A adaptação não autorizada do conto Historia de un frac do
mexicano Francisco Rojas González resultou num dos mais rumorosos processos por
plágio do cinema estadunidense. Dessa apropriação indevida nasceu Seis
destinos (Tales of Manhattan, 1942). Organizada no formato de esquetes buriladas
por time ímpar de roteiristas talentosos, a realização reúne sob a batuta do
diretor francês Julien Duvivier impressionante número de atores de primeira grandeza.
Meia dúzia de histórias independentes, interligadas pelo processo de
desvalorização de um traje cerimonial — que percorre de alto a baixo as camadas
sociais dos Estados Unidos —, revela os diversos significados do sonho
americano aos seus possuidores. É um dos filmes mais queridos de seu tempo. Infelizmente,
teve excluído, na estreia, o episódio — dos melhores — protagonizado por W. C. Fields,
restaurado e parcialmente reposto nas reedições a partir de 1996. Parte da
notoriedade de Seis destinos decorre de Paul Robeson: ator do último segmento,
tomou a decisão irrevogável de abandonar o cinema, insatisfeito com os papéis
subalternos, folclóricos e humilhantes reservados aos negros por Hollywood. A
apreciação a seguir foi escrita em 2004.
Seis destinos
Tales
of Manhattan
Direção:
Julien Duvivier
Produção:
Boris Morros, S. P. Eagle (Sam
Spiegel)
20th Century-Fox
EUA — 1942
Elenco:
Charles Boyer, Rita Hayworth, Ginger
Rogers, Henry Fonda, Charles Laughton, Edward G. Robinson, Paul Robeson, Ethel
Waters, Eddie 'Rochester' Anderson, Thomas Mitchell, Eugene Pallette, Cesar
Romero, Gail Patrick, Roland Young, Marion Martin, Elsa Lanchester, Victor
Francen, George Sanders, James Gleason, Harry Davenport, J. Carrol Naish, Hall
Johnson Choir, Frank Orth, Christian Rub, Sig Arno, James Rennie, Harry Hayden,
Morris Ankrum, Donald Douglas, Mae Marsh, Clarence Muse, George Reed, Cordell
Hickman, Paul Renay, Barbara Lynn, Adeline De Walt Reynolds, Helene Reynolds e
os não creditados Rene Austin, Olive Ball, Don Beddoe, Jerry Bergen, Joseph E.
Bernard, Buster Brodie, Jack Chefe, Rita Christiani, E. E. Clive, Chester Clute,
Gino Corrado, Frank Dae, Marcel Dalio, Frank Darien, Maggie Dorsey, Margaret
Dumont, W. C. Fields, Bess Flowers, Alberta Gary, Charles D. Gray, Robert Greig,
Robert Halligan, Rondo Hatton, Esther Howard, Philip Hurlic, Frank Jaquet, John
Kelly, Ella Mae Lashley, Johnny Lee, Forbes Murray, Lonnie Nichols, Tom O'Grady,
Alex Pollard, Dewey Robinson, Archie Savage, Phil Silvers, Ted Stanhope,
Charles Tannen, Curly Twiford, Laura Vaughn, Blue Washington, Rita Waterhouse,
Charles Williams, Eric Wilton, Will Wright, Ted Billings, Don Brodie, Ralph
Brooks, Sayre Dearing, Jester Hairston, William Halligan, Kenner G. Kemp, Colin
Kenny, Mike Lally, Connie Leon, Pat McKee, Harold Miller, Bert Moorhouse,
Manuel París, Cyril Ring, Bert Stevens.
O diretor Julien Duvivier e a atriz Danielle Darrieux durante as filmagens de As mulheres dos outros (Pot bouille, 1957) |
O aclamado diretor Julien Duvivier
não era estranho ao cinema dos Estados Unidos quando escolheu esse país como
destino de exilado diante da ocupação da França pelos alemães durante a Segunda
Guerra Mundial. Graças ao sucesso internacional de O demônio da Argélia (Pepe
Le Moko, 1938), recebeu convite da Metro-Goldwyn-Mayer para dirigir,
nesse mesmo ano, em território estadunidense, A grande valsa (The
great waltz)[1].
Pouco antes demonstrou habilidade à companhia do leão como diretor em função
não creditada de Maria Antonieta (Marie Antoinette, 1938), de W. S.
Van Dyke. Cumprida a tarefa, retornou ao país natal e fez Le fin du jour (1939), La
charrette fantôme (1939) e França eterna (Untel père et fils, 1940)[2].
No desterro estadunidense realizou Lydia
(1941), Seis destinos, Os mistérios da vida (Flesh
and fantasy, 1943) e O impostor (The impostor, 1944). Como
diretor não creditado participou de O milagre da fé (Destiny,
1944), de Reginald Le Borg.
Realizador versátil, com trânsito fácil
por comédias, policiais, dramas, reconstituições históricas, filmes religiosos
e biográficos, além de adaptações literárias, Duvivier também se saiu bem no
subgênero das realizações episódicas. No caso, Seis destinos é um dos seus
melhores trabalhos, fora o fato de que é, certamente, o mais aclamado pelo
grande público. No cinema estadunidense, a tradição das narrativas em episódios
— as esquetes — começou a ganhar forma, provavelmente, com Se eu tivesse um milhão (If a
had a million, 1932) — sucessão de dez segmentos extraídos do autor
Robert Hardy Andrews, roteirizados por Claude Binyon, Whitney Bolton, Malcolm
Stuart Boylan, John Bright, Sidney Buchman, Lester Cole, Isabel Dawn, Boyce
DeGaw, Oliver H. P. Garrett, Harvey Gates, Ernst Lubitsch, Lawton Mackall,
Joseph L. Mankiewicz, William Slavens McNutt e Robert Sparks. Foram transpostos
à tela por diretores talentosos que sequer mereceram créditos: James Cruze, H.
Bruce Humberston, Ernst Lubitsch, Norman Z. McLeod, Lothar Mendes, Stephen
Roberts, William A. Seiter e Norman Taurog.
Vinte anos após, Se eu tivesse um milhão deu
partida a outra bem lograda estruturação em episódios: Páginas da vida (Full house,
1952). O original de William Sidney Porter (O'Henry) foi igualmente trabalhado
por invejável time de roteiristas — Lamar Trotti, Richard L. Breen, Ivan Goff,
Ben Roberts, Walter Bullock, Philip Dunne, Ben Hetch, Nunnally Johnson, Charles
Lederer —, com as transposições ao cinema confiadas a Henry Hathaway, Howard
Hawks, Henry King, Jean Negulesco e Henry Koster.
A principal diferença Páginas
de vida e Se eu tivesse um milhão para Seis destinos reside no
fato de que este é totalmente orquestrado por Julien Duviver e não por diversos
diretores. Porém, a quantidade de roteiristas na adaptação dos segmentos
extraídos do conto Historia de un frac do não creditado antropólogo, escritor e
roteirista mexicano Francisco Rojas González[3]
é igualmente grandiosa: Henry Blankfort, Alan Campbell, Ladislas Fodor, László
Görög, Ben Hetch, Samuel Hoffenstein, Ferenc Molnár, Donald Ogden Stewart,
Lamar Trotti, Lászlo Vadnay mais os não creditados Edmund Beloin, Robert
Katscher, William Morrow e o comediante Buster Keaton.
As realizações em esquetes terminaram
se tornando especialidade de Duvivier. Seis destinos é apenas a mais
famosa. Cinco anos antes, em 1935, iniciou-se no formato com Um
carnê de baile (Un carnet de bal). Em 1943 foi a vez
de Os
mistérios da vida (Flesh and fantasy). Seguem-se Sinfonia
de uma cidade (Sous le ciel de Paris, 1951) e O
diabo e os dez mandamentos (Le diable et les 10 commandements,
1962).
Raras vezes um filme reuniu elenco
tão notável. Alguns dos melhores valores em atuação da época, distribuídos por
papéis principais e coadjuvantes, foram arregimentados pelos produtores Boris
Morros e S. P. “Sam Spiegel” Eagle. Por outro lado, muitos desses nomes fizeram
questão de trabalhar sob as ordens de um dos mais prestigiados diretores do cinema
francês. Parecia-lhes inconcebível desperdiçar a oportunidade de atuar fora dos
limites demarcados pelo trivial da linha de montagem do cinema estadunidense
moldado por Hollywood e grandes estúdios. Como único maestro na orquestração dos
movimentos de Seis destinos, Duviver, pode-se dizer, conseguiu bons
resultados. A tarefa não era fácil. Aparência de unidade deveria ser conferida
ao conjunto formado por histórias tão díspares, cada qual adaptada em regime de
independência por grupos isolados de roteiristas. Um frágil fio condutor foi
inserido na transição de um episódio a outro: o percurso de um frac por
diversos proprietários, desde sua confecção sob medida para renomado ator teatral.
Pelos mais diversos motivos, a peça, submetida a contínuas desvalorizações,
passa dos setores mais altos aos mais baixos da sociedade estadunidense. O
processo evidencia a estratificação social do país e revela os significados do
sonho americano aos agraciados pela indumentária.
O ator W. C. Fields - intérprete do professor Diógenes Pothlewhistle - enverga o amaldiçoado frac na prova de vestuário de Seis destinos. |
Apesar da apreciável qualidade da realização
em geral, nem tudo foram flores. Nesse caso, os percalços sofridos por Seis
destinos não devem ser creditados a Julien Duvivier. O francês, em que
pese a experiência no cinema estadunidense, sempre foi estranho no ninho. Os
produtores e a 20th Century-Fox são responsáveis pelos transtornos.
Tales of Manhattan recebeu o nome de Seis
destinos no Brasil, Portugal, Espanha e França (Six destins). Porém,
quando lançado, a matemática do título correspondia a cinco. A 20th Century-Fox
resolveu eliminar o penúltimo episódio — dos melhores —, protagonizado por W.
C. Fields. Na origem, era o segmento de maior duração. Mas causou consternação
e protestos entre os nomes principais do cast
o elevado salário pago ao ator. Para acalmar os ânimos, a solução encontrada foi
a mais cômoda e desonesta. Justificou-se a extirpação sob alegação de se tratar
de desempenho inadequado de Fields se comparado ao resto do elenco, algo
totalmente improcedente. Durante mais de 20 anos a reputação do ator foi
abalada pela irresponsável armação dos produtores. Faleceu em 1946, dois anos
após aparecer no último filme, Sensações de 1945 (Sensations
of 1945, 1944), de Andrew L. Stone — o terceiro após Seis
destinos[4] —,
no qual vive a si mesmo.
Felizmente a sequência não se perdeu.
Em 1996 foi restaurada e inserida nas novas edições de Seis destinos, mas não em
sua integridade. Ficaram de fora os antecedentes da confabulação do personagem
de Fields com a madame interpretada por Margaret Dumont na limusine desta.
Também não é mostrado o trecho final, da passagem do frac à loja de roupas
usadas dos Santelli Brothers (Marcel Dalio e Phill Silvers) — momento da
transição para o episódio final sob liderança de Paul Robenson e Ethel Waters,
mas iniciado de forma algo súbita pelo ladrão Costello (J. Carroll Naish) que se
apropria da peça. Se era originalmente a história mais longa, foi reduzida à
mais curta. Para piorar, W. C. Fields e outros atores em papéis de destaque que
a integram sequer tiveram os nomes repostos nos créditos após a restauração.
O frac furtado por Costello da
Santelli Brothers encontra paradeiro final: cai como dádiva celeste em
paupérrimo vilarejo de negros do profundo Old
South. O segmento é estrelado por Paul Robeson — cantor, ator, escritor,
combatente antifascista e antirracista, aguerrido defensor da luta pela
ampliação dos direitos civis aos negros dos Estados Unidos e notoriamente
posicionado à esquerda do espectro político. Foi perseguido pelo macartismo e
acintosamente vigiado pelo FBI nos anos 50. Tomou a decisão de abandonar definitivamente
a carreira de ator de cinema após Seis destinos. É o décimo terceiro
filme ao qual emprestou atuação. Robeson lutou junto aos roteiristas
responsáveis pelo derradeiro segmento — principalmente de Donald Ogden Stewart,
companheiro de militância — por uma história que atribuísse dignidade e orgulho
aos negros. Não suportava mais vê-los tratados pelo viés folclórico, reduzidos
a criaturas infantilizadas, incapacitadas, condenadas à mais humilhante
subalternidade legitimada por crenças religiosas carregadas de conformismo e
esperança em compensações extramundanas.
Luke (Paul Robeson), o reverendo Lazarus (Eddie 'Rochester' Anderson) e Esther (Ethel Waters) na esquete filnal de Seis destinos |
Infelizmente, lutou em vão. A ponto de se encher
de horror ao tomar ciência do segmento final após a montagem. Ganhou a
solidariedade de Edward G. Robinson. Apesar de o episódio valorizar algumas
contribuições do ator ao roteiro — como as noções de comunidade
e partilha —, o que se vê são negros perdidamente tementes a Deus, expressando-se
como improváveis caipiras de almanaque, pontuando cada fala com
"glórias" e "aleluias", lançando os olhares vivazes sempre
às alturas celestiais da esperança. O mesmo ponto de vista centrado na
subalternidade e carregado de superstições à moda "Pai Tomás" — que
tanto incomodava Robeson — continuava marcando presença. Foi o bastante para
dar um basta a Hollywood e ao cinema. Após o lançamento de Seis destinos, em
conferência de imprensa denunciou mais uma vez os personagens humilhantes
reservados aos negros e comunicou o afastamento das telas — compromisso
cumprido em definitivo. Ainda tentou o inútil e inglório esforço de adquirir
todas as cópias do filme para destruí-las.
Seis destinos começa explicando as circunstâncias
da confecção do onipresente frac. Rapidamente o espectador é informado de que
a peça foi produzida e amaldiçoada pelo alfaiate Bertoldi. Trará má sorte a
quem a vestir. Nem sempre é o que acontece — como se vê no desenrolar dos fios
que formam os seis segmentos. Mas o primeiro proprietário, para quem a
vestimenta foi recortada sob medida, não escapa da urucubaca. É o renomado ator
teatral Paul Orman (Boyer). Passará por maus e fatais pedaços ao tentar uma
conciliação com Ethel (Hayworth). Entra literalmente na mira do marido desta, o
ciumento e sádico caçador John (Mitchell). Num ambiente reservado, sob os olhos
de apenas duas testemunhas, Orman dará provas de suas habilidades de
interpretação.
Paul Orman (Charles Boyer) e Ethel Halloway (Rita Hayworth) no primeiro segmento de Seis destinos |
O segundo episódio deixa os espaços
reservados à gente fina e esnobe para encontrar um apartamento de classe média
abonada, onde o frac é vendido pelo mordomo Luther (Pallette) ao colega Edgar
(Young). Por força das circunstâncias, provoca o término do noivado do
proprietário da moradia, o playboy Harry Wilson (Romero), com a ciumenta Diane
(Rogers). Ela acaba encantada pelo tímido e atrapalhado George (Fonda) — melhor
amigo do noivo e quase seu padrinho de casamento —, chamado para desarmar o
espírito inconformado da garota. O fragmento é concebido como comédia ligeira
rapidamente dialogada.
A seguir, posto à venda em loja de roupas
usadas, o frac é adquirido em regime de urgência por Elsa (Lanchester),
esposa do remediado e esperançoso músico Charles Smith (Laughton). Ele
conseguiu a grande chance de sua vida junto ao exigente maestro Arturo Bellini
(Francen): regerá grande orquestra na execução de composição de sua autoria em
teatro dos mais refinados. Mas sofrerá dissabores por causa do traje mal
ajustado ao seu físico corpulento e dos movimentos exigidos pela condução
musical. Charles é convertido em motivo de troça generalizada. O fracasso seria
inevitável não fosse a inesperada solidariedade de Bellini, que contamina toda
a plateia impiedosa. Afinal, para que frac? O personagem de Laughton termina
a execução sob intensos aplausos.
Apesar da má fama, o traje se
transformou em amuleto da sorte. Pensando nisso e no próximo, o músico resolve doá-lo
à caridade. Chegou a vez de vestir o indigente Avery 'Larry' L. Browne
(Robinson), advogado arruinado convertido em mendigo após envolvimento com
fraude. O austero pastor Joe (Gleason) — espécie de anjo protetor — tenta
ajudá-lo. A turma da universidade à qual Avery pertenceu comemorará bodas de
prata da formatura. A este evento de homens bem sucedidos ele comparece, a
contragosto, após muita insistência. Veste roupas comuns encimadas pelo ajustado
frac de Bertoldi. Tenta passar por profissional de sucesso, mas é
confrontado por Williams (Sanders), sabedor da sua ruína. Acuado, Avery torna
públicos os detalhes ocultos de seu passado. Em seguida, retira-se,
envergonhado e derrotado. Mas é procurado por um grupo de colegas dispostos a
reerguê-lo com nova oportunidade de emprego.
Williams (George Sanders) e Avery 'Larry' L. Browne (Edward G. Robinson) no quarto episódio da realização de Julien Duvivier |
Outra vez o frac encontra
paradeiro em loja de vestes usadas, a Santelli Brothers. Dará pose a um
irresistível picareta, especializado na arte de enganar incautos: o professor
Diógenes Pothlewhistle (Fields), chamado a proferir palestra sobre as vantagens
da abstinência na mansão da ingênua Madame Clyborn Langahankie (Dumont). Mas o marido
bom de copo da anfitriã não suporta mais tais eventos. Contrariado, apela à sabotagem.
Despeja toda sorte de bebidas alcoólicas na água de coco que será servida aos convidados,
inclusive ao professor. O espectador habituado às presenças e cacos de W. C.
Fields não precisa fazer esforço para antecipar o que virá, ainda mais quando o
palestrante pedir copo dosado por um dedo, na vertical, de whisky.
Por fim, o frac, já muito
desgastado, encontrará destino definitivo. Irá compor o espantalho acionado pelo
vento em plantação de comunidade rural de negros pobres. Furtado da Santelli
Brohters — revendido que fora pelo Professor Diógenes —, servirá de disfarce ao
assalto a um cassino. Mas o avião no qual fogem os criminosos é tomado pelo fogo
em pleno voo. Para escapar às chamas, o desesperado Costello lança
fora a peça com toda a quantia roubada: 43 mil dólares caídos como milagroso
maná aos pés do necessitado Luke (Robeson). No entanto, a diligente e generosa
Esther (Waters) alerta-o para outros do lugar em situação de precisão. Caberá ao
reverendo Lazarus (Anderson) decidir a melhor aplicação para a fortuna:
dividi-la entre todos segundo a fórmula "De cada qual segundo sua
capacidade, a cada qual segundo suas necessidades". É o máximo de marxismo
a que o cinema hollywoodiano poderia chegar, mesmo assim, em área totalmente
marginal.
Desnecessário afirmar que Seis
destinos é desigual. Dificilmente uma estrutura narrativa episódica não
o seria, principalmente quando se sabe que os roteiristas trabalharam isolados
uns dos outros. Ainda assim Julien Duvivier conseguiu unificar tudo de forma
razoavelmente coerente. Entre o drama e a comédia, às vezes conseguindo um mix
de ambos, Seis destinos se deixa ver com o maior prazer, especialmente em
versão restaurada, com a história protagonizada por W. C. Fields parcialmente reinserida.
Pena que ocupe tempo por demais curto em comparação às demais. Porém, oferece
preciosos momentos do velho comediante já em fim de carreira.
Quanto à última história, não se pode
tirar a razão do antenado e corajoso Paul Robenson. Apesar de tudo, tomando por
comparação outras visões que o cinema hollywoodiano endereçou aos negros na
época, parece que Julien Duvivier fez o melhor que podia, apesar da
descaracterização empreendida pelos produtores. Deixaram o fragmento com
formato de fábula ambientada além de contextos histórico e geográfico
específicos. Somente assim o apelo comunitário proposto por Robeson passaria
sem grandes problemas às convenções do sistema de produção.
Se alguma parte merece a qualificação
de fraca é a segunda. Deixou a impressão de funcionar como respiradouro, um
instante de alívio aos picos tensos e dramáticos da história inicial
protagonizada por Charles Boyer, Rita Hayworth e Thomas Mitchell. O ar de
comédia ligeira carregada de equívocos e com toques lubitschianos ficou aquém do
pretendido. Talvez pela rapidez imposta pelo ritmo da história, como também
pela inadequação dos atores, principalmente de Henry Fonda, tão pouco à vontade
e distante da verossímil naturalidade à qual comumente habituou o espectador. Parece
que seu personagem não encontrou o tom. É como se o pouco crível combatente
hispano-republicano vivido pelo ator no inacreditável Bloqueio (Blockade,
1938), de William Dieterle, estivesse, de uma hora para outra, fazendo teste de
comediante. Foi totalmente eclipsado por Ginger Rogers.
George (Henry Fonda) e Diane (Ginger Rogers) no segundo episódio de Seis destinos |
Sobram como melhores episódios o
primeiro, terceiro e quarto.
No primeiro, Paul Orman é um ator
teatral plenamente confiante em seu talento. Depois de gloriosa noite na
estreia de nova peça, acredita que chegou a hora de acertar os ponteiros com a dúbia
amante Ethel Halloway. Mas não contava com a ciência e intromissão do marido
desta, o milionário e sádico John Halloway, habituado às caçadas. A história é
encaminhada a um jogo de gato e rato, encenada no pavilhão de caça da
residência do casal. Fidelidade e traição recheiam tenso diálogo a três, em ambiente
decorado por muitas cabeças empalhadas de animais chifrudos. Thomas Mitchell,
brilhante, domina a cena. Manipula arma disparada — acidentalmente, segundo
alega — contra Orman. Este, apoiado em suas artes interpretativas, procura tirar
proveito da situação, apesar de mortalmente ferido. Finge que nada aconteceu e
se retira diante dos olhares estupefatos de Ethel e John. O episódio permite a Seis
destinos um começo soberbo, repleto de ironia e falas de duplo sentido.
O pavilhão de caça é dominado pelo contrastado jogo de luzes e sombras que
mascara os rostos dos personagens. Ainda há a inventiva câmera e a montagem que
transformam o ambiente em peça fundamental à encenação.
Thomas Mitchell como John Halloway |
Charles Laughton preenche por
completo o terceiro fragmento com sua movimentação e expressão. A história do
pobre maestro é a mais visual de todas. Os diálogos são reduzidos ao
estritamente necessário. A câmera ganha primazia na descrição das emoções do
personagem nos instantes em que é tomado pela esperança, sensação de fracasso
e, por fim, glória.
Os maestros Charles Smith (Charles Laughton) e Arturo Bellini (Victor Francen) no mais cinematográfico dos segmentos de Seis destinos |
O quarto segmento também pertence aos
atores, principalmente a Edward G. Robinson, James Gleason e George Sanders.
Este é perfeito como o implacável Williams, advogado cheio de empáfia. Gleason,
por sua vez, nada deixa a desejar como o crível, austero e consciencioso pastor
Joe. Mas toda a cena é preenchida pelo ressentido Avery L. 'Larry' Browne feito
por Robinson. A história de queda e redenção, perpassada pelo espírito de Frank
Capra, atinge ponto máximo quando, sentindo-se sem saída em seu fingimento, o
advogado arruinado apela ao monólogo e movimentação para deixar cair a máscara
e revelar publicamente as faltas cometidas. Neste momento, vê-se um ator
impecável em interação com várias cadeiras vazias não fossem os atentos e circunspectos
componentes do elenco secundário que nelas tomam lugar.
Por fim, merecem os devidos destaques
a direção de fotografia de Joseph Walker — que consegue seus melhores intentos
dramáticos no primeiro e último episódios — e o comentário musical de Sol
Kaplan — perfeitamente ajustado à diversidade de tons dos pequenos grandes
dramas de Seis destinos.
Roteiro: Edmund Beloin, Henry Blankfort,
Alan Campbell, Ladislas Fodor, László Görög, Ben Hecht, Samuel Hoffenstein, Robert
Katscher (não creditado), Buster Keaton (não creditado), Ferenc Molnár, William
Morrow, Donald Ogden Stewart, Lamar Trotti, László Vadnay. Música: Sol Kaplan. Direção
de fotografia (preto-e-branco): Joseph Walker. Montagem: Robert Bischoff, Gene Fowler Jr. (sequência
restaurada/não creditado). Direção de arte: Richard Day, Boris Leven. Decoração: Thomas Little. Figurinos:
Oleg Cassini (não creditado), Irene, Bernard Newman, Dolly Tree, Gwen Wakeling.
Maquiagem: Guy Pearce.
Gerente de unidade: Joseph H. Nadel.
Assistentes de direção: Charles Hall,
Robert Stillman. Som: W. D. Flick, Roger
Heman Sr. Orquestração: Charles
Bradshaw, Hugo Friedhofer, Clarence Wheeler. Arranjos vocais: Hall Johnson. Direção
musical: Edward Paul. Produção
associada: Samuel Rheiner (não creditado). Contrarregra: Phil D'Esco (não creditado). Direção de diálogos (não creditada): Don Brodie, Alan Campbell. Direção de sequência restaurada:
Malcolm St. Clair (não creditado). Sistema
de mixagem de som: Mono pela Western Electric Mirrophonic Recording. Tempo de exibição: 127 minutos.
(José Eugenio
Guimarães, 2004)
[1]
Atuaram na direção, sem levar créditos, Josef von Sternberg e Victor Fleming.
[2]
Filmado em 1940, França eterna só teve lançamento em território francês em
novembro de 1945, passados alguns meses do término da guerra. Entretanto, foi
distribuído comercialmente nos Estados Unidos, a partir de 1943, com o nome de Heart
of a nation.
[3]
Como não levou crédito e sequer recebeu qualquer quantia pelos direitos de Historia
de un frac, Francisco Rojas Gonzáles processou a 20th Century-Fox por
plágio. A empresa reconheceu a apropriação indevida, mas não pagou qualquer
indenização. Os advogados conseguiram responsabilizar as pessoas dos produtores
Boris Morros e S. P. Eagle. Sabe-se que Francisco Rojas Gonzáles jamais recebeu
qualquer compensação pelo uso não autorizado de seus escritos.
[4]
Os demais títulos posteriores a Seis destinos, com atuações de
Fields são: Epopeia da alegria (Follow the boys, 1944), de A.
Edwards Sutherland e do não creditado John Rawlins — no qual interpreta a si
próprio — e Viva a juventude (Song of the open road, 1944), de S.
Sylvan Simon — no qual faz o papel de W, C, Fields — assim mesmo, com vírgulas.
Wuauu...Cada día admiro más tu trabajo,eres un río de inspiración...Es un análisis muy profundo y muy completo del filme...Me siento muy feliz de poder disfrutar de esta reseña "Detrás de cámaras" de Cuentos de Manhattan...Me llama mucho la atención el primer cuento protagonizado por Rita Hayworth,es una actriz exquisita...Tu trabajo estupendo cielo mío,como siempre...Te mando besos,abrazos y aplausos desde mi palco...!!!
ResponderExcluirQue boa a sua apreciação, Maria Del Socorro. E também agradeço pelos aplausos recebidos de seu palco. Infelizmente, o autor mexicano cujos contos deram origem a este filme nunca recebeu alguma compensação pelos direitos de autor. É um filme que preciso ver novamente.
ExcluirBeijos, querida!