Esta apreciação, escrita em 1982, aborda uma das melhores
realizações do cinema brasileiro: O assalto ao trem pagador (1962), de
Roberto Farias. O ponto de partida é o notório roubo ao comboio SAP-21, acontecido
nas proximidades de Japeri, estado do Rio de Janeiro, em 14 de junho de 1960.
Seis homens tomaram a composição e se apoderaram de 27 milhões de cruzeiros —
valores da época — destinados ao pagamento de salários dos ferroviários da
Central do Brasil. O golpe, ousado e inédito em terras brasileiras, incendiou o
imaginário popular e mexeu com os brios da polícia e jornalistas. Chegaram a
acreditar que uma quadrilha internacional, integrada por gente de boa condição
financeira, fizera o serviço. Passado muito tempo, investigações conduzidas em
bases mais racionais apontaram para a dura verdade. Roberto Farias, apoiado em
roteiro enxuto, conta contundente e cruel história feita no cruzamento do drama
com a crônica policial, a denúncia e a tragédia. Poucas vezes a estrutural
exclusão social brasileira, alimentada principalmente por critérios raciais — e
que ainda atinge amplos setores da população —, teve exposição tão aguda pelo
cinema. O assalto ao trem pagador é encenação realista, em amplo
espectro, da miséria que caracteriza o Brasil. Apoia-se em interpretações
fortes e consistentes, principalmente do então novato Eliezer Gomes no
antológico papel de Tião Medonho. A direção é precisa e objetiva. Também se
destacam a expressiva direção de fotografia de Amleto Daissé e a original
trilha musical de Remo Usai, essencialmente cinematográfica.
O assalto ao trem
pagador
Direção:
Roberto Farias
Produção:
Roberto Farias, Herbert Richers,
Arnaldo Zonari
Herbert Richers Produções
Cinematográficas
Brasil — 1962
Elenco:
Eliezer Gomes, Luiza Maranhão,
Reginaldo Faria, Ruth de Souza, Átila Iório, Jorge Dória, Helena Ignêz, Dirce
Migliaccio, Miguel Rosenberg, Grande Otelo, Clementino Kelé, Miguel Ângelo,
Wilson Grey, Oswaldo Louzada, Mozael Silveira, Billy Davis, Francisca "Chica"
Xavier, Nelson Dantas, Antônio Carlos Pereira, Arnaldo Montel, Jorge Coutinho,
Paulo Copacabana, Kleber Drault, Ricardo Luna, Milton Leal, Almeidinha, Jorge
Abicalil, Mario Batista, Waldemar Regis, Nascimento Gomes, Lícia Magna, Jecy
Gonzales, Regina Maria, Birgita Westman, José Lopes, Philô e sua equipe de
repórteres, Ambrósio, e os não creditados Álvaro Aguiar, Dóris Carvalho, Carlos
Cristiano, Cosme dos Santos, Fregolente, Gracinda Freire, Mário Lago, Dib
Lutfi, Vera Lúcia, Procópio Mariano, Paulo Rodrigues, Joel Rosa, Karen Wanzer.
O diretor Roberto Farias |
Sobre assaltos a
trens pagadores sempre preferi o brasileiro ao britânico. Graças ao filme
praticamente impecável de Roberto Farias — história policial tensa, socialmente
compromissada, dramaticamente muito bem encenada e magnificamente interpretada
—, a desventura da trágica e infeliz quadrilha de Tião Medonho sempre soou mais
fascinante — e exemplar da brasilidade — que as peripécias de Ronald Biggs,
inclusive pelos tratamentos e destinos extremamente diferenciados dados aos
personagens de ambas as tramas.
Biggs era um dos
17 integrantes do grupo que se apropriou, em 1963, na madrugada de 7 de agosto,
de aproximados 2,6 milhões de libras esterlinas do expresso postal (ou pagador)
no percurso Glasgow-Londres. O assalto brasileiro precedeu o britânico em três
anos. Aconteceu em 14 de junho de 1960. Aproximadamente 27 milhões de cruzeiros
foram levados do trem pagador SAP-21 — conduzido pelo maquinista Venceslau José
de Castro auxiliado pelo foguista Pedro José da Silva — quando a composição
chegava à notória Curva da Morte, perto de Japeri/RJ. Tinha por destino final a
Estação Dom Pedro II ou Central do Brasil, no Rio de Janeiro. A operação, por
conta de seis homens, foi rápida, precisa e inédita no país.
Causa espécie o
tratamento dos dois assaltos pela polícia, imprensa e políticos da terra.
Enquanto a quadrilha de Tião Medonho foi implacavelmente caçada por mais de um
ano, até a morte, prisão e achincalhe público de seus componentes — quase todos
negros, pobres e favelados —, o inglês Ronald Biggs, procurado inclusive pela
Interpol, não encontrou praticamente problema algum em escapar para o Brasil e
viver no Rio de Janeiro em plena liberdade, gozando da fama e do dinheiro conseguidos
na operação. Apesar dos apelos britânicos, as autoridades brasileiras nunca se dispuseram
a extraditá-lo. Biggs — reconhecidamente um fora da lei — chegou a passar por
atração turística, sempre paparicado por colunistas sociais, sabujos do
jornalismo e condestáveis do baixo e alto cleros políticos.
Os pouco mais de
27 milhões de cruzeiros levados do trem pagador brasileiro eram, à época,
fortuna considerável. Rudimentarmente guardados pelo funcionário Cícero de
Carvalho, destinavam-se aos salários de aproximados mil empregados da Central
do Brasil. Os assaltantes interromperam o comboio após dinamitar a via. Entraram
nos vagões atirando. Logo dominaram a tripulação e se apossaram do dinheiro. Seria
um trabalho totalmente limpo — segundo a linguagem popular — não fosse a morte
de um agente ferroviário cumprindo a folga e viajando em despreocupada carona.
A alta quantia
mais a audácia dos criminosos e rapidez da operação logo chamaram a atenção de
policiais e jornalistas. O assalto ao trem pagador da Central do Brasil tomou
conta dos noticiários e mobilizou investigadores. Afoitos na busca aos responsáveis,
gastaram energia às tontas. Partiram do pressuposto de que uma quadrilha
internacional, composta de gente em boa condição financeira, executara o
serviço. Pistas encontradas no local do assalto — cheques de viagem, restos de uísque
e cigarros importados — assim levaram a supor. Chegou-se a cogitar que brasileiros
não teriam preparo para levar a cabo ação de tamanha envergadura.
Com tantas pistas
falsas, alimentadas principalmente pela imprensa sensacionalista — mais
interessada em vender jornais —, as diligências, coordenadas pelo delegado Amil
Ney Rachid, de Duque de Caxias, terminavam invariavelmente em becos sem saída.
O assalto iria completar um ano. As investigações entraram em novo patamar
quando receberam o suporte do célebre detetive Perpétuo Freitas da Silva, da
polícia do Rio de Janeiro. Metódico, conhecedor do submundo carioca, abastecido
por informantes de confiança e apoiado em anotações pessoais que formavam um
precioso arquivo sobre ações da marginalidade, não demorou para elucidar o
crime. Percebeu semelhanças entre o assalto ao trem pagador com dois golpes que
tiveram participação de Nilo Peru. Com este nome chegou a Anastácio de Souza e
aos irmãos Manoel, Zeferino e Sebastião, o Tião Medonho. As deduções estavam
corretas. Em maio de 1961 o caso estava praticamente elucidado. A polícia sabia
a quem procurar. Nilo Peru — para muitos a liderança intelectual da quadrilha —
jamais foi encontrado. Há suspeitas de seu assassinato pelos comparsas, por
causa de desavenças sobre os gastos do dinheiro. Os demais foram presos. Tião Medonho,
gravemente ferido na tentativa de escapar a uma emboscada, foi capturado à
beira da morte, na casa da amante, no subúrbio carioca de Barros Filho. As
sobras do assalto reapareceram aos poucos, em esconderijos diversos.
Ao centro, interpretado por Jorge Dória, o delegado responsável pelas investigações |
O assalto ao trem
pagador é, provavelmente, o melhor filme de Roberto Farias.
Representa significativo salto de qualidade se comparado aos precedentes. Também
é um dos grandes títulos do cinema brasileiro. Antes de realizá-lo, o diretor
teve boa experiência no cinema policial ao abordar livremente a trajetória do
notório bandido paulista Promessinha, rebatizado como Passarinho e interpretado
por Reginaldo Faria em Cidade ameaçada (1960). Roberto
Farias se impôs lentamente e com vontade no mundo do cinema. Antes de passar à realização,
aprendeu o bê-a-bá do ofício ao participar de diversas equipes de filmagens no
Rio de Janeiro e São Paulo. De início, fez assistência de direção de Aviso
aos navegantes (1950), de Watson Macedo e, também do diretor, Aí
vem o barão (1951), É fogo na roupa (1952), O
petróleo é nosso (1954), Rio fantasia (1957) e A
grande vedete (1958). Na mesma função trabalhou em Areias ardentes (1952),
de J. B. Tanko, e O diamante (1956), de Euripídes Ramos. Experimentou a gerência
de produção — Maior que o ódio (1951), de José Carlos Burle, O
primo do cangaceiro (1955), de Mario Brasini, e Depois eu conto (1956),
de José Carlos Burle e Watson Macedo — e a assistência de produção para Carlos
Hugo Christensen — Mãos sangrentas (1955), Leonora dos sete mares (1955) — e
Ruy Costa — Tira a mão daí! (1956).
Roberto Farias estreou
na direção em 1957. Prudente, fincou os pés no já conhecido terreno da comédia
popular que lhe permitiu observar os métodos dos realizadores José Carlos
Burle, J. B. Tanko e Watson Macedo. A chanchada Rico ri à toa se apoia nos
talentos e popularidades de Zé Trindade e Violeta Ferraz. O segundo filme, No
mundo da lua (1958), também chanchada, tem Walter D'Ávila, Violeta
Ferraz e o irmão Reginaldo Faria. O seguinte, realizado com maior segurança,
seria a oportunidade de se firmar no panorama cinematográfico. Infelizmente, o
bom Cidade
ameaçada (1960) não vingou. Fracassou nas bilheterias. Ainda é um
título pouco conhecido. A culpa disso, segundo Glauber Rocha, é da visão estreita[1]
do produtor A. J. Orsini.
A quarta
realização tem sabor de retrocesso. É como se Roberto Farias voltasse à
segurança do universo conhecido para mais uma chanchada: Um candango na belacap
(1961), com Grande Otelo e Ankito. Por outro lado, aproximou-o de Herbert
Richers, produtor fundamental à existência do seguinte O assalto ao trem pagador.
Pode-se dizer que
a gestação de O assalto ao trem pagador começou no próprio ano em que o fato teve
lugar. Roberto Farias estava na França com Cidade ameaçada — indicado à Palma
de Ouro no Festival de Cannes — quando recebeu as notícias sobre o crime. Logo
se viu diante de uma boa história para o cinema. Na volta ao Brasil, começou a
trabalhar no assunto. Acompanhou de perto o trabalho da imprensa e as
investigações empreendidas pelo delegado Amil Ney Rachid. Fez laboratório e
pesquisa de campo. Conheceu de perto as miseráveis condições de vida dos
favelados, destituídos dos mais elementares princípios do direito e acossados
sem o menor pudor por jornalistas e policiais. Leu tudo sobre o caso e
entrevistou personalidades posicionadas nos dois lados da investigação.
Com o rumo da
história definido, procurou Glauber Rocha[2].
Queria ajuda para escrever o roteiro. Envolvido com a realização de Barravento,
o cineasta baiano indicou o repórter fotográfico da revista O
Cruzeiro, Luiz Carlos Barreto. Pelo que se sabe, ele e Farias se
reuniram algumas vezes, mas pouco produziram de efetivo. Apenas trocaram ideias
sobre o assunto. O realizador escreveu o guião praticamente sozinho. Inseriu à
peça muito do que testemunhou das diligências policiais e do comportamento dos
jornalistas. O assalto ao trem pagador guarda fidelidade aos fatos, mas Farias
desenvolveu o tema com liberdade de criação. O roteiro vigoroso, preciso e
enxuto teve o respaldo de Alinor Azevedo e Otto Lara Rezende. O aval de Rezende
foi fundamental para José de Magalhães Lins — cinéfilo e sócio do Banco
Nacional — emprestar cerca de 18 milhões de cruzeiros para as filmagens. O banqueiro
impôs apenas uma condição[3],
aceita sem objeções pelo diretor: Herbert Richers seria um dos produtores.
O assalto
propriamente é apenas ponto de partida a uma história feita de drama, crônica
policial, crítica social e tragédia. É apresentado de imediato, em começo tenso
e antológico. As imagens iniciais o antecipam. Os acontecimentos posteriores são
os que mais interessam: o destino dado à quantia roubada e sua interferência na
vida dos assaltantes, possuidores de uma riqueza que jamais teriam pelas vias
normais. É quando começam as trampas da desdita. Que podem fazer, concretamente,
homens que nunca ultrapassaram os limites da pobreza e da exclusão social, com
tanto dinheiro? Como gastá-lo para suprir as necessidades mais básicas sem
chamar a atenção? Uma das condições impostas por Grilo (Reginaldo Faria) — branco
e único não favelado do grupo — logo após a partilha é a de evitar as tentações
do consumo. Cada qual deve usar, no máximo, ao longo de um ano, apenas 10% do
valor recebido. É uma obrigação a ser acatada por todos. Quem descumpri-la será
morto, não importa quando e onde. Então, todo cuidado é pouco. Polícia,
vizinhos e conhecidos podem desconfiar de qualquer aquisição além dos padrões corriqueiros.
A premissa funciona como prisão. Potencialmente, cada integrante da quadrilha
está imobilizado, sem muito poder fazer, às vultuosas quantias guardadas.
Reginaldo Faria interpreta o assaltante Grilo, uma alcunha para o nunca encontrado Nilo Peru |
Margarida
(Migliaccio) — realista esposa de Edgar (Rosenberg) — praticamente sofre um
colapso nervoso ao vê-lo em casa com tanto dinheiro, depositado no interior de
um vaso sanitário inaproveitado. Contas bancárias nem pensar. "Pobre não
pode passar de ladrão de galinhas" — diz a mulher. À frente, diante do
dispêndio do marido na aquisição de um automóvel de segunda mão, afirma: "Onde
já se viu favelado ter carro?". É o grande paradoxo do roteiro de
influências neorrealistas: o dinheiro não possui valor, pois está impedido de circular.
Aos favelados estão barradas as possibilidades de alterações qualitativas na existência,
mesmo que possuam condições materiais para tanto. Resta a Tião Medonho (Gomes)
a opção de pequenos gastos com a aquisição de alguns bens para as duas famílias
que sustenta, inclusive brinquedos para os filhos. Deverá permanecer no
trabalho, como funcionário de baixo escalão, para manter as aparências. Então,
só resta improvisar esconderijos para o dinheiro. Um dia, imagina, poderá
servir à educação dos filhos.
A revelação de O assalto ao trem pagador: Eliezer Gomes no papel de Tião Medonho |
As tensões
crescem entre os membros da quadrilha desde o momento da partilha. É quando se
percebe, pela primeira vez, a presença de Eliezer Gomes, o intérprete de Tião
Medonho. Preenche a tela e a banda de som com sua movimentação e voz. Fora, até
então, mero funcionário público de 42 anos sem experiência na atuação. Oferece
um desempenho afinado, poliédrico, insuperável. Pode passar de sujeito cordato
(como normalmente aparenta ser), pai carinhoso e marido compreensivo a um
vulcão prestes a explodir, violento, na imposição de sua ascendência sobre os
demais. A ele pertence o filme. Tião garante o cumprimento da barreira dos 10%
junto aos companheiros. Em princípio, não é algo difícil de fazer, graças ao
seu poder de intimidação acrescido do fato de que todos são seus vizinhos, exceto
Grilo. Este, branco, louro e de olhos azuis, mora em condições remediadas na
Zona Sul do Rio. Por suas características, põe-se acima dos demais e gasta além
das medidas acordadas, sem despertar suspeitas. O rompimento do acordo, baseado
em critérios raciais, é explosivo. Expõe uma das principais fissuras, não só do
bando mas da sociedade brasileira em sua conformação histórica. Negros e
favelados estão, por suas próprias origens, condenados à marginalidade
estrutural. Basicamente, estão impedidos de ascender. O assalto serve como
metáfora para acirrar a realidade dessa impossibilidade prática. Inclusive pelo
fato logo revelado acerca dos membros da quadrilha: não são bandidos na estrita
acepção do termo. São homens marginalizados, acuados pela miséria, vítimas de
uma situação que não podem individualmente solucionar por seus próprios méritos.
O dinheiro não resolve o problema. Apenas queima dedos, gera desconforto, impõe
a paranoia e desencadeia a violência.
As condições de
vida na favela são chocantes. Crianças nuas e barrigudas, brincando próximas ao
esgoto correndo sob céu aberto, são os aspectos mais evidentes. Também há o
fantasma da morte, sempre presente. Pode-se morrer devido à violência ou por
banais problemas de saúde. Cachaça — pequena e marcante interpretação de Grande
Otelo —, membro da quadrilha sempre alcoolizado — para alegria dos guris —,
encontra na bebida o refúgio para suportar a vil situação. De que vale o
dinheiro que recebeu? Diante do féretro de um menor, pronuncia com cortante
ênfase: “Quando morre uma criança na favela, todo mundo devia cantar, pois é
menos um pra se criar nessa miséria”.
Grande Otelo no pequeno e marcante papel de Cachaça |
Na exposição da cruel
exclusão característica da estratificação social brasileira, O assalto
ao trem pagador é um dos painéis mais fortes e contundentes. Explicita o
alijamento econômico de amplos setores e seus prolongamentos lógicos nas
esferas social, política e civil. Tião Medonho e os demais estão destituídos de
todos os direitos básicos que comportam a cidadania. Disso são exemplares os
tratamentos que recebem da polícia e dos jornalistas posicionados no papel de parceiros
da investigação e repressão. Estão constantemente ameaçados. Têm os casebres
invadidos e revirados por qualquer pretexto. Ao final, Zulmira (Maranhão) — já
na condição de viúva de Tião Medonho — se desespera com o acintoso assédio de repórteres
e investigadores. Diante dos filhos menores e assustados, responde à agressão com
golpes de machado deferidos contra o guarda-roupa, no que revela significativa
parte do dinheiro roubado.
Zulmira (Luiza Maranhão) e Tião Medonho (Eliezer Gomes) |
A direção de
Roberto Farias é exemplar, principalmente por manter o ritmo em tensão
crescentemente acelerada e por tocar em mazelas sociais que expõem a cruel e
original desigualdade brasileira. Dos dois lados do aparato legal a violência
surge como forma conveniente de resolver conflitos. Tião Medonho procura manter
os que lhe são próximos dentro de limites condizentes com o tolerável, para
evitar suspeitas. Mesmo quando dialoga, está no limite da explosão violenta.
São exemplares os momentos em que enquadra Cachaça — sempre falando demais
devido à bebida —, Edgar — em decorrência da paranoia crescente de Margarida —,
ou o sobrinho Miguel Gordinho (Ângelo) — que se torna, segundo a caracterização
de um repórter, capitalista do morro por adquirir vários barracos para aluguel,
com os quais explora acintosamente os mais necessitados. Tião também cumpre o
trágico mandamento de matar, sem piedade, quem põe em risco a segurança dos
demais. É exemplar o instante da execução do tio de Edgar: "Tu é o valente
que não tem medo de homem, não é? Levanta que não mato homem sentado". É
uma das falas antológicas do cinema brasileira. Ou quando acerta as contas com
o perdulário Grilo, momento em que se acirram as diferenças sociais e raciais
em níveis raras vezes permitidos pela dissimulação brasileira — tão zelosa no
ocultamento dessas questões. O personagem vivido por Reginaldo Faria,
totalmente imobilizado, sabe que morrerá. Sem nada a perder, dispara:
"Você tem inveja de mim, Tião. Você é feio. Eu sou branco e bonito. Seu
destino é viver na favela. Eu tenho cara de ter carro, tenho olho azul e você
tem cara de macaco". Vêm à tona, com força, as permissões e interdições nacionais
decretadas pela aparência, inclusive a cor da pele.
Edgar (Miguel Rosemberg) e Margarida (Dirce Migliaccio) |
O realismo de O assalto
ao trem pagador contou com dois poderosos aportes: a direção de
fotografia de Amleto Daissé, tão valorizadora dos cenários e dos personagens, ainda
mais ao destacar suas expressões; e a trilha musical de Remo Usai. As imagens
de Daissé só não são estonteantes devido ao caráter verídico. Descortinam trajetórias
construídas sobre o chão da mais bruta miséria. Por outro lado, também se aliam
às intenções do diretor, pois auxiliam a contar a história de forma
cinematograficamente condizente, graças aos posicionamentos e movimentos da
câmera. Já a música é do maior expert brasileiro no ramo. Usai se especializou
na composição cinematográfica. Segundo consta, aprendeu as artes do ofício em
Hollywood, junto a mestres como Miklós Rózsa. A trilha foi diretamente inspirada
nas imagens enquanto se desenrolavam ao compositor, na fase da moviola. Graças
a isso, as notas, compassos e comentários melódicos estão inventiva e
perfeitamente integrados às cenas, momentos, personagens e ações.
Na divisão do dinheiro do assalto: em primeiro plano, Tião Medonho (Eliezer Gomes) e Tonho (Átila Iório); ao fundo, Grilo (Reginaldo Faria) |
Quanto às
interpretações, se há Eliezer Gomes ocupando todos os espaços, também há Grande
Otelo no pequeno mas essencial desempenho de Cachaça. Conforme admitiu, é o
melhor personagem de sua carreira. Confessou que morou na favela durante a produção,
para sentir as agruras de um favelado. Mergulhou tanto no papel a ponto de
temer pela sanidade mental, segundo testemunho de Roberto Farias[4].
Destaca-se ainda a sóbria e contida atuação de Jorge Dória como o delegado que
conduz as investigações. Duro, arbitrário, mas racional e atento a detalhes,
acaba se tornando, ao final, admirador de Tião Medonho desde que o aprisionou
praticamente moribundo. Dirce Migliaccio garante credibilidade como a pobre e
paranoica Margarida. O mesmo se dá com Reginaldo Faria.
Tião Medonho (Eliezer Gomes) e o filho Queiróz (Cosme dos Santos) |
Praticamente não
há senões em O assalto ao trem pagador, a não ser a encenação excessivamente
exagerada da futilidade granfina da Zona Sul carioca por parte de Marta
(Ignez). Pelo menos são momentos de pouca duração e não chegam a ser piores que
o estereótipo da burguesia no segmento Zé da Cachorra, de Miguel Borges, em
Cinco
vezes favela, também de 1962. Para contrabalançar tais equívocos, há as
críveis representações da solidariedade nas relações sociais no seio da pobreza
e a impactante cena final de Zulmira com os filhos, na estrada, recobertos pela
poeira levantada pela disparada dos veículos de policiais e jornalistas.
O assalto ao trem
pagador fez jus a muitos prêmios. Foi considerado o Melhor Filme
no Festival da Bahia/1962. Recebeu a Caravela de Prata no Festival de
Lisboa/1963 e o Prêmio Especial do Festival de Arte Negra em Dakar,
Senegal/1963. Roberto Farias, pelo Melhor Roteiro, venceu no Festival da Bahia,
recebeu o Saci conferido pelo jornal O Estado de São Paulo e o Prêmio
Governador do Estado de São Paulo. Eliezer Gomes teve a láurea de Ator Revelação
no Festival de Curitiba/1962. Mereceu na mesma condição o Troféu Cinelândia/1962.
Ainda foi considerado Melhor Ator no Festival da Bahia. Como Melhores
Coadjuvantes, Jorge Doria e Dirce Migliaccio receberam o prêmio Saci. Já Luíza
Maranhão foi a Melhor Atriz Coadjuvante nos festivais de Curitiba e da Bahia.
Rumo ao assalto: o trem pagador SAP-21 |
Argumento: Roberto Farias, Luiz Carlos Barreto, com
contribuição de Alinor Azevêdo. Roteiro:
Roberto Farias. Direção de fotografia
(preto e branco): Amleto Daissé. Música:
Remo Usai. Montagem: Rafael Justo
Valverde. Operador de câmera: José
Rosa. Cenografia: Alexandre Horvath,
Pierino Massenzi. Ruídos de sala:
Geraldo José. Assistente de direção:
Billy Davis. Direção de produção:
Riva Faria. Produtor associado:
Arnaldo Zonari, Jarbas Barbosa. Assistência
de produção: José Ribeiro, Mozael Silveira, Wilmar Menezes. Assistente de câmera: José Vicente da
Silva. Direção de som: Nelson
Ribeiro, Jorge dos Santos Felício, José Tavares. Assistente de montagem: Lúcia Erita. Contrarregra: Vinícius Silva. Maquiagem:
Paulo Carias. Costureira: Zilma
Fechô. Canção: Eu quero essa mulher assim mesmo,
de Monsueto Menezes e José Batista. Supervisão
da produção: Victor Lima. Gerente de
produção: José Silva. Desenho do
cartaz original: Ziraldo. Efeitos
especiais: Sérgio Farjalla. Tempo de
exibição: 102 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1982)
[1] Cf. ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema
brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. p. 111.
[2] Apesar das diferenças que os separam, Glauber
Rocha considera Roberto Farias "O mais completo artesão" do cinema
brasileiro. "Enfrenta o espectador sem retórica, narra com simplicidade e
segurança. É quem melhor se comunica entre os diretores brasileiros. Apesar de
prisioneiro de esquemas, fez de Tião Medonho a melhor personagem da dramaturgia
brasileira". Veja ROCHA, Glauber. Op. cit. p. 110 e 111.
[3] O assalto ao trem pagador foi o
primeiro dos muitos filmes brasileiros a contar com o suporte financeiro do
Banco Nacional.
[4] AZEREDO, Ely; FONSECA, Carlos. Roberto Farias em
ritmo de indústria. Filme Cultura, Rio de Janeiro: INC, p. 10, jul.-ago.1970.
Eugenio,
ResponderExcluirA fumaça dos disparos da arma de Tião Medonho ainda lutava para se dissipar no ar sombrio do barraco, onde acabara de assassinar friamente Grilo, quando de sua voz rouca e decisiva soou a frase; "joguem o corpo dele no rio para os peixes comerem os olhos azuis dele".
Não se ouve nada com qualquer sinal de aparencia com estes dizeres numa fita brasileira, mesmo a boa frase de O Cangaceiro, quando Capitão Galdino (Milton Ribeiro) reclama entre dentes quase que somente para si ao receber um balaço de Teodoro; "E ele que era meu amigo!"
Sem qualquer tom de falsidade ou solidariedade exagerada à perfeita materia descrita, Roberto Farias fez, de fato um dos melhores filmes do cinema nacional, numa época, segundo ouvi do próprio Reginaldo Farias num programa do Canal Viva, chamado "Grandes Atores", se queixando que tinham que lutar com câmeras enormes e pesadas, muito difíceis de move-las até para se mudar um plano numa filmagem.
Assalto é um filme sem precedentes dentro de nosso frágil cinema, com um cast de qualidade que chegou a surpreender em cada papel, com Tião Medonho, o novato Eliezer Gomes, como o dono único e exclusivo do filme, comandando cada outro personagem e administrando uma situação que a cada momento se tornava mais difícil de ser administrada, dado a cada mente com idéias antagônicas no atinente a tanto dinheiro em seus poder e sem poder gasta-lo.
No meu ver está aí a grande pedida para os personagens se soltarem, além do ponto alto do filme, mesmo até melhor e mais denso que o próprio assalto, que é como ter o olho acirrado em cima de cada um de seu bando.
Não existe muito mais a se dizer desta grande fita depois de se ler uma matéria tão cheia de informes e detalhes sobre tudo o que se desenrolou no universo do filme do Farias, assim como seus bastidores cheio de novidades.
jurandir_lima@bol.com.br
Boa tarde, Jurandir!
ExcluirO ASSALTO AO TREM PAGADOR é, ainda, por mais que o tempo passe, um dos maiores filmes do cinema brasileiro. É em tudo vigoroso. Nada a por ou a tirar. Foi eleito, recentemente, pela ABRACINE - Associação Brasileira de Cineastas, em nono lugar entre os cem melhores filmes de nosso cinema.
Abraços.
Qué interesante, no conocía la película ni al director. He tenido que usar el traductor pero el próximo día me va a ayudar mi hijo, que habla un poco de portugués. Un saludo.
ResponderExcluirMuchas gracias por la visita y por el comentario, Marigem. Espero que venga más veces y que se habitúe al portugués. Su hijo, ciertamente, a auxiliará a entender la lengua, que tienen sus semejanzas con el espanhol. La película forma parte del género polícial, pero valle más como documento social. Es una producción de la mayor importancia para el cine brasileño. Espero que consiga verla cuando tenga la oportunidad. Está disponible en el Youtube, sin embargo, hablado en portugués sin subtítulos:https://www.youtube.com/watch?v=pR8FiEpCnR0
ExcluirExcelente texto para um excelente filme...
ResponderExcluirObrigado pela visita e comentário, meu caro "desconhecido".
ExcluirAbraços.