fontes documentais precisas. Apoia-se na peça em versos de Maxwell Anderson a partir da montagem teatral a cargo do Theatre Guild e nos figurinos a tanto elaborados pela Western Costumes Company. Quanto à direção, cabe ressaltar que John Ford, apesar de cercado pelos esquemas de grande produção, não sucumbiu ao peso do aparato. Solenidade e grandiloquência não marcam presença. Filmado praticamente em interiores, com as poucas externas tomadas à noite, Mary Stuart, rainha da Escócia é um filme claustrofóbico. Mas essa sensação não oprime a narrativa, muito menos o espectador. O andamento é leve. Conhecido por sua rebeldia, Ford fazia de tudo para escapar da vigilância de produtores e das passagens excessivamente melodramáticas e verborrágicas dos roteiros. Percebe-se que ele deve ter tomado muitas liberdades com o guião de Nichols. Se este, dadas as fontes que utilizou, não se manteve fiel ao que os puristas chamam de exatidão histórica, Ford muito menos: acima de tudo, procurou ser coerente com seus pontos de vista de criador e de indivíduo contrário a qualquer forma de controle. Portanto, não deve o espectador estranhar as inverdades e incoerências do filme. Não que Ford desrespeite a História ou a distorça intencionalmente. Prefere, antes de tudo, utilizá-la como pano de fundo para encenar o drama de indivíduos procurando reafirmação frente à força de circunstâncias que muitas vezes escapam ao seu inteiro controle. Para evidenciar os personagens, os contextos reais nos quais se movem podem ser retocados e, no limite, até removidos. É o que Ford faz, sem pudores. Antes de encenar os últimos 27 anos de Mary Stuart, expôs mais os dramas humanos e individuais vividos pela rainha da Escócia, preenchendo-os com a matéria prima fartamente utilizada por ele em sua maneira muito pessoal de descortinar o mundo e a vida. A Mary Stuart em tela não é a personagem histórica e sim uma criação genuína de Ford. Nasceu em ambiente de força e poder mas é fragilizada por maquinações armadas à sua revelia. É uma mulher com aspirações à realeza, porém incapaz de esquecer e abrir mão de seus pontos de vista pessoais. Termina sacrificada quando tentou, a todo custo, evitar esse caminho, de forma errática ou acertada, procurando preservar a própria autonomia. A Mary Stuart de Ford é representação do herói impuro e repleto de humanidade tão fartamente encontrado nas gestas do diretor.


Bothwell (Fredrich March) e Mary Stuart (Katharine Hepburn)


Mary Stuart (Hepburn), movimentando-se em cenários tingidos de luzes e sombras, é uma mulher incapaz de reprimir as próprias paixões. Aparentemente descuidada consigo mesma, não pretende ser um simples joguete das maquinações políticas internas e externas. Católica em meio à ascensão protestante, tenta ser fiel às suas convicções, mas prega a tolerância e a liberdade de culto. Instigada a mudar de religião, alega bem fordianamente: “Não troco de religião de acordo com o clima”. Uma fala que parece antecipar em 20 anos o Ethan Edwards (John Wayne) de Rastros de ódio (The searchers) quando respondeu a uma provocação de Sam Clayton (Ward Bond): “Não acredito em rendições. Meu sabre ainda não foi transformado em arado”. Rainha que não pretende abrir mão de sua condição de mulher, Mary quer amar e ter filhos. Mas a livre escolha está fora de cogitação. Uma rainha não tem, com diria Maquiavel, compromissos com seus desejos e vontades, mas com o reino e as necessidades dos súditos, ainda mais dos poderosos que dela se acercam. Por isso, é obrigada a engolir o casamento com o primo Lord Darnley (Walton) — caracterizado como pavão efeminado — e sufocar o amor que sente por Bothwell (March). Também, em nome da estabilidade do reino, é obrigada a presenciar o assassinato do assessor David Rizzio (Carradine) em seus próprios aposentos e conceder perdão aos assassinos. Num cenário conturbado no qual a tolerância e a liberdade de escolha são sacrificadas, não há como estranhar a transformação do reformador escocês John Knox (Olsen) num pregador fundamentalista intransigente, uma metralhadora verbal repleta de moralismo e desprezo por formas de fé, verdades e modos de vidas que não as suas. Ele se tornará inimigo declarado e inconteste de Mary; será um dos responsáveis pela sua queda. Não para menos o retrato que Ford oferece de Knox colou ao filme, na opinião de alguns, um julgamento igualmente exagerado: peça de propaganda antiprotestante.


Katharine Hepburn como Mary Stuart


Para reforçar a caracterização de Mary e melhor retratá-la como indivíduo não conformada aos papéis que dela esperam os súditos e as circunstâncias do imponderável destino, Ford recorre à liberdade de firmar um paralelo com Elizabeth I (Eldridge). “Ela é tão bonita quanto dizem?”, pergunta a rainha da Inglaterra. Ainda recebe um retrato da prima e com a ajuda de um espelho faz uma comparação. Tais passagens são, claramente, licenças poéticas de Dudley Nichols ou de John Ford. Mas se prestam ao estabelecimento de paralelos e à demarcação de personalidades tão diferentes e em pugna. Elizabeth seguiu ao pé da letra os procedimentos que a mantiveram na cadeira do poder. Aprendeu a sobreviver num mundo de homens, inclusive se masculinizando na incorporação de trejeitos, gestos e forma de falar. Mary, por sua vez, apesar de cercada de homens não pretende esquecer que é mulher, sequer ser vencida pelas convenções da corte e do poder. Ambas nunca estiveram frente a frente, mas o filme permite uma visita de Elizabeth a Mary, na prisão — um encontro providencial, para demarcar de modo mais enfático as oposições. Bem antes, logo no começo do filme, a personagem de Eldridge afirmava sobre ela mesma: “Você não sabe o que ser ilegítima, não ter uma palavra entre você e o trono”. Essa palavra seria a legitimação paterna. Elizabeth teve que buscá-la, firmando-se perante seus súditos graças à força de seus atos nas políticas interna e externa. Sem construir uma fortaleza em torno de si mesma ela sabe que de nada valeria. Tanto que no fictício encontro com Mary fez questão de ressaltar: “Sou uma rainha. Você nasceu perto demais do meu trono. Era você ou eu. Renuncie ao seu direito e viva!”. A prisioneira só pode dizer aquilo que tentou ser ao longo de todo o filme: “Sou uma mulher. Tenho uma felicidade que você nunca conhecerá. Você sabe que meu sangue irá manchá-la para sempre. Meu filho governará a Inglaterra”. Elizabeth se afirma no poder. Rainha “virgem”, devido aos compromissos mantidos com o reino foi obrigada a calar sua porção “mulher”. Mary buscou acima de tudo o amor e a felicidade. Por isso, segundo o filme, foi derrotada e executada. Mas como é paradoxalmente comum na filmografia de Ford, ela sai vitoriosa na derrota. Isso é bem explicitado em termos cinematográficos. Se a câmera funciona de modo convencional, sem brilho, praticamente chapada com Elizabeth, não tem pudores de se aproximar até o primeiro plano do rosto tingido de luzes e sombras de Mary. Seus olhos brilham. Sua boca entreaberta comunica um estado ofegante, de suspensão e questionamento. É um rosto expressivo, transpirando jovialidade e individualidade.


Para demarcar posicionamentos e personalidades, um encontro que nunca houve:
Elizabeth I (Florence Eldridge)  e Mary Stuart (Katharine Hepburn)

  
As lentes da fotografia de Joseph H. August realmente se enamoraram de Katharine Hepburn. Porém, não estavam somente a serviço da estética cinematográfica, mas do homem John Ford, que se apaixonou pela atriz. Ela e o diretor iniciaram, nesse filme, relacionamento que durou até a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Ford, católico e casado com Mary McBride Smith, não pretendia se separar. A relação extraconjugal durou até o momento em que Hepburn se uniu, desta vez publicamente, com Spencer Tracy, também casado. Segundo alguns, foi o coração ferido de Ford que o conduziu ao alistamento militar e a cumpri-lo como correspondente de guerra na Frente do Pacífico.


Mary Stuart, rainha da Escócia apresenta Katharine Hepburn em seu décimo papel no cinema[5]. Para alguns, ela tem, nesse filme, a primeira oportunidade de um desempenho adulto — o que isso quer dizer, exatamente, não se sabe. Com o tempo vem a consolidação na carreira. É conhecida atualmente como a melhor atriz dos Estados Unidos. Sua interpretação é um dos pontos altos do filme.


Mary Stuart (Katharine Hepburn)


Entretanto, o desenvolvimento cinematográfico de Mary Stuart, rainha da Escócia é consideravelmente prejudicado por dois importantes senões. O primeiro pode ser observado na administração do que seria o tempo real da história. Parece que os fatos não tiveram duração nem processo. Os acontecimentos se sucedem de forma tal que dão a impressão de ocorrerem no mesmo instante, quando, na verdade, tudo se passa ao longo de 27 anos. O segundo reside na interpretação do elenco masculino, principalmente de Fredric March. Seu personagem se move e gesticula qual um americano caipira do centro-sul dos Estados Unidos e não propriamente como escocês. Talvez haja aqui algum exagero na avaliação, mas não dá para negar o constrangimento que se sente diante dos rompantes másculos de Bothwell, com mãos nas escadeiras e caminhando como se fosse distribuir alguns pontapés. Apesar disso, March oferece bom momento ao se secar à lareira num gestual tão pouco cerimonioso e praticamente despudorado. Essa sequência prolonga a primeira entrada de Lord Darnley, contracenando com as damas de companhia de Mary. “Ah! As quatro belas flores”, diz ele às mulheres. Uma completa: “Cinco, meu senhor, agora que chegou”. Bom momento de humor é permitido pela recusa de Mary ao casamento com prováveis pretendentes listados por Moray (Keith). Ela aponta os defeitos de cada qual valendo-se apenas das palavras “cebolas”, “ronca”, “orelha”, “cerveja”... Os momentos finais também são bem resolvidos, principalmente a sequência do julgamento de Mary, mostrando-a trajada em negro, de pé, tentando demonstrar altivez apesar de diminuída pelos juízes em trajes claros, posicionados à distância e no elevado de suas tribunas. O epílogo, notadamente cristão, mostra Mary a caminho do patíbulo, aparentando ser senhora do seu destino, galgando estoicamente as escadas na escuridão entrecortada pelo riscar de relâmpagos.


Mary Stuart (Katharine Hepburn) no tribunal que a condena à morte 

  
Merece destaque o momento no qual Elizabeth, demonstrando preocupação com a situação escocesa, diz: “Rebelião! Não gosto dessa palavra!”. Ainda mais quando se trata de uma rebelião localizada tão próxima da Inglaterra. Nesse momento, Ford faz claro posicionamento político a partir de suas origens irlandesas e favorável à causa do IRA (Exército Republicano Irlandês) contra a dominação britânica.


No Festival de Veneza, de 1936, John Ford recebeu a Special Recommendation por Mary Stuart, rainha da Escócia.


As músicas de Max Steiner pertencem ao acervo fonográfico de diversas composições do autor.





Roteiro: Dudley Nichols, com contribuição escrita de Mortimer Offner (não creditado), baseado em peça homônima de Maxwell Anderson. Música original: Nathaniel Shilkret. Música não original: Max Steiner. (não creditado). Direção de fotografia (preto-e-branco): Joseph H. August, Jack MacKenzie (não creditado). Direção de arte: Van Nest Polglase. Figurinos: Walter Plunkett. Maquiagem: Mel Berns (não creditado). Penteados de Katharine Hepburn: Louise Sloane (não creditada). Gerentes de unidade de produção: Bert Gilroy, Charles Stallings, Louis Shapiro (não creditados). Assistente de direção: Edward Donahue. Associado à direção de arte: Carroll Clark. Decoração: Darrell Silvera. Joias: Eugene Joseff (não creditado). Gravação de som: Hugh McDowell Jr., Denzil A. Cutler (não creditado). Efeitos especiais fotográficos: Vernon L. Walker. Ferramentas: Louie Anderson (não creditado). Orquestração: Maurice De Packh. Associado à montagem: Jane Loring. Coreografia: Hermes Pan (não creditado). Assistente de montagem: Robert Parrish (não creditado). Direção musical: Nathaniel Shilkret (não creditado). Edição de som: George Marsh (não creditado). Dublês: Jack Bond, para Fredrich March, Patricia Doyle (não creditada), para Katharine Hepburn; Idalyn Dupret (não creditada), para Frieda Inescort; Bill Worth (não creditado), para John Carradine; Georgia French. Revisão de roteiro: Meta Stern (não creditada). Companhia de mixagem de som: RCA Victor System. Tempo de exibição: 123 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2002)



[1] A Universal se chamava 101 Bison-Universal quando Ford estreou com O furacão. No mesmo 1917 chamou-se Universal Star Featurette e Universal Butterfly. A partir de 1918 os nomes da companhia variavam, dependendo do lançamento e da empresa à qual se associava: Universal Special, Universal-Bluebird, Universal Special Atraction, Universal Special Featurette e Universal.
[2] Morto em 1935, em acidente de avião sobrevoando o Alaska.
[3] Os outros títulos indicados foram: Mulher que soube amar (Alice Adams), de George Stevens; The Broadway melody of 1936, de Roy Del Ruth; Capitão Blood (Captain Blood), de Michael Curtiz; David Coperfield (David Coperfield), de George Cukor; Os miseráveis (Les miserables), de Richard Boleslavsky; Lanceiros da Índia (Lives of a Bengal lancer), de Henry Hathaway; Sonho de uma noite de verão (A midsummer night’s dream) de William Diertele e Max Reinhardt; Oh, Marieta! (Naughty Marietta), de W. S. Van Dyke; Vamos à América (Rugles of red gap), de Leo McCarey; e O picolino (Top hat), de Mark Sandrich.
[4] Concorreram com Ford, ao Oscar de melhor direção, Henry Hathaway e Frank Lloyd.
[5] Katharine Hepburn ofereceu desempenhos anteriores em Vítimas do divórcio (A bill of divorcement, 1932), de George Cukor; Assim amam as mulheres (Christopher strong, 1933), de Dorothy Arzner; Manhã de glória (Morning glory, 1933), de Lowell Sherman; Quatro irmãs (Little women, 1933), de George Cukor; A mística (Spitfire, 1934), de John Cromwell; Sangue cigano (The little minister, 1934), de Richard Wallace; Corações em ruínas (Break of hearts, 1935), de Philip Moeller; A mulher que soube amar (Alice Adams, 1935), de George Stevens; e Vivendo em dúvida (Sylvia Scarlett, 1936), de George Cukor.