Enfim o comentário a um filme de John Ford se apresenta
neste blog. Já estava incomodado com a ausência. Afinal, é o meu cineasta
preferido. Por causa dele, muitas vezes tive vontade de corromper as regras do
sorteio aleatório fixadas para o espaço. Mary Stuart, rainha da Escócia (Mary
of Scotland, 1936) não é das realizações mais notáveis da fordiana. Porém,
como se afirmava até há pouco tempo, "É um filme de Ford! Então, basta!"
A obra toma liberdades com o contexto histórico no qual a personagem se
movimenta. Mas isso não é problemático, ainda mais considerando o
posicionamento e a visão-de-mundo do cineasta, sempre atento ao tema dos
indivíduos contra o peso das circunstâncias que os envolvem. Dignidade na
derrota! Em essência, disso é feito o cinema de Ford. O retrato que ele extrai
de Mary Stuart confirma o preceito. Merece especial destaque a fotografia
iluminada de Joseph H. August, principalmente quando mira o expressivo semblante
de Katharine Hepburn. Poucas vezes uma atriz se viu tão beneficiada pela
combinação de lentes e luzes. É algo que somente o coração apaixonado de John
Ford poderia explicar.
Mary Stuart, rainha
da Escócia
Mary of Scotland
Direção:
John Ford
Produção:
Pandro S. Berman
RKO Radio Pictures Inc.
EUA — 1936
Elenco:
Katharine Hepburn, Fredric March,
Florence Eldridge, Douglas Walton, John Carradine, Robert Barrat, Gavin Muir, Ian
Keith, Moroni Olsen, William Stack, Ralph Forbes, Alan Mowbray, Frieda
Inescort, Donald Crisp, David Torrence, Molly Lamont, Anita Colby, Jean
Fenwick, Lionel Pape, Alec Craig, Mary Gordon, Monte Blue, Leonard Mudie,
Brandon Hurst, Wilfred Lucas, D'Arcy Corrigan, Frank Baker, Cyril McLaglen,
Doris Lloyd, Robert Warwick, Murray Kinnell, Lawrence Grant, Ivan F. Simpson,
Nigel De Brulier, Barlowe Borland, Walter Byron, Wyndham Standing, Earle Foxe,
Paul McAllister, Lionel Belmore, Gaston Glass, Neil Fitzgerald e os não
creditados Frank Anthony, John Blood, Al Bridge, Tommy Bupp, David Clyde,
Hallam Cooley, Jerry Frank, Bud Geary, Douglas Gerrard, Winter Hall, Robert
Homans, Shep Houghton, Jean Kircher, Judith Kircher, Wedgwood Nowell, Leslie
Sketchley, Wingate Smith, Harry Tenbrook, Bobs Watson, Harvey D'Roulle Foster,
Jean De Briac, Hilda Grenier, Halliwell Hobbes, Maxine Jennings, Fred
Malatesta, G. L. McDonnell, John Pickard, Father Raemers, Robert Ryan, Pat
Somerset, John Tyke, Billy Watson, Niles Welch.
John Ford, à direita, com o ator Fredrich March no set de Mary Stuart, rainha da Escócia |
John Ford, durante
os anos 30, principalmente na primeira metade do período, pôs boa parte de seu
talento a serviço do produtor William Fox e de sua companhia, a Fox Film
Corporation — que se uniria, em 1935, à Twentieth Century Pictures de Darryl F.
Zanuck, Joseph M. Schenck, Raymond Criffith e William Goetz, formando a 20th
Century-Fox (o hífen desapareceria em 1985). Aliás, consultas à filmografia do
diretor revelam que sua associação com a Fox começou em 1920 com Camaradas
(Just
pals). Até então, desde seu início na direção de filmes, em 1917, com O
furacão (The tornado), a Universal — que passaria por diversas
denominações[1] — foi,
até 1921, a
casa à qual Ford atuaria quase que invariavelmente, sob contrato. A única
exceção foi Camaradas. De 1921
a 1931, desde a realização do desaparecido A
dançarina (Jackie) até A garota (The breat), Ford teve
relacionamento frutífero e duradouro com William Fox. A seguir, o realizador
experimentou relativa independência, atuando para Samuel Goldwyn-United Artists
— Médico
e amante (Arrowsmith, 1931), Universal — Asas heróicas (Air
mail, 1932), Metro-Goldwyin-Mayer — Carne (Flesh,
1932), RKO Radio — A patrulha perdida (The lost patrol, 1934) e Columbia — O
homem que nunca pecou (The whole town’s talking, 1935). Voltou
à Fox Film para realizar Peregrinação (Pilgrimage, 1933) e E o
mundo marcha (The worlds moves on, 1934), além da
importante trilogia com o precocemente falecido ator Will Rogers[2]:
Doutor
Bull (Doctor Bull, 1933), Juiz Priest (Judge Priest, 1934) e Nas
águas do rio (Steamboat round the Bend, 1935) — este
com a companhia produtora ostentando o nome de Fox Film-Twentieth Century.
A patrulha
perdida foi o primeiro incontestável sucesso de público e crítica
de Ford. Graças a este filme a RKO Radio permitiu, com muita relutância e o
mínimo de apoio, que o diretor se entregasse à realização de um projeto
inteiramente pessoal que tematizaria a Irlanda de suas raízes paternas: O
delator (The informer, 1935), baseado em romance de Liam O’Flaherty. A
produção de custo irrisório, ambientada claustrofobicamente numa Dublin noturna
e enevoada, reconstruída em cenários erguidos em área marginal do estúdio, surpreendeu
ao ser incluída nas indicações ao Oscar de melhor filme[3].
O vitorioso foi O grande motim (Mutiny on the Bounty, 1935), de
Frank Lloyd. Mas O delator premiou John Ford (Melhor Diretor[4]),
Victor MacLaglen (Melhor Ator) e Dudley Nichols (Melhor Roteiro).
À direita, na companhia de suas damas de honra, Katharine Hepburn no papel de Mary Stuart |
Para o público,
parte da crítica e o sistema de estúdios, em particular a RKO Rádio, o sucesso
de Patrulha
perdida e as láureas conquistadas por O delator elevaram Ford à
incômoda posição de diretor de prestígio. Tal situação lhe permitia realizar
projetos mais ambiciosos e marcadamente pessoais. Significava também maior
canalização de recursos da parte dos estúdios — fato que implicaria no aumento
da vigilância dos produtores, logo, na perda da liberdade autoral e sujeição
aos padrões em vigor. Foi
o que aconteceu.
Em 1936 Ford
realizou O prisioneiro da Ilha dos Tubarões (The prisioner of Shark Island)
para a 20th Century-Fox. A seguir, nesse mesmo ano, sob auspícios da RKO Radio,
estaria atrelado a uma superprodução segundo os cânones aos quais Hollywood
habituou o público: cenários gigantescos e suntuosos, elaboradas direção de arte
e decoração, luxuosos figurinos de época: Mary Stuart, rainha da Escócia, que forma
com O
delator e Horas amargas (The plough and the stars, 1936) a
trilogia céltica do diretor.
Katharine Hepburn interpreta Mary Stuart |
Infelizmente, Mary
Stuart, rainha da Escócia fracassou nas bilheterias. Sentindo o
prejuízo, a RKO Radio exacerbou seus controles sobre Horas amargas. Impôs
Barbara Stanwyck no papel principal e afastou Ford da pós-produção, descaracterizando
a obra que veio ao público com ridículos 67 minutos. Assim, essa abordagem da
rebelião irlandesa durante a Páscoa de 1916 ficou reduzida à intimidade
doméstica e angústia da esposa aguardando notícias ou a volta do marido
revolucionário. Consequência disso foi a saída de Ford da RKO Rádio e o breve
período de ostracismo que conheceu até 1939, quando reinventaria os códigos do
western em No tempo das diligências (Stagecoach), voltando aclamado ao
time dos grandes diretores do cinema. De Horas amargas a No tempo das diligências,
realizou filmes que podem ser classificados como trabalhos de encomenda: A
queridinha do vovô (Wee Willie Winkie, 1937), O
furacão (The hurricane, 1937), Quatro homens e uma prece (Four
men and a prayer, 1938) e Patrulha submarina (Submarine
patrol, 1938).
Mary Stuart
nasceu em 1543, fruto da união dos católicos rei escocês Jaime V com a francesa
Maria de Guise. Também é sobrinha de Henrique VIII e prima da bastarda
Elizabeth I. Vivendo na França desde os 5 anos, educada na corte de Henrique II
e Catarina de Médici, contraiu núpcias com o príncipe herdeiro Francisco II,
falecido dois anos após, em 1560. Viúva aos 18 anos, Mary, praticamente uma
francesa de fé católica, aceitou os conselhos de Catarina e retornou à Escócia
para assumir o trono nas mãos do irmão, o regente Jaime Stuart, conde de Moray.
Sua situação política era frágil. Além de católica num mundo em mutação para o
protestantismo, não conseguiu legitimação e equilíbrio num cenário tumultuado
pela autonomia de lordes ávidos na defesa de seus interesses. Além disso, havia
os problemas externos. A rainha da Inglaterra, a “virgem” Elizabeth I, filha do
casamento de Henrique VIII com Ana Bolena, não obteve reconhecimento paterno e
sequer possuía herdeiros. Mary a ameaçava como legítima pretendente ao trono
inglês. Contra ela e seu catolicismo preveniram-se Elizabeth e a nobreza
inglesa temerosa com a provável perda de privilégios territoriais caso Mary se
fizesse rainha e reatasse os laços com o papado, sem esquecer possíveis
contrações de núpcias com herdeiros aos tronos de Espanha ou França, potências
inimigas.
Em busca de força
política e pressionada por sua corte, Mary se casou a contragosto com o primo
Henrique Stuart, conde Darnley, também aspirante ao trono inglês. Dessa união
nasceu o predestinado a se tornar Jaime VI da Escócia e, de 1603 a 1625, Jaime
I da Inglaterra. Intrigas palacianas provocaram o assassinato mal esclarecido
de Darnley em 1567. Ele, anos antes, participou do complô que resultou no
assassinato do italiano David Rizzio, conselheiro político de Mary e um dos favoritos
da rainha. Meses após a morte do segundo marido, Mary contrariou toda a nobreza
ao se casar com o conde de Bothwell, suspeito de assassinar Darnley. Esse ato
resultou no total isolamento da rainha. A nobreza escocesa e a pregação
presbiteriana do reformador John Knox impuseram o exílio a Bothwell e a
abdicação de Mary em nome do herdeiro ainda criança. Encarcerada na ilha de
Loch Laven, ela escapou em 1568 e tentou recuperar o trono. Derrotada,
empreendeu golpe arriscado: refugiou-se na Inglaterra, buscando apoio de Elizabeth
I. Aprisionada por 18 anos foi acusada de conspiração, julgada e decapitada. Bothwell,
aprisionado na Dinamarca, morreu em 1578.
Mary Stuart (Katharine Hepburn) com o conselheiro David Rizzio (John Carradine) |
O filme acompanha
o percurso de Mary desde seu retorno à Escócia, em 1560, à sua execução na
Inglaterra, em 1587. O roteiro de Dudley Nichols não faz uso de fontes
documentais precisas. Apoia-se na peça em versos de Maxwell Anderson a partir
da montagem teatral a cargo do Theatre Guild e nos figurinos a tanto elaborados
pela Western Costumes Company. Quanto à direção, cabe ressaltar que John Ford,
apesar de cercado pelos esquemas de grande produção, não sucumbiu ao peso do
aparato. Solenidade e grandiloquência não marcam presença. Filmado praticamente
em interiores, com as poucas externas tomadas à noite, Mary Stuart, rainha da Escócia
é um filme claustrofóbico. Mas essa sensação não oprime a narrativa, muito
menos o espectador. O andamento é leve. Conhecido por sua rebeldia, Ford fazia
de tudo para escapar da vigilância de produtores e das passagens excessivamente
melodramáticas e verborrágicas dos roteiros. Percebe-se que ele deve ter tomado
muitas liberdades com o guião de Nichols. Se este, dadas as fontes que
utilizou, não se manteve fiel ao que os puristas chamam de exatidão histórica,
Ford muito menos: acima de tudo, procurou ser coerente com seus pontos de vista
de criador e de indivíduo contrário a qualquer forma de controle. Portanto, não
deve o espectador estranhar as inverdades e incoerências do filme. Não que Ford
desrespeite a História ou a distorça intencionalmente. Prefere, antes de tudo,
utilizá-la como pano de fundo para encenar o drama de indivíduos procurando
reafirmação frente à força de circunstâncias que muitas vezes escapam ao seu
inteiro controle. Para evidenciar os personagens, os contextos reais nos quais
se movem podem ser retocados e, no limite, até removidos. É o que Ford faz, sem
pudores. Antes de encenar os últimos 27 anos de Mary Stuart, expôs mais os
dramas humanos e individuais vividos pela rainha da Escócia, preenchendo-os com
a matéria prima fartamente utilizada por ele em sua maneira muito pessoal de
descortinar o mundo e a vida. A Mary Stuart em tela não é a personagem
histórica e sim uma criação genuína de Ford. Nasceu em ambiente de força e
poder mas é fragilizada por maquinações armadas à sua revelia. É uma mulher com
aspirações à realeza, porém incapaz de esquecer e abrir mão de seus pontos de
vista pessoais. Termina sacrificada quando tentou, a todo custo, evitar esse
caminho, de forma errática ou acertada, procurando preservar a própria autonomia.
A Mary Stuart de Ford é representação do herói impuro e repleto de humanidade
tão fartamente encontrado nas gestas do diretor.
Bothwell (Fredrich March) e Mary Stuart (Katharine Hepburn) |
Mary Stuart
(Hepburn), movimentando-se em cenários tingidos de luzes e sombras, é uma
mulher incapaz de reprimir as próprias paixões. Aparentemente descuidada
consigo mesma, não pretende ser um simples joguete das maquinações políticas
internas e externas. Católica em meio à ascensão protestante, tenta ser fiel às
suas convicções, mas prega a tolerância e a liberdade de culto. Instigada a
mudar de religião, alega bem fordianamente: “Não troco de religião de acordo
com o clima”. Uma fala que parece antecipar em 20 anos o Ethan Edwards (John
Wayne) de Rastros de ódio (The searchers) quando respondeu a
uma provocação de Sam Clayton (Ward Bond): “Não acredito em rendições. Meu
sabre ainda não foi transformado em arado”. Rainha que não pretende abrir mão
de sua condição de mulher, Mary quer amar e ter filhos. Mas a livre escolha
está fora de cogitação. Uma rainha não tem, com diria Maquiavel, compromissos
com seus desejos e vontades, mas com o reino e as necessidades dos súditos,
ainda mais dos poderosos que dela se acercam. Por isso, é obrigada a engolir o
casamento com o primo Lord Darnley (Walton) — caracterizado como pavão efeminado
— e sufocar o amor que sente por Bothwell (March). Também, em nome da
estabilidade do reino, é obrigada a presenciar o assassinato do assessor David
Rizzio (Carradine) em seus próprios aposentos e conceder perdão aos assassinos.
Num cenário conturbado no qual a tolerância e a liberdade de escolha são
sacrificadas, não há como estranhar a transformação do reformador escocês John
Knox (Olsen) num pregador fundamentalista intransigente, uma metralhadora
verbal repleta de moralismo e desprezo por formas de fé, verdades e modos de
vidas que não as suas. Ele se tornará inimigo declarado e inconteste de Mary; será
um dos responsáveis pela sua queda. Não para menos o retrato que Ford oferece
de Knox colou ao filme, na opinião de alguns, um julgamento igualmente
exagerado: peça de propaganda antiprotestante.
Katharine Hepburn como Mary Stuart |
Para reforçar a
caracterização de Mary e melhor retratá-la como indivíduo não conformada aos
papéis que dela esperam os súditos e as circunstâncias do imponderável destino,
Ford recorre à liberdade de firmar um paralelo com Elizabeth I (Eldridge). “Ela
é tão bonita quanto dizem?”, pergunta a rainha da Inglaterra. Ainda recebe um
retrato da prima e com a ajuda de um espelho faz uma comparação. Tais passagens
são, claramente, licenças poéticas de Dudley Nichols ou de John Ford. Mas se
prestam ao estabelecimento de paralelos e à demarcação de personalidades tão
diferentes e em
pugna. Elizabeth seguiu ao pé da letra os procedimentos que a
mantiveram na cadeira do poder. Aprendeu a sobreviver num mundo de homens,
inclusive se masculinizando na incorporação de trejeitos, gestos e forma de falar.
Mary, por sua vez, apesar de cercada de homens não pretende esquecer que é
mulher, sequer ser vencida pelas convenções da corte e do poder. Ambas nunca
estiveram frente a frente, mas o filme permite uma visita de Elizabeth a Mary,
na prisão — um encontro providencial, para demarcar de modo mais enfático as
oposições. Bem antes, logo no começo do filme, a personagem de Eldridge
afirmava sobre ela mesma: “Você não sabe o que ser ilegítima, não ter uma
palavra entre você e o trono”. Essa palavra seria a legitimação paterna. Elizabeth
teve que buscá-la, firmando-se perante seus súditos graças à força de seus atos
nas políticas interna e externa. Sem construir uma fortaleza em torno de si
mesma ela sabe que de nada valeria. Tanto que no fictício encontro com Mary fez
questão de ressaltar: “Sou uma rainha. Você nasceu perto demais do meu trono.
Era você ou eu. Renuncie ao seu direito e viva!”. A prisioneira só pode dizer
aquilo que tentou ser ao longo de todo o filme: “Sou uma mulher. Tenho uma
felicidade que você nunca conhecerá. Você sabe que meu sangue irá manchá-la
para sempre. Meu filho governará a Inglaterra”. Elizabeth se afirma no poder.
Rainha “virgem”, devido aos compromissos mantidos com o reino foi obrigada a
calar sua porção “mulher”. Mary buscou acima de tudo o amor e a felicidade. Por
isso, segundo o filme, foi derrotada e executada. Mas como é paradoxalmente
comum na filmografia de Ford, ela sai vitoriosa na derrota. Isso é bem
explicitado em termos cinematográficos. Se a câmera funciona de modo
convencional, sem brilho, praticamente chapada com Elizabeth, não tem pudores
de se aproximar até o primeiro plano do rosto tingido de luzes e sombras de
Mary. Seus olhos brilham. Sua boca entreaberta comunica um estado ofegante, de
suspensão e questionamento. É um rosto expressivo, transpirando jovialidade e
individualidade.
Para demarcar posicionamentos e personalidades, um encontro que nunca houve: Elizabeth I (Florence Eldridge) e Mary Stuart (Katharine Hepburn) |
As lentes da
fotografia de Joseph H. August realmente se enamoraram de Katharine Hepburn. Porém,
não estavam somente a serviço da estética cinematográfica, mas do homem John
Ford, que se apaixonou pela atriz. Ela e o diretor iniciaram, nesse filme,
relacionamento que durou até a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra
Mundial. Ford, católico e casado com Mary McBride Smith, não pretendia se separar.
A relação extraconjugal durou até o momento em que Hepburn se uniu,
desta vez publicamente, com Spencer Tracy, também casado. Segundo alguns, foi o
coração ferido de Ford que o conduziu ao alistamento militar e a cumpri-lo como
correspondente de guerra na Frente do Pacífico.
Mary Stuart,
rainha da Escócia apresenta Katharine Hepburn em seu décimo papel no
cinema[5].
Para alguns, ela tem, nesse filme, a primeira oportunidade de um desempenho
adulto — o que isso quer dizer, exatamente, não se sabe. Com o tempo vem a
consolidação na carreira. É conhecida atualmente como a melhor atriz dos
Estados Unidos. Sua interpretação é um dos pontos altos do filme.
Mary Stuart (Katharine Hepburn) |
Entretanto, o
desenvolvimento cinematográfico de Mary Stuart, rainha da Escócia é
consideravelmente prejudicado por dois importantes senões. O primeiro pode ser
observado na administração do que seria o tempo real da história. Parece que os
fatos não tiveram duração nem processo. Os acontecimentos se sucedem de forma
tal que dão a impressão de ocorrerem no mesmo instante, quando, na verdade,
tudo se passa ao longo de 27 anos. O segundo reside na interpretação do elenco
masculino, principalmente de Fredric March. Seu personagem se move e gesticula
qual um americano caipira do centro-sul dos Estados Unidos e não propriamente como
escocês. Talvez haja aqui algum exagero na avaliação, mas não dá para negar o
constrangimento que se sente diante dos rompantes másculos de Bothwell, com
mãos nas escadeiras e caminhando como se fosse distribuir alguns pontapés. Apesar
disso, March oferece bom momento ao se secar à lareira num gestual tão pouco
cerimonioso e praticamente despudorado. Essa sequência prolonga a primeira
entrada de Lord Darnley, contracenando com as damas de companhia de Mary. “Ah!
As quatro belas flores”, diz ele às mulheres. Uma completa: “Cinco, meu senhor,
agora que chegou”. Bom momento de humor é permitido pela recusa de Mary ao
casamento com prováveis pretendentes listados por Moray (Keith). Ela aponta os
defeitos de cada qual valendo-se apenas das palavras “cebolas”, “ronca”,
“orelha”, “cerveja”... Os momentos finais também são bem resolvidos,
principalmente a sequência do julgamento de Mary, mostrando-a trajada em negro,
de pé, tentando demonstrar altivez apesar de diminuída pelos juízes em trajes
claros, posicionados à distância e no elevado de suas tribunas. O epílogo,
notadamente cristão, mostra Mary a caminho do patíbulo, aparentando ser senhora
do seu destino, galgando estoicamente as escadas na escuridão entrecortada pelo
riscar de relâmpagos.
Mary Stuart (Katharine Hepburn) no tribunal que a condena à morte |
Merece destaque o
momento no qual Elizabeth, demonstrando preocupação com a situação escocesa,
diz: “Rebelião! Não gosto dessa palavra!”. Ainda mais quando se trata de uma
rebelião localizada tão próxima da Inglaterra. Nesse momento, Ford faz claro
posicionamento político a partir de suas origens irlandesas e favorável à causa
do IRA (Exército Republicano Irlandês) contra a dominação britânica.
No Festival de
Veneza, de 1936, John Ford recebeu a Special Recommendation por Mary
Stuart, rainha da Escócia.
Roteiro: Dudley Nichols, com contribuição escrita de
Mortimer Offner (não creditado), baseado em peça homônima de Maxwell Anderson. Música original: Nathaniel Shilkret. Música não original: Max Steiner. (não
creditado). Direção de fotografia
(preto-e-branco): Joseph H. August, Jack MacKenzie (não creditado). Direção de arte: Van Nest Polglase. Figurinos: Walter Plunkett. Maquiagem: Mel Berns (não creditado). Penteados de Katharine Hepburn: Louise
Sloane (não creditada). Gerentes de
unidade de produção: Bert Gilroy, Charles Stallings, Louis Shapiro (não
creditados). Assistente de direção: Edward
Donahue. Associado à direção de arte:
Carroll Clark. Decoração: Darrell
Silvera. Joias: Eugene Joseff (não
creditado). Gravação de som: Hugh
McDowell Jr., Denzil A. Cutler (não creditado). Efeitos especiais fotográficos: Vernon L. Walker. Ferramentas: Louie Anderson (não creditado).
Orquestração: Maurice De Packh. Associado à montagem: Jane Loring. Coreografia: Hermes Pan (não creditado).
Assistente de montagem: Robert
Parrish (não creditado). Direção
musical: Nathaniel Shilkret (não creditado). Edição de som: George Marsh (não creditado). Dublês: Jack Bond, para Fredrich March, Patricia Doyle (não
creditada), para Katharine Hepburn; Idalyn Dupret (não creditada), para Frieda
Inescort; Bill Worth (não creditado), para John Carradine; Georgia French. Revisão de roteiro: Meta Stern (não
creditada). Companhia de mixagem de som:
RCA Victor System. Tempo de exibição:
123 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 2002)
[1] A Universal se chamava 101 Bison-Universal quando
Ford estreou com O furacão. No mesmo 1917 chamou-se Universal Star Featurette e
Universal Butterfly. A partir de 1918 os nomes da companhia variavam,
dependendo do lançamento e da empresa à qual se associava: Universal Special,
Universal-Bluebird, Universal Special Atraction, Universal Special Featurette e
Universal.
[2] Morto em 1935, em acidente de avião sobrevoando o
Alaska.
[3] Os outros títulos indicados foram: Mulher
que soube amar (Alice Adams), de George Stevens; The
Broadway melody of 1936, de Roy Del Ruth; Capitão Blood (Captain
Blood), de Michael Curtiz; David Coperfield (David
Coperfield), de George Cukor; Os miseráveis (Les miserables), de
Richard Boleslavsky; Lanceiros da Índia (Lives
of a Bengal lancer), de Henry Hathaway; Sonho de uma noite de verão
(A
midsummer night’s dream) de William Diertele e Max Reinhardt; Oh,
Marieta! (Naughty Marietta), de W. S. Van Dyke; Vamos à América (Rugles
of red gap), de Leo McCarey; e O picolino (Top hat), de Mark
Sandrich.
[4] Concorreram com Ford, ao Oscar de melhor direção,
Henry Hathaway e Frank Lloyd.
[5]
Katharine Hepburn ofereceu desempenhos anteriores em Vítimas do divórcio (A
bill of divorcement, 1932), de George Cukor; Assim amam as mulheres (Christopher
strong, 1933), de Dorothy Arzner; Manhã de glória (Morning
glory, 1933), de Lowell Sherman; Quatro irmãs (Little women, 1933), de
George Cukor; A mística (Spitfire, 1934), de John Cromwell; Sangue
cigano (The little minister, 1934), de Richard Wallace; Corações
em ruínas (Break of hearts, 1935), de Philip Moeller; A mulher que soube amar (Alice
Adams, 1935), de George Stevens; e Vivendo em dúvida (Sylvia
Scarlett, 1936), de George Cukor.
Eu tinha uns oito anos quando vi este filme, e tenho presente a cena do enfrentamento de Mary e Elizabeth. Não me recordava que fosse de Ford, principalmente pela preferência que, nos filmes posteriores, ele demonstrou pelos grandes planos. Um enfrentamento fictício semelhante entre Mary e Elizabeth encontra-se na "Maria Stuart", de Schiller, peça que se passa entre a Torre de Londres e a Sala do Trono, e onde se colocam as questões concernentes à lealdade e à integridade, tanto na dubiedade do personagem Robert Dudley, Conde de Leicester (os "Olhos" de Elizabeth, indivíduo, ali, pintado como capaz das maiores duplicidades e que, entretanto, se apaixona pela Stuart, cabendo a ele a descrição da sua execução) e o jovem Mortimer, sobrinho do carcereiro Paulet, que, secretamente católico, arquiteta a fuga da rainha da Escócia, vindo a ser denunciado por Leicester e, após uma breve escaramuça com os guardas, vem a matar-se.
ResponderExcluirOlá, Ricardo!
ExcluirDesconheço a peça de Schiller. Mas fiquei curioso. Quanto ao mais, só posso dizer que os seus comentários sempre enriquecem e ampliam os limites das publicações.
Obrigado e forte abraço.
Nossa parece interessante, vou procurar para ver se acho para ver.
ResponderExcluirhttp://nossasdicasdicasnossas.blogspot.com.br/
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ExcluirAbraços.
Enriquecedora postagem .
ResponderExcluirVou assitir novamente com outro olhar .