Lili Marlene (Lili Marleen, 1981) conquistou de
imediato minha adesão entusiasmada quando o vi, há vinte anos. Indo contra a
corrente, considerei-o a melhor realização de Rainer Werner Fassbinder. Não sei
se a avaliação ainda procede. Mas permanece fascinante esse trabalho por muitos
considerado o equivalente alemão de Cabaret (Cabaret, 1972), de Bob
Fosse. Fassbinder revê a Alemanha, o Nazismo e a Segunda Guerra Mundial pelo
prisma da mítica canção do título e da trajetória de Lale 'Willie' Anderson (Hanna
Schygulla), cantora medíocre elevada à condição de preferida do Reich. A
composição e a personagem, enquadradas contra o pano de fundo do momento,
permitem ao realizador o extravasamento de uma obsessão: expor as limitações do
indivíduo diante das engrenagens da História, principalmente nos críticos
momentos de mudanças, quando as contradições e a força das estruturas se
revelam mais evidentes.
Lili Marlene
Lili Marleen
Direção:
Rainer Werner Fassbinder
Produção:
Enzo Peri, Luggi Waldleitner
Bayerischer
Rundfunk (BR), CIP Filmproduktion GmbH, Rialto
Film, Roxy Films
República Federal da Alemanha — 1981
Elenco:
Hanna Schygulla, Giancarlo
Giannini, Mel Ferrer, Karl-Heinz von Hasse, Erik Schumann, Hark Bohm, Gottfried
John, Karin Baal, Christine Kaufmann, Udo Kier, Roger Fritz, Rainer Will, Raul
Gimenez, Barbara Valentin, Helen Vita, Elizabeth Volkmann, Lilo Pempeit, Willy
Harlander, Adrian Hoven, Traute Hoess, Brigitte Mira, Herb Andress, Michael
McLernon, Jürgen Dräeger, Rudolf Lenz, Toni Netzle, Harry Baer, Daniel Schmid,
Peter Chatel, Volker Eckstein, Helmut Petigk, Werner Asam, Dirk Galuba, Sonja
Neudorfer, Irm Hermann, Herbert Steinmetz, Alexander Allerson, Christine de
Loupe e os não creditados Adam & Eve, Franz Buchrieser, Rainer Werner
Fassbinder, Michele Oliveri.
O diretor Rainer Werner Fassbinder |
Por meio de uma
composição musical, Fassbinder aborda a guerra, a Alemanha sob o Nazismo e a fragilidade
do indivíduo frente à História. O ponto de partida é Vivendo com uma canção (Der
Himmel hat viele Farben), autobiografia em forma de novela de Lale
Anderson (1913-1972) — relato falseado, repleto de autocomiseração, segundo os
entendidos. O realizador — em seu jeito muito pessoal de fazer cinema e
interpretar os processos históricos — transforma Lili Marlene na versão
alemã de Cabaret (Cabaret, 1972), de Bob Fosse.
Anderson (Schygulla), também conhecida como Willie, é cantora de segunda
categoria que ganha a vida em casas noturnas de idêntica extração. Alemã de
origem, é encontrada em Zurich, Suíça, logo que o filme começa, entregue à sua
arte e enamorada de Robert Mendelsson (Giannini), músico descendente de
abastada família judia. O romance não conta com o beneplácito de David
Mendelsson (Ferrer), pai do rapaz. O ano é 1938, antevéspera da Segunda Guerra
Mundial.
Giancarlo Giannini no papel de Robert Mendelsson |
Robert representa
o pai em perigosas missões na Alemanha. O velho cuida da evasão de judeus do
país, não por sentimento humanitário, mas pelo ouro que consegue em troca. Numa dessas operações
Robert se faz acompanhar de Willie. Porém, quando voltavam, a polícia da
fronteira — após interferências de David Mendelsson junto ao corpo diplomático
— impede a entrada da moça. Obrigada a permanecer na Alemanha e a ganhar a
vida, Willie consegue ajuda de Henkel (von Hasse), oficial nazista que conheceu
na Suíça. Ela se tornará a cantora do Reich. Enquanto isso, Robert — ciente das
tramoias do pai — se entrega a infrutíferas negociações para tê-la de volta. Mas
também é manipulado e enquadrado às determinações familiares. Contrairá
matrimônio com uma judia de fina estirpe. Por outro lado, as circunstâncias
históricas vão se armando à revelia das vontades e racionalidades individuais.
Lale "Willie" Anderson (Hanna Schygulla), cantora medíocre convertida em preferida do Reich |
Na Alemanha,
apesar do apoio oficial, Willie não supera o patamar da mediocridade. Mas tem a
sorte de gravar Lili Marlene, antiga canção escrita em 1916 por Hans Leip — cabo
do exército alemão apaixonado pelas moças Lili e Marlene — e musicada por
Norbert Schultze. A composição se tornou um hit
dentro e fora da Alemanha. Foi imortalizada, um pouco mais tarde, pela voz de
rouca sensualidade de Marlene Dietrich.
Quando a guerra
estoura, Willie está praticamente condenada ao ostracismo. Mas se erguerá de
forma consagradora, graças aos custos humanos do conflito. Em Belgrado, sob
ocupação alemã, os novos diretores de uma rádio local buscam, no acervo da
emissora, canções capazes de levantar o moral dos soldados nas frentes de combate.
Descobrem a gravação de Willie para Lili Marlene. Seus versos — carregados
de sentimento, sensualidade e lentamente ritmados — tratam de amores deixados
para trás. Executada e transmitida para todos os fronts, toca fundo o coração dos combatentes. Apesar da oposição de
Goebbels — o Ministro da Propaganda do Reich detestava Lale Anderson e a
canção, por ele consideradas símbolos de decadência, mortificação, mediocridade
e perversão moral —, Hitler se manifesta favorável. Graças ao Fürher, Willie e Lili Marlene se tornam
sucessos de público.
Lale Anderson (Hanna Schygulla) e a canção Lili Marlene expressam as angústias do combatente na solidão e desespero do front |
A artista incensada
cantou para Hitler em pessoa e mereceu apresentações grandiosas encenadas com
toda a pompa Nacional-Socialista no Palácio dos Esportes da capital alemã. A
mística em torno da canção aumenta — inclusive entre os aliados — desde que passa
a ser pontualmente executada, às 9 horas e 57 minutos, pela Rádio de Berlim.
Enquanto isso, ainda tentando resgatar Willie, o desinformado Robert atravessa
a fronteira com identidade falsa. Descoberto, é aprisionado. Submetido a
torturas auditivas, é obrigado a ouvir, indefinidamente, um disco danificado da
gravação de Lili Marlene na voz de Willie. Esta, ciente da situação do
amado, tenta ajudá-lo. Começa a cair em desgraça. Sua
situação piora quando consegue, a pedido dos amigos de Robert, imagens dos campos
de concentração, algumas contrabandeadas para a Suíça. É presa. Enquanto isso,
David Mendelsson negocia a libertação do filho. Willie, submetida a
maus-tratos, é acusada de traição. Uma campanha deflagrada pelos aliados revela
aos fãs alemães, civis e militares, sua crítica situação. Temerosos com as
reações que poderiam pipocar internamente e nas fileiras, as autoridades
promovem publicamente a libertação da cantora. A guerra termina. Com isso, os
tempos também mudam, tornando-se implacáveis às recordações de enamorados e
nostálgicos.
Lale "Willie" Anderson (Hanna Schygulla) |
Fassbinder
espantou seus costumeiros admiradores com Lili Marlene. Quem esperava uma
história soturna, carregada pelo espírito da trágica inevitabilidade, ficou pasmo
com o retrato da Alemanha e do Nazismo, que expunha a tragédia pessoal
germânica e evitava, criticamente, a simples vitimização dos judeus. Os
críticos, em sua maioria, reagiram desfavoravelmente. Bom, azar deles e
daqueles que os endossaram. Parece que só percebem os processos sociais e suas
interpretações a partir de um determinado viés, cristalizado como único. Ora, o
fato de se ser contra o Nazismo — Fassbinder foi acusado de glamourizá-lo! — não impede ao cineasta o reconhecimento da tragédia que se abateu sobre o povo
alemão. Mesmo com os judeus sofrendo de modo incontestável os efeitos do
extermínio em massa — indubitável crime contra a humanidade a ser constantemente
lembrado e lamentado —, nada justifica que sejam para sempre observados pelos
míticos prismas do "judeu bonzinho" e de vítimas passivas e indefesas,
qualidades que não podem ser imputadas a coletivo social algum.
O que Fassbinder
pretendeu, e poucos se deram ao trabalho de compreender, foi mostrar os
indivíduos submetidos a engrenagens que influenciam terminantemente as suas
vidas em momentos críticos da História. O que se vê são personalidades ambíguas,
ao mesmo tempo culpadas e inocentes, conscientes e inconscientes dos destinos
que tomam mas não controlam. Robert amava Willie, mas se submeteu à vontade
paterna. Willie amava Robert, mas foi envolvida pelo sucesso que a máquina de
promoção nazista soube manipular em proveito próprio. Paparicada pelo poder e
adorando os favores e benefícios recebidos, Willie se torna força auxiliar da
resistência, mesmo sem saber. Ambiguidade maior, impossível! As éticas, tanto as
do coletivo familiar judaico como as do totalitarismo autoritário, aparecem
como idênticas. Como se vê, ao contrário do que perceberam críticos obtusos e aqueles
que cegamente os endossaram, Fassbinder permaneceu fiel ao seu universo de
dissecador de estruturas: família, Alemanha e Nazismo. São instâncias
manipuladoras e destruidoras, percebidas em Lili Marlene
naquilo que apresentam de humanamente terno e também de cruelmente sórdido.
Lale "Willie" Anderson (Hanna Schygulla) em sua efêmera glória |
Lili Marlene, ouso dizer, é o
melhor filme de Fassbinder. É uma história bela e comovente pelo que apresenta de
sentimento e generosidade, mas também de manipulação e cinismo. Sem medir
esforços, o diretor empreendeu meticuloso trabalho de reconstituição. São
primorosas e arrepiantes as cenas que descortinam o monumental Palácio dos
Esportes de Berlim, ornado de símbolos do poder e brilhando na luz da efêmera
glória de um império programado para durar mil anos. Milhares de extras foram
arregimentados como soldados da infantaria alemã e ouvintes de Lale
"Willie" Anderson, a cantora sem talento convertida de um momento
para outro em diva das altas patentes alemãs e musa dos soldados entrincheirados,
sejam alemães ou aliados. A ambiguidade que perpassa o filme se aplica também à
canção. Se ela encanta e vivifica o coração dos infantes do Reich, também tem
valor estratégico para os próprios aliados: utilizam-na como chamariz ao
combalido combatente germânico, atraindo-o para a morte, o que parece confirmar
alguns temores de Goebbles sobre as qualidades da composição.
Lale "Willie" Anderson (Hanna Schygulla) entre os soldados alemães |
O poder de
encenação de Fassbinder não se preocupa apenas com a simples descrição do
período enfocado. O diretor procura também mostrar como essa época percebia a
si mesma. Assim, o filme é quase uma paródia do cinema alemão de então. Toma de
empréstimo muitos elementos da estética do cinema musical da produtora
Universum Film Aktien Gesellschaf (UFA), principalmente nas sequências iniciais
do cabaré, em Zurich, e no instante em que um soldado extravasa toda a emoção
ao entregar para o apresentador da Rádio de Belgrado a gravação de Lili
Marlene. São tocantes os planos dos semblantes dos soldados no front, embevecidos com os versos e
acordes da composição.
Robert Mendelsson (Giancarlo Giannini) e Lale Anderson (Hanna Schygulla) |
Como acontece em significativa
parte da obra de Fassbinder, uma mulher detém o comando do espetáculo. Willie é
o centro forte da história, como o foram Petra von Kant (Margit Carstensen) em As
lágrimas amargas de Petra von Kant (Die bitteren Tränen der Petra von
Kant, 1972); Veronika Voss (Rosel Zech) em O desespero de Veronika Voss
(Die
sehnsucht der Veronika Voss, 1982), Lola (Barbara Sukowa) em Lola
(Lola,
1981) e Maria Braun (Hanna Schygulla) em O casamento de Maria Braun (Die
ehe der Maria Braun, 1979). Diante delas os homens parecem revelar toda
a sua fragilidade e, mesmo, inutilidade.
Roteiro: Manfred Purzer, associado a Joshua Sinclair e
Rainer Werner Fassbinder, baseados na autobiografia Der Himmel hat viele Farben,
de Lale Anderson. Diálogos adicionais:
Rainer Werner Fassbinder. Diálogos
alemães: Werner Uschkurat. Direção
de fotografia (Fujicolor): Xaver Schwarzenberger, Michael Ballhaus (não
creditado). Desenho de produção:
Rolf Zehetbauer. Música e arranjos:
Peer Raben. Montagem: Rainer Werner
Fassbinder (sob o pseudônimo de Franz Walsch), Juliane Lorenz. Gerente de produção: Konstantin
Thoeren. Direção de arte: Herbert
Strabel. Figurinos: Barbara Baum. Maquiagem: Edwin Erfmann, Anni Nöbauer,
Hedy Polensky, Ingrid Thier. Gerentes de
unidade de produção: Franz Achter, Gert Jakubowski, Josef Moosholzer,
Michael Zöllner. Assistentes de direção:
Karin Viesel, Renate Leiffer (não creditado). Colaboração artística: Harry Baer. Contrarregra: Richard
Eglseder, Frank D. Geuer, Hans Stangl. Som:
Milan Bor,
Karsten Ullrich. Ruídos de sala: Hans-Walter Kramski, Mel Kutbay. Assistente
de som: Hans Reinhardt Weiss. Efeitos
especiais: Joachim Schulz. Fotografia
de cena: Karl Reiter. Assistentes de
câmara: Christian Sebaldt, Josef Vavra. Figurinos de Giancarlo Giannini: Max Dietl. Guarda-roupa: Georg Kuhn, Friedl Schröder, Marianne Schulz. Figurinos de Hanna Schygulla: Ralf
Rainer Stegemann. Assistente de
figurinos: Egon Strasser. Assistente
de montagem: Claudia Wutz. Compositores
da canção Lili Marleen: Hans
Leip, Norbert Schultze. Intérprete da
canção: Ursula May (não creditada). Assessoria
de imprensa: Hans Baur. Técnicos: Michael
Behrens, Klaus Emberger, Helmut Flieger, Heinrich Grob, Siegfried Gundel, Alwin
Schuler, Robert Wischert. Coreografia: Dieter Gackstetter. Instrutor
de diálogos: Sam McGill, Paul Michael McLernon. Apresentação: Enzo Peri. Assistentes
de produção: Carla Thoeren, Michael Waldleitner. Estúdios de filmagem: Bavaria Atelier. Guarda-roupa de Hanna Schygulla: Haute Couture Salon. Equipamentos de câmera: Schmidle &
Fitz. Estúdio de gravação musical:
Tonstudio Meilhaus. Tempo de exibição:
120 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1994)
Muito oportuno seus comentários. Concordo com sua crítica de que esse é um grande filme que trata das ambiguidades entre o indivíduo e a sociedade (o sistema, no caso). O tempo de hoje merece esta reflexão para que não se caia na repetição da História. Lembrai dos anos 30 e do pós-guerra vale para ajudar a compreender, iluminar o tempo presente, creio eu. Parabéns pelos comentários seus sobre filmes.
ResponderExcluirObrigado pelo estímulo, professora! Quanto as lembranças, também parto do princípio de que a memória é a substância que nos redime. Infelizmente, entramos num tempo no qual se cultiva tão somente o aqui e agora. Não vejo muito futuro para nós. Por outro lado, não esqueça: sou um pessimista, de nascença.
ResponderExcluirAbraços.
Sou pessimista, também, e amo este filme. Não me lembro de nenhum momento em que Rainer Fassbinder se aproximou tanto da temática predileta de Joseph Conrad - o ser humano comum atirado em circunstâncias extraordinárias - como neste filme.
ExcluirOlá, Ricardo!
ExcluirAlguns dos melhores filmes tratam dessa temática do Conrad: "O ser humano comum atirado em circunstâncias extraordinárias". No momento, um filme que me vem à memória, acerca desse tema, é QUERIDAS AMIGAS ("Édes Emma, drága Böbe - vázlatok, aktok", 1992), de István Szabó, sobre o desmonte do socialismo na Hungria. Às duas amigas do título, tão habituadas ao status quo, são - como outras pessoas comuns - brutalmente surpreendidas pelo desmonte e ficam totalmente à deriva, sem condições de readequação aos novos tempos. O final é trágico. Se não o viu, VEJA! Outro título, dentre os meus preferidos, é O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA, de John Ford. O Tom Doniphon de John Wayne nesse filme é uma dos mais trágicos que vi. O tempo dele estava chegando ao fim e o personagem não tinha como ter ciência disso. Ficou relegado ao mundo rústico das flores de cactus num Oeste que se transformou a olhos vistos.
Abraços.