Dez segundos de perigo (Junior Bonner, 1972) irrompe
como corpo estranho na filmografia de Sam Peckinpah. A sensação se justifica diante
do filme imediatamente anterior do cineasta, Sob o domínio do medo (Straw
dogs, 1971). À violência exacerbada, levada a termo com cirúrgica precisão
matemática, segue-se um compassado, calmo, terno, lírico, amargo e nostálgico
western contemporâneo. No entanto, o diretor não abandonou seus temas e
territórios referenciais. Retornou, pode-se dizer, à mitologia do velho Oeste —
tão cantada em realizações seminais — para continuar abordando o crepúsculo do
cowboy. Desse modo, Dez segundos de perigo é prolongamento lógico das baladas interpretadas
pelo realizador, principalmente em Pistoleiros do entardecer (Ride
the high country, 1962), Meu ódio será sua herança (The
wild bunch, 1969) e A morte não manda recado (The
ballad of Cable Hogue, 1970). Após decretar a morte física e simbólica
do homem do Oeste nesses filmes, Peckinpah localiza seus resistentes restos em
movimento na contemporaneidade instrumentalizada e mecanizada. Steve McQueen
faz o ás de rodeio Junior Bonner, cowboy motorizado na tentativa algo vã de
superar a estreita circularidade de seu âmbito de ação em nome da própria
sobrevivência e dos valores paternos. Move-se na crueldade de um tempo feito de
glórias nada heroicas, cada vez mais insignificantes e efêmeras. A apreciação a
seguir é de 1974.
Dez segundos de perigo
Junior Bonner
Direção:
Sam Peckinpah
Produção:
Joe Wizan
Joe
Wizan-Booth Gardner Productions, SolarProductions, American Broadcasting Company
Pictures
EUA — 1972
Elenco:
Steve McQueen, Ida Lupino, Ben Johnson, Robert Preston, Joe Don Baker, Barbara Leigh, Bill McKinney, Sandra Deel, Donald "Red" Barry, Dub Taylor, Charles H. Grey, Matthew Peckinpah, Sundown Spencer, Rita Garrison, Mary Murphy, Roxanne Knight, Sandra Pew, William E. Pierce, P. K. Strong, Toby Sargent, Bonnie Clausing, Francesca Jarvis, George Weintraub, June Simpson e os não creditados Lynette Carrington, James M. George, Rod Hart, Wayne McLaren, Johnnie Mullens, Sam Peckinpah, Sharon Peckinpah, Casey Tibbs.
O ator Steven McQueen com o diretor Sam Peckinpah em conferência ao roteiro durante intervalo nas filmagens de Dez segundos de perigo (Junior Bonner) |
Dez segundos de perigo abriu oficialmente
a mostra competitiva do Festival de Cinema de San Sebastian em 1973. Nem parece
filme de Sam Peckinpah, tamanha a calma, a ternura e o humor que pontuam nesse
western contemporâneo repleto de lirismo e nostalgia. Mas a estranheza
despertada por tanta mansidão tem razão de ser. Não que o poeta da violência
temperada com banhos de sangue e câmera lenta não seja chegado ao lirismo e às narrativas
calmamente compassadas. Pistoleiros do entardecer (Ride
the high country, 1962) e A morte não manda recado (The
ballad of Cable Hogue, 1970) — algumas de suas melhores realizações no
western — estão aí para provar. Porém, Dez segundos de perigo aparece na
filmografia de Peckinpah logo após Sob o domínio do medo (Straw
dogs, 1971) — exercício no qual a exacerbação da violência nua e crua é
minuciosamente preparada, com a racionalidade da precisão matemática, para
entrar em cena. Diante disso, não se pode esquecer também de um determinado
setor da crítica, fechado em avaliações conservadores, que estigmatiza o diretor
como cultor da mera violência irracional — tremendo erro de avaliação.
Acima e abaixo: Steve McQueen no papel de Junior Bonner |
Ao fim de A
morte não manda recado acontece a morte física de Cable Hogue (Jason
Robards) — e o desaparecimento simbólico do cowboy — no exato instante em que
um automóvel invade suas paragens. O veículo motorizado também marca presença em
Meu
ódio será sua herança (The wild bunch, 1969) como prenúncio
de que o mundo das cavalgadas, ao qual o cinema nos habituou a apreciar a
mitologia do Oeste, chegava ao fim. Nesse campo se movimenta o cine western de
Sam Peckinpah: o realizador fala de uma esfera em transição e percebe as
consequências das transformações sobre o modo de ser dos indivíduos que a
habitam. É o que se vê em Pistoleiros do entardecer: os
cowboys crepusculares Gil Westrum (Randolph Scott) e Steve Judd (Joel McCrea)
assistem à chegada de nova era, à qual não estão preparados, e partem resolutos
rumo ao fim. Antecipam-se ao epílogo inglório que os encontraria inadaptados, abandonados
e esquecidos; sem direito à existência digna, oferecidos como peças de
relicário em mafuás e espetáculos mambembes de toda sorte para garantir a sobrevivência.
Seriam convertidos em estereótipos do que foram, curiosos exemplares raros de um
período encerrado. Os celerados Pike Bishop (William Holden), Dutch Engstrom (Ernest
Borgnine), Lyle Gorch (Warren Oates) e Tector Gorch (Ben Johnson) de Meu
ódio será sua herança percebem claramente o estreitamento do seu raio
ação, fato que os deixa sem alternativas, a não ser a morte num desesperado último
ato no qual darão mostras do melhor que ainda são. O tempo age violentamente sobre
os homens, ainda mais nos momentos de mudanças radicais. Uma era termina forjando
o início de outra no atropelo de vidas inconclusas, largadas à beira do caminho
palmilhado de corpos ensanguentados. O tempo não passa pacificamente. Acerca
disso, Peckinpah está entre os cineastas mais conscientes. O processo destrói
não apenas vidas, mas modos de viver. O preço cobrado por isso é alto, em forma
de carne, vísceras e sangue. Não para menos o epílogo de Meu ódio será sua herança
é uma ópera trágica tingida de vermelho. Mas trágico também é o fim de Cable
Hogue em A morte não manda recado: morre na cama, impotente, testemunhando
o mecanismo motorizado invadir o espaço ao qual atribuía sentido e se
valorizava como ser humano. Perplexo, só consegue perguntar que coisa estranha é
aquela a se mover sobre rodas sem a necessidade de cavalos.
Steve McQueen como Junior Bonner |
Instalado na
contemporaneidade, nem por isso Dez segundos de perigo deixa de ser
western de transição. Agora, os descendentes dos pioneiros, representados na
amargura de Junior Bonner (McQueen) assistem impotentes ao esfacelamento dos
valores mais caros do que restou de seus âmbitos físico e simbólico.
Junior Bonner (Steve McQueen) no efêmero tempo da arena |
Junior Bonner é
astro de rodeios. Depois de ferido por um touro na arena, retorna a Prescott,
cidade natal no Arizona. Outra competição e o mesmo animal o aguardam. A volta
é também a oportunidade de rever a família. O encontro é pouco agradável. Seu pessoal
está em processo de desestruturação. O pai Ace (Preston), desmotivado, entregue
à bebida, foi hospitalizado após sofrer acidente. O irmão Curly (Baker) aproveita
a situação para negociar a propriedade em proveito próprio. A mãe Elvira
(Lupino) está resignada aos fatos. Tomado de mal estar, Junior rompe com Curly.
Espera vencer o rodeio. Com o prêmio poderá ajudar o pai inadaptado a tentar a
sorte na Austrália como criador de carneiros ou minerador. Junior vence a
competição. Também partirá em busca de novos rumos.
Acima e abaixo: Junior Bonner (Steve McQueen) com o pai Ace (Robert Preston) |
Os espaços à
movimentação dos cowboys em Dez segundos de perigo são mínimos.
O Oeste deixou há muito de ser o lugar da exaltação e realização individual.
Junior Bonner sente isso; o pai muito mais. Curly é o resultado de um tempo que
fustiga todas as éticas anteriormente tidas como corretas. A mãe entregou os
pontos, mas Ace, apesar de tudo, tenta resistir e prosseguir além de outras
fronteiras. Junior compreende a angústia do pai. Nele fermentam as recordações
dos grandes campos abertos onde o cowboy pontuava como homem. Agora restam cenários
estreitos. Estão limitados a um programa ou à racionalização do tempo. O círculo
da arena de rodeio é o que sobrou. Junior terá que permanecer dez segundos
sobre o touro, dez segundos de efêmera realização, contagem que logo será
esquecida antes de partir em busca de outras paragens ou enquanto aguarda o
momento igualmente passageiro de nova competição.
A atriz e diretora Ida Lupino vive Elvira, mãe de Junior Bonner (Steve McQueen) |
Diretor de segunda unidade: Frank Kowalski. Roteiro: Jeb Rosebrook. Direção
de fotografia (Todd AO-35/Movielab Color): Lucien Ballard. Direção de arte: Edward "Ted"
S. Haworth. Decoração: Angelo Graham,
Gerald "Jerry" F. Wunderlich. Montagem:
Frank Santillo, Robert L. Wolfe. Música:
Jerry Fielding. Canção: Arizona
Morning e Rodeo Man, de Rod Hart. Produtor
associado: Mickey Borofsky. Produção
de elenco: Lynn Stalmaster. Penteados:
Lynn Del Kail. Maquiagem: Donald W.
Roberson, William P. Turner. Gerente de
produção: James C. Pratt. Assistentes
de direção: Newt Arnold, Frank Baur, Malcolm R. Harding. Segundos assistentes de direção (não
creditados): Gene Marum, Michael Messinger, William F. Sheehan. Contrarregra: Robert J. Visciglia Sr. Pintura: Glen Cooper (não creditado). Assistente de contrarregra: John Lester
Hallett (não creditado). Capataz de
construções: Richard Dean Rankin (não creditado). Som: Larry Hooberry. Mixagem
da regravação de som: Richard Portman. Mixagem
de som: Charles M. Wilborn. Gravação
de som: Larry Hooberry (não creditado). Operador de microfones: Michael J. Kohut (não creditado). Efeitos especiais: Bud Hulburd. Coordenação de dublês: Mickey Gilbert. Dublês: Phoebe Noel e os não creditados
Denny Arnold, Floyd Baze, Tommy Mack Turvey, Autry Ward, Steve Ward, Troy Ward.
Fotografia de cena: William
"Bill" Avery, Robert Willoughby (não creditado). Eletricista-chefe: Joseph Edesa. Assistentes de câmera: Gaylin P. Schultz e os não creditados Hilton
Anderson, Norman Harris, Clyde Hart, Paul M. Pollard, Karl Reed, George
Ressler, Bernie Schwartz e Harry Young. Operador
de câmera: Chuck Arnold (não creditado). Operadores de lâmpadas (não creditados): Mike Berlin, James F.
Boyle, Alex Edesa, Walter Nichols, Byron White. Operadores gerais (não creditados): Paul Grosso, Marvin Palenske. Figurinos: Eddie Armand. Guarda-roupa feminino: Pat I. Barto. Guarda-roupa masculino: James M.
George. Assistente de montagem:
Milan Klein (não creditado). Cocapitão
de transportes: Craig Pinkard (não creditado). Capitão de transportes: James Thornsberry (não creditado). Continuidade: John Franco. Assistente de locações: Chalo González.
Assistentes para o produtor: Raymond
Green, Betty J. Gumm, Katherine Haber. Ramrod:
Kenneth W.Lee. Diálogos: Sharon
Peckinpah. Coordenação de rodeios:
Casey Tibbs. Secretária da produção:
Dorothy Whitney. Cronometragem:
Duncan Daneault (não creditado). Instrutor
de diálogos: Frank Kowalski (não creditado). Desenhos técnicos: Elias Rivera. Fornecimento de alimentação (não creditado): Dominic Santarone,
Ruth Santarone. Auditoria em locações:
Ruth West (não creditada). Agradecimento
a: William E. Pierce. Companhia de
produção de efeitos sonoros e edição musical: Edit International. Serviços de publicidade: Gershenson
& Dingilian Associates (não creditado). Planejamento de créditos: Latigo Productions. Créditos: Pacific Title. Tempo
de projeção: 103 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1974)
Amigo Eugenio,
ResponderExcluirFico a me perguntar, a perguntar até com seriedade demais para mim mesmo, eu, um grande apreciador de westerns, como um filme deste do Peckinpah e com um dos meus grande heróis, O Queen, se deu esta rara ocorrencia de eu jamais ter ouvido falar do mesmo?
Bem; de um jeito ou de outro o amigo sempre anexa a este belissimo rosário de comentários algumas fitas que não são também de meu conhecimento. Entretanto, por este ser um faroeste e dirigido por um dos grande diretores que o cinema já construiu, é que nasce esta minha demorada interrogação e pergunta.
Tragam-me a abeça de Alfredo Garcia, que é de 1972, Pistoleiros do Entardecer, A Morte Não Manda Recado, que circunda também esta data de criação, e tantos outros filmes do bom diretor chegaram a mim com muita facilidade e os degustei com enorme satisfação. E nem citei seu melhor momento, que foi em 1969 com o seu incomparável e elogiadissimo Meu Ódio Será Tua Herança, que além de um formidável filmes ganhou este titulo sem igual.
Vou me abreviar e dizer que estarei na cola deste titulo. Não o perderei numa oportunidade próxima.
jurandir_lima@bol.com.br
Jurandir;
ExcluirAcredito que você iria gostar imensamente deste filme. Melancólico, na justa medida. Infelizmente, não encontrei link pelo qual você possa acessá-lo. Sei que circulou em VHS. Não sei se foi lançado em DVD, ao menos por distribuidora confiável. Tive o prazer de vê-lo no cinema em 1976. Em todo caso, informarei ao amigo apaixonado se vier a saber de novas pistas.
Enquanto isso, insista em sua busca. Busque daí que buscarei daqui.
Abraços.