domingo, 16 de fevereiro de 2014

HOWARD HAWKS PROJETA O PROFISSIONAL NO ARRISCADO CÉU DE "PARAÍSO INFERNAL"

O 'profissional', em sentido estrito, é uma decorrência da ética protestante segundo Max Weber. O sociólogo alemão o define, idealmente, como alguém obediente ao chamado da vocação. Seu amor próprio depende do cumprimento de uma atividade à qual se julga apto. Realizá-la é, acima de tudo, um dever, uma missão revestida de conteúdo sagrado. Desse ordenamento não pode abrir mão, não importam as circunstâncias ditadas por estados de ânimo, emoções e sentimentos. Não sei se Howard Hawks conhecia a sociologia de Weber. No cinema, ninguém melhor que ele abordou o 'profissional' tão ao gosto das elaborações idealtípicas do autor. Geralmente os cowboys, soldados, caçadores, coristas, policiais, gângsters e aventureiros de todos os matizes do universo hawksiano se enquadram no modelo. Um dos melhores exemplos é Geoff Carter (Cary Grant) de Paraíso infernal (Only angels have wings, 1939). O personagem é uma construção mítica, um tipo ideal de indivíduo, uma utopia da masculinidade tão ao gosto do diretor. Como em outros filmes de sua lavra, também está à frente de um fechado grupo de homens em cujo centro a mulher se posiciona como complemento necessário mas desestabilizador. 







Paraíso infernal
Only angels have wings

Direção:
Howard Hawks
Produção:
Howard Hawks
Columbia Pictures Corporation
EUA — 1939
Elenco:
Cary Grant, Jean Arthur, Richard Barthelmess, Thomas Mitchell, Sig Ruman, Rita Hayworth, Allyn Joslyn, Victor Kilian, John Carroll, Donald “Don Red” Barry, Noah Beery Jr., Manuel Ávarez Maciste, Melissa Sierra, Lucio Villegas, Pat Flaherty, Pedro Regas, Pat West e os não creditados Enrique Acosta, Harry A. Bailey, Wilson Benge, Dick Botiller, Stanley Brown, Cecilia Callejo, Candy Candido, Rafael Corio, Lew Davis, Vernon Dent, Curley Dresden, Elena Durán, Budd Fine, Eddie Foster, Tex Higginson, Raúl Lechuga, Jack Lowe, Francisco Maran, James Millican, Charles R. Moore, Forbes Murray, Tessie Murray, Aurora Navarro, Inez Palange, Ed Randolph, Al Rhein, Kay Robinson, Sam Tong, Victor Travers, Marion Wolfe.



Howard Hawks, cineasta que melhor concebeu os profissionais



"O melhor drama mostra um homem em perigo". Esta é a máxima de Howard Hawks, cineasta e piloto de aeronaves e lanchas. No set de filmagens, na terra, no ar e na água, atraía-o a velocidade e, por extensão, o gosto da aventura, a sensação de viver perigosamente. O diretor se projeta nos protagonistas de seus filmes. Para eles, o presente é o tempo que vale. Têm o pensamento ligado, exclusivamente, aos exatos momentos e contextos dos riscos corridos. Vigiam os próprios movimentos e o entorno da ação. Qualquer descontrole, mecânico ou emocional, pode ser fatal. Por isso, é conveniente afirmar, com base em Veillon[1], que são tão centrados e pontuais os vigorosos personagens masculinos das aventuras cinematográficas de Hawks. Vivendo sob o signo da aceleração, obrigam-se à rígida suspensão dos sentidos. Submetidos à permanente tensão física, evitam, em consequência, as pressões dramáticas, as armadilhas do amor, os conflitos do coração. Apagam o passado e não pensam no futuro. Importam-se somente com o aqui e agora. Nos filmes do diretor, esse código vital imprime sentido ao ethos de aviadores e automobilistas. Da mesma forma, orienta o modo de ser de cowboys, coristas, gângsters, policiais e caçadores. Generalizando, todos os personagens de Hawks agem como pilotos no controle de existências metaforicamente assemelhadas a bólidos metafísicos, sujeitos, portanto, aos mais diversos golpes do imponderável. 


Hawks explora magistralmente esse universo em Paraíso infernal — quarta das suas cinco incursões pelo tema da aviação. As outras são Conquistando os ares (The air circus, 1928), A patrulha da madrugada (The dawn patrol, 1930), Heróis do ar (Ceiling zero, 1935) e Forja de heróis (Air force, 1943). Cary Grant, protagonista de Paraíso infernal, marca presença em mais quatro filmes do diretor: Levada da breca (Bringing up baby, 1938), A noiva era ele (I was a male war bride, 1949), Jejum de amor (His girl friday, 1940) e O inventor da mocidade (Monkey business, 1952).



Geoff Carter (Cary Grant), à direita, com Bonnie Lee (Jean Arthur), Dutch (Sig Ruman), Sparks (Victor Kilian) e Joe Souther (Noah Beery Jr.)


Paraíso infernal tem ação passada em Barranca, cidade portuária de algum país da América do Sul (Chile? Peru? Equador?). A caracterização do lugar  cercado por montanhas que lembram os Andes, acossado por tempestades e espessas camadas de neblina  preserva o exotismo e o mistério típicos das visões que o cinema estadunidense, ruim de geografia, endereça às plagas subdesenvolvidas. Uma mulher — causa de desestabilização nas tramas do diretor — introduz o espectador na história. Trata-se de Bonnie Lee (Arthur), decidida corista americana do Brooklyn em viagem ao Panamá, onde um emprego a espera.


Bonnie aproveita a escala do navio em Barranca para espairecer. Em terra, faz amizade com os pilotos Les Peters (Joslyn) e Joe Souther (Beery Jr.), que buscam a alegre companhia do sexo oposto. Ao ser abordada nas vielas escuras e nevoentas, responde: “São americanos! Pensei que eram trapaceiros”. A fala, de conteúdo tão etnocêntrico, não passa despercebida. Entretanto, isso importa pouco. Mais significativos são os desdobramentos do encontro de Bonnie com os rapazes. Eles a introduzem no universo hawksiano, um fechado grupo masculino reunido no misto de bar, mercearia, pousada, agência postal e empresa aérea de John van Ruyter (Ruman), vulgo Holandês (Dutchy, no original).



Bonnie Lee (Jean Arthur) e, com o violão, o cantor vivido por Manuel Àlvarez Maciste

O profissional Geoff Carter (Cary Grant) e a desestabilizadora Bonnie Lee (Jean Arthur)


Atraída pelo lugar, Bonnie esquece o Panamá e resolve ficar. Torna-se observadora participante, mais de um modo de vida que propriamente de uma história. Aliás, em alguns filmes de Hawks as narrativas metódicas contam muito pouco. Ao diretor interessam o indivíduo e a situação que o determina, suas ações e seu código de ética. Paraíso infernal é exemplo disso, da mesma forma que Onde começa o inferno (Rio Bravo, 1959), Hatari! (Hatari!, 1962) e Eldorado (Eldorado, 1967), para citar apenas esses. São filmes que, grosso modo, não se ordenam em torno de um eixo narrativo de muitos desdobramentos. Seus roteiros se apoiam em tramas simples, às vezes rudimentares. Assemelham-se mais a fiapos de argumentos que a descrições carregadas de pleno sentido. Apesar disso, fornecem agudas observações do cotidiano rotineiro e enganadoramente banal de um grupo de indivíduos afligidos pelas contradições típicas do universo tão caro ao cineasta: dúvida versus certeza, responsabilidade versus convicção. Os polos destas dicotomias pressupõem escolhas traduzidas como riscos. Mas, mais do que se importar com a opção tomada, a coletividade que deposita esperanças no herói hawksiano sabe o fundamental: ele é plenamente confiável; não fraquejará em público. Nada o desviará da missão a cumprir. Certamente, a simplificação das histórias contadas por Hawks é imposta pelo desenho do herói. O cineasta apresenta não a imagem de um homem real, que encontra prolongamento no cotidiano. O protagonista de seus filmes é uma construção mítica, um tipo ideal de indivíduo, uma utopia da masculinidade. O diretor projeta seus valores numa abstração e para ela orienta a atenção do espectador. Evita distraí-lo com as áreas de dispersão encontradas nos processos descritivos mais elaborados e complexos.


Geoff Carter (Grant, em papel a princípio pensado para Clark Gable) é o 'Homus hawksianus' de Paraíso infernal. É o chefe dos pilotos que movimentam a empresa aérea do Holandês. Os precários aviões levam principalmente correspondência e cargas de todos os tipos. O negócio atravessa fase ruim. Pode melhorar com a possibilidade de novo e lucrativo contrato. Para consegui-lo deve, da forma em que está, revelar-se eficaz e confiável. Carter não mede esforços para reerguer a companhia. É profissional rigoroso, duro e positivo. Também é leal, honesto, companheiro e franco. Não mede palavras e atos. Afirma e demonstra o que sente, sem rodeios. Nada esconde. É o que demonstra ao demitir o piloto Gent Sheldon (Carroll), por se recusar a transportar nitroglicerina a uma exploração petrolífera. Com a mesma sinceridade proíbe o amigo Kid Dabb (Mitchell) de voar após confirmar seus problemas visuais. Diante dele, à beira da morte, não o ilude com falsas esperanças.



Thomas Mitchell no papel de Kid Dabb

Tensão em terra diante de um perigo no céu de Paraíso infernal


O mundo de Carter está limitado ao campo de ação da empresa. Fora desse entorno é como se mais nada existisse. Ele tem ciência dos riscos que espreitam a atividade levada a cabo em aviões e rotas pouco confiáveis. Sabe também que os pilotos reunidos em sua volta são indivíduos responsáveis por seus atos. Optaram livremente pelo trabalho. Foram convenientemente informados dos perigos. Por isso, não tem crises de consciência quando alguns morrem nos vários acidentes que fazem o cotidiano da empresa. Conforma-se dizendo: “Ele não era bom o bastante” — comentário curto e seco endereçado a Joe Shouter, falecido ao se chocar contra a pista ao tentar pousar sob baixa visibilidade. Bonnie se horroriza com a frieza das palavras. Depois, ato contínuo, escandaliza-se ao ver Carter se apoderar do bife que seria servido ao piloto desaparecido. Mas, conforme Sérgio Augusto, não há crueldade nem cinismo tanto na fala como no gesto. Sobram, sim, pragmatismo e estoicismo[2]. Bonnie não demora a compreender isso. Logo percebe que está diante de uma realidade revestida de fugacidade. “Puxa, tudo aqui acontece tão rápido”, diz.


Num mundo assim, vale somente a vida. E viver ali é muito pouco seguro. Por isso, os mortos são imediatamente esquecidos, como Joe, expulso da lembrança dos companheiros tão logo os deixou. O esquecimento é terapêutico. Aos que ficam, é o método que permite encontrar forças ao necessário prosseguimento da instável existência que levam. O mundo fugaz não permite demonstrações de afetos, lembranças e o acúmulo de bens. Cada qual guarda o estritamente necessário. As recordações são apagadas. A memória é uma armadilha. É inútil a quem não tem certeza de viver o suficiente para contar uma história. Pode desviar a atenção das ações que precisam ser cumpridas no presente, o único tempo que de fato importa.



Quando sobre tempo, abrem-se permissões à confraternização e celebração da vida que, no mais das vezes, transcorre em meio à fugacidade


Kid Dabb, o melhor amigo de Carter, tem clara percepção do problema. Gravemente ferido em acidente provocado por um condor que atravessou o visor do avião, está certo de que não se recuperará. Pede aos companheiros para morrer sozinho. Não quer ser visto na condição de moribundo. Ninguém precisa guardar sua imagem com pescoço quebrado. A fortaleza Carter é abalada com o passamento do parceiro. Mas a sensação de pesar é breve. Dura o tempo necessário para o personagem de Manuel Maciste entoar ao violão uma balada de despedida. Tudo volta à normalidade com o fim do nevoeiro. O bom tempo permite o retorno da companhia às atividades de sempre. Kid é logo esquecido. Novamente, os aviadores estão em ação. A situação de Carter e Peters, ligeiramente avariados, cada qual com um braço na tipoia, torna-se irrelevante. São profissionais. Têm um trabalho a cumprir, não importa o estado ou a situação em que se encontram. O melhor exemplo disso, provavelmente, é Tex (Barry), o sentinela da cordilheira. Mora sozinho e distante em uma cabana de posição elevada, vigiando os perigos à espreita dos aviadores. O rádio é seu único contato com o mundo.


O novo piloto, Bat MacPherson (Barthelmess), confirma a tese da memória como armadilha. Apresenta-se acompanhado da esposa Judy (Hayworth aos 21 anos, em seu primeiro papel de destaque). Na verdade, chama-se Kilgallon, nome que traz lembranças terríveis a quem o ostenta e aos pilotos de Carter. Tem fama de covarde. Abandonou um avião em pane, largando à própria sorte o companheiro de voo, irmão de Kid que acabou perecendo. Ninguém o quer. Entretanto, a necessidade da empresa obriga Carter a contratá-lo. Recebe as missões mais perigosas. É um homem atormentado, acossado pela memória, em busca de redenção. Carter não revela mas compreende MacPherson. Sabe que os homens ostentam uma fortaleza aparente. São frágeis, dominados por desejos e sentimentos pouco nobres, nem sempre passíveis de controle. Tem conhecimento das marcas que as recordações ruins produzem nos indivíduos. Por isso, recrimina Judy. Ela não sabe do passado do marido e tem curiosidade para descobrir as causas de tanta aversão. Mas a MacPherson também é ocultado que ela fora casada com Carter. Disso ele não necessita tomar conhecimento. Algumas memórias são exclusivamente individuais. Nada justifica o desejo de compartilhá-las.


Geoff Carter (Cary Grant) e a desestabilizadora Judy (Rita Hayworth)



Entretanto, MacPherson tem possibilidade de se redimir. Poderia ter abandonado o mortalmente ferido Kid no trimotor em chamas. Arriscou-se para devolvê-lo ao solo. Diante desse ato heroico o passado ruim de Kilgallon é esquecido. O atormentado personagem vivido por Richard Barthelmess agora faz parte do grupo.


Paraíso infernal, segundo o diretor, foi baseado em fatos. MacPherson, por exemplo, remete a alguém que Hawks viu saltar de um avião, abandonando o companheiro indefeso. No filme, as ligações entre os incidentes são fictícias — atesta —, mas o relacionamento entre Bonnie e Carter é autêntico, também "o lugar (...), um pequeno porto da Grace Line, na América do Sul”, afirma o cineasta[3].


Somente a presença feminina desestabiliza o universo masculino de Hawks. A mulher significa o imprevisível, pois, segundo o diretor, não controla emoções. É como a natureza, tão perigosa quanto a tempestade e a névoa que ofuscam a visibilidade dos pilotos. Não é à toa que Carter acusou Bonnie pela morte de Joe Shouter. O piloto estava apressado para jantar com ela. Por isso, não conseguiu vencer a cerração e pousar em segurança. Da mesma forma que a neblina, a lembrança de Bonnie o ofuscava. Adiante, preocupada com a segurança de Carter, a apaixonada personagem de Jean Arthur dispara o revólver acidentalmente contra ele, impedindo-o provisoriamente de voar. Mas, apesar de tudo, Hawks sabe, como Carter, que a impulsividade feminina é o contraponto necessário à racionalidade masculina. Não para menos MacPherson se faz acompanhar de Judy. A mulher é um complemento necessário, da mesma forma que os riscos da natureza. São dois elementos desafiadores, misteriosos, que abrandam a rotina e encantam um setor tão previsível, mecânico e masculino da existência.



Rita Hayworth vive Judy em Paraíso infernal


Elementos dramáticos e narrativos de Paraíso infernal são aproveitados no roteiro que Kenneth Gamet e Barry Trivers escreveram para Os tigres voadores (The Flying Tigers, 1942), filme de guerra dirigido por David Miller e protagonizado por John Wayne.






Roteiro: Jules Furthman, Howard Hawks (não creditado), Eleanore Griffin (não creditada), William Rankin (não creditado), com base em história de Jules Furthman e Howard Hawks. Direção de fotografia (preto-e-branco): Joseph Walker. Fotografia aérea: Elmer Dyer. Montagem: Viola Lawrence. Música: Dimitri Tiomkin. Direção musical: Morris W. Stoloff. Consultor técnico e chefe dos pilotos: Paul Mantz. Efeitos especiais: Roy Davidson, Edwin C. Hahn. Direção de arte: Lionel Banks. Maquiagem: Robert J. Schiffer. Assistente de direção: Arthur S. Black Jr. Mixagem sonora: Western Electric Sound System. Figurinos: Robert Kalloch. Tempo de exibição: 121 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1994)




[1] VEILLON, Olivier-René. O cinema americano dos anos cinquenta. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 95.
[2] AUGUSTO, Sérgio. Globo exibe Paraíso infernal, de Hawks. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 maio 1987. Ilustrada, p. 35.
[3] HAWKS, Howard. In: SADOUL, Georges. Dicionário de filmes. Porto Alegre: L&PM, 1993. p. 301. Parênteses de José Eugenio Guimarães.