Aos meus critérios, Robert Aldrich
é um dos mais importantes cineastas. Liberal da boa cepa, cínico, sem papas na
língua — ou nas imagens —, afrontou várias vezes o status quo estadunidense em realizações no mínimo poderosas. As
boas considerações à honra militar, ao heroísmo, à política, aos bastidores do
teatro foram seriamente arranhadas em filmes vigorosos que invadiram a cena
desde os anos 50. Vera Cruz (Vera Cruz, 1954), A
morte num beijo (Kiss me deadly, 1955), A
grande chantagem (The big knife, 1955), Morte
sem glória (Attack, 1956), O último por-do-sol (The
last sunset, 1961), O voo do Fênix (The flight of the Phoenix,
1965), Os doze condenados (The dirty dozen, 1967), Resgate
de uma vida (The Grisson Gang, 1971), A
vingança de Ulzana (Ulzana's raid, 1972) e O
Imperador do Norte (Emperor of the North Pole, 1973)
honrariam a filmografia de qualquer cineasta. Tive, recentemente, a
oportunidade de ver um dos seus últimos trabalhos: a sóbria, simples e realista
ficção política O último brilho do crepúsculo (Twilight's last gleaming,
1977), interpretada por atores do primeiro time com destaque para Charles
Durning no papel do íntegro, honesto e relativamente ingênuo David Stevens,
Presidente dos Estados Unidos. É enredado numa trama provocada pela inesperada
ação do rebelde General Lawrence Dell (Burt Lancaster), da Força Aérea, que
ameaça lançar mísseis nucleares sobre meio mundo se não forem reveladas
algumas verdades sobre a Guerra do Vietnã. Poucos filmes tiveram tanta
disposição para desmascarar a estrutura atualmente conhecida como Complexo
Industrial Militar e a realpolitik
que orienta os rumos, decisões e capacidade de resistência da república
estadunidense. O último brilho do crepúsculo fornece a apreciação da vez neste
blog.
O último brilho do
crepúsculo
Twilight's last gleaming
Direção:
Robert Aldrich
Produção:
Merv Adelson
Bavaria Atelier, Bavaria Film,
Geria Productions, Lorimar Productions
EUA, República Federal da Alemanha
— 1977
Elenco:
Burt Lancaster, Roscoe Lee Browne,
Joseph Cotten, Melvyn Douglas, Charles Durning, Richard Jaeckel, William
Marshall, Gerald S. O'Loughlin, Richard Widmark, Paul Winfield, Burt Young,
Charles Aidman, Leif Erickson, Charles McGraw, Morgan Paull, Simon Scott, William
Smith, Bill Walker, David Baxt, Glenn Beck, Ed Bishop, Phil Brown, Gary
Cockrell, Don Fellows, Weston Gavin, Garrick Hagon, Elizabeth Halliday, David
Healy, Thomasine Heiner, William Hootkins, Ray Jewers, Ron Lee, Robert Sherman,
John Ratzenberger, Robert MacLeod, Lionel Murton, Robert O'Neil, Shane Rimmer,
Pamela Roland, Mark Russell, Rich Steber, Drew W. Wesche, Kent O. Doering,
Allan Dean Moore, M. Phil Senini, Rich Demarest e o não creditado Gary Harper.
O cineasta Robert Aldrich durante a realização de O último brilho do crepúsculo |
Em 1964, ano
capital para a democracia brasileira, John Frankenheimer dirigiu Sete
dias de maio (Seven days in May). Nele, Burt
Lancaster é o General James Mattoon Scott, falcão da extrema-direita.
Contrariado com um tratado de contenção nuclear assinado com a URSS, ameaçou a
estabilidade política dos EUA com um golpe de Estado. Agora, no título em
apreço, o ator volta ao papel de um militar rebelde de igual patente: Lawrence
Dell, da Força Aérea. De início, Lancaster não se interessou pelo personagem.
Mudou de ideia ao saber da desistência de Aldrich em dirigir o drama bélico Uma
ponte longe demais (A bridge too far, 1977) — passado às
mãos de Richard Attenborough — para assumir O último brilho do crepúsculo[1].
É sua quarta parceria com o cineasta. Estiveram juntos nos sólidos westerns O
último bravo (Apache, 1954), Vera Cruz (Vera
Cruz, 1954) e A vingança de Ulzana (Ulzana’s
raid, 1972).
Marcada por
vigorosas, realistas e cínicas narrativas — geralmente conduzidas a palo seco —,
a carreira do rebelde, liberal e antimilitarista Aldrich entrou em acentuado
descenso a partir de 1967, após o sucesso de Os doze condenados (The
dirty dozen). A seguir, lançou doze títulos, até o encerramento da
carreira em 1981 com o fraco Garotas duras na queda (...All
the marbles). Os destaques dessa etapa final são: Triângulo feminino (The
killing of sister George, 1968), Resgate de uma vida (The
Grisson Gang, 1971), A vingança de Ulzana, O
Imperador do Norte (Emperor of North Pole, 1973), Golpe
baixo (The longest yard, 1974) e O último brilho do crepúsculo.
O último brilho
do crepúsculo é ficção política com ação passada em 1981, quatro anos
após o ano da realização. Todas as cenas foram captadas por duas câmeras em
operação simultânea, quase sempre em ambiente fechado. A edição final lançou
mão da tela dividida, também vista em Golpe baixo. O recurso permitiu a
exibição conjunta de dois a quatro segmentos diferentes da ação. Se o artifício
pretendia ampliar o dinamismo da exposição e elevar a temperatura nos instantes
de tensão, não logrou efeito.
Burt Lancaster no papel do rebelde General Lawrence Dell |
Willis Powell (Paul Winfield) e Audie Garvas (Burt Young), auxiliares de Lawrence Dell (Burt Lancaster) |
Devido ao tema
espinhoso, Aldrich deslocou a base da produção para a República Federal da
Alemanha na esperança de contar com maior liberdade e mobilidade criativas. Na
mira do diretor está o atualmente denominado Complexo Industrial Militar — jamais
mencionado no filme —, considerado o verdadeiro e invisível guardião do poder
político nos Estados Unidos. Seus tentáculos são ocultos, inclusive para o
Presidente da República. Este é apenas uma espécie de gerente consentido para
orientar a sociedade a partir do “controle” do Estado.
Alheio às engrenagens
imperceptíveis que operam nas entranhas do sistema, o Presidente é percebido,
realisticamente, mais como elemento conjuntural de pouco importância, um
mantenedor de aparências passível de pronta remoção a qualquer momento, seja em
nome da segurança ou da preservação das estruturas organizadoras dos interesses
do status quo.
Em que pese a
complexidade do tema com aparência de teoria da conspiração — ainda mais para a
época da realização —, O último brilho do crepúsculo tem aspecto
de filme “B” ou de produto televisivo. Estes padrões são até fontes de
virtudes. Favoreceram a abordagem econômica e direta, sem ostentação. O setor
mais requintado da produção reside no elenco estelar. Hoje, seria inviável reunir
no mesmo cast tantos nomes de peso
sem o grave comprometimento do orçamento. Além de Lancaster, comparecem: Melvyn
Douglas, Richard Widmark, Joseph Cotten, Charles Durning, Richard Jaeckel,
William Marshall, Paul Winfield, Burt Young etc. Vera Miles e Pippa Scott também
marcaram presença, mas foram excluídas do corte final.
Richard Widmark faz o General Martin MacKenzie |
A abertura
privilegia símbolos estadunidenses. A imagem da Estátua da Liberdade é pano de
fundo à apresentação dos créditos ao som de significativos trechos de The
Star-Spangled Banne, o Hino Nacional: exaltam o esforço pioneiro e o
legado forjado a preservar. Toda a ação se passa em um domingo, 16 de novembro
de 1981. O dia prometia folga ao presidente David Stevens (Durning). Logo pela
manhã recebe na Casa Branca o amigo de muitos anos, James Forrest (Lee Browne),
para discutir assunto pessoal. O diálogo não é fundamental à narrativa. Porém, revela
o caráter honesto, íntegro e pragmático — temperado por prudente idealismo — do
supremo mandatário do país. Segue-se reunião de rotina com o experiente
Secretário de Defesa Zachariah Guthrie (Douglas). O resto do período seria
dedicado ao repouso ou aos programas esportivos na TV, desfrutados na companhia
do amigo e ajudante de ordens General O'Rourke (O'Loughlin). Porém, chegam notícias
alarmantes — logo confirmadas pelo General Martin MacKenzie (Widmark).
Uma base de
mísseis nucleares em Montana é tomada pelo brilhante e execrado General
Lawrence Dell. Considerado renegado pelo posicionamento explicitamente
contrário à Guerra do Vietnã, escapou da prisão na companhia de violentos criminosos
comuns: Willis Powell (Winfield), Augie Garvas (Young) e Hoxey (Smith). Conhece
profundamente o local; ajudou a construí-lo. Invade a sala de controles e se
apodera dos mecanismos de lançamento de nove ogivas Titans voltadas para a
Europa, principalmente URSS. Ameaça dispará-las a um só tempo se não for
atendido em algumas exigências: dez milhões de dólares a distribuir entre os
auxiliares; caminho livre para o grupo escapar pelo avião presidencial, o Air
Force One, até um país neutro; revelação pública pelo Presidente, em rede
nacional de rádio e TV, de um documento ultrassecreto sobre a Guerra do Vietnã
— gerado pelo Conselho de Segurança Nacional em administração há muito passada;
e, finalmente, o próprio David Stevens deve se apresentar em Montana como
refém.
James Forrest (Roscoe Lee Browne) |
David Stevens (Charles Durning), Presidente dos Estados Unidos |
Daí em diante o
filme engrena e toma pulso após um começo visivelmente burocrático e irritante,
marcado pelo desleixo de situações improváveis e comportamentos excessivamente
estereotipados da parte dos auxiliares de Dell — um dos quais é logo descartado.
Enquanto o General Mackenzie providencia ação armada de retomada da base — logo
fracassada —, David Steven se reúne com representantes do alto poder da República:
Ralph Whittaker (Erickson), Diretor da CIA; William Klinger (Marshall),
Procurador Geral; General Peter Crane (McGraw), Comandante da Força Aérea;
Arthur Renfrew (Cotten), Secretário de Estado; General Phil Spencer (Scott), Presidente
do Estado Maior Conjunto; Zachariah Guthrie; e o General O’Rourke. De certo
modo Robert Aldrich se inspira, em escala bastante reduzida, nas situações
apresentadas por Stanley Kubrick na Sala de Guerra de Dr. Fantástico (Dr.
Strangelove or: how I learned to stop worrying and love the bomb,
1964).
David Stevens
está visivelmente abalado. O staff
não apresenta soluções plausíveis à crise. Lawrence Dell deu mostras da
seriedade das ameaças de detonar meio mundo. O General Mackenzie não logra
sucesso na tentativa de imobilizar os invasores. Tudo leva a crer que o Presidente
terá que se apresentar como refém. Correrá o sério risco de morrer. Chocantes,
entretanto, são as revelações do secretíssimo memorando 9579 do Conselho de
Segurança Nacional, cujo conteúdo deve chegar ao conhecimento do público: os EUA
sempre souberam que jamais venceriam no Vietnã. Ainda assim, sacrificaram intencionalmente
as vidas de mais de 50 mil jovens convocados para o front e cerca de um milhão de asiáticos. Somente para exibir o
poderio militar aos russos e demonstrar que estavam dispostos a tudo na defesa
do “mundo livre”. Levaram adiante um holocausto teatral de proporções homéricas
e com ares de negligência criminosa.
Zachariah Guthrie (Melvyn Douglas), Secretário da Defesa |
O íntegro e
ingênuo David Stevens insiste para o documento chegar ao conhecimento do público,
mesmo que abale a confiança depositada na condução dos negócios do país. Apela
ao Secretário de Defesa. Pressionado, Zachariah Guthrie logo altera a expressão.
A câmera lhe capta o semblante revelador. Comunica apenas ao espectador que se
trata de um guardião da mais maquiavélica realpolitik,
há muito sabedor da existência do memorando. A partir daí começa de fato um
jogo de gato e rato de movimentos pouco claros a Stevens. À revelia do chefe
de Estado, o staff e o núcleo duro do
comando militar — representado pelo General Mackenzie — sabem bem o que fazer
em obediência à lógica de que os fins justificam os meios. O epílogo é trágico
e pessimista. Nas mãos do realista Robert Aldrich não seria de outra forma.
Ao final das
contas, e apesar de algumas incoerências, O último brilho do crepúsculo tem muita
envergadura. Traz a marca da melhor mão do diretor, tão habituado aos libelos
explosivos — ainda mais em época caracterizada por pleno desencantamento e
falta de confiança nos destinos não só dos Estados Unidos como de todo o
Ocidente. A realização cairia muito bem para um honroso encerramento de
carreira. Infelizmente, Aldrich ainda entregaria os insatisfatórios Garotos
do coro (The choirboys, 1977), O rabino e o pistoleiro (The
Frisco Kid, 1979) e Garotas duras na queda.
Charles Durning como David Stevens, Presidente dos Estados Unidos |
O último brilho
do crepúsculo está embasado em roteiro de Ronald M. Cohen e Edward
Huebsch, extraído da novela Viper three de Walter Wager. Este
suporte, pelo lido e ouvido, se alimentou de anotações de um expert no tratamento da realpolitik: Henry Kissinger, principalmente
nos livros Nuclear weapons and foreign policy e A world restored —
publicados em 1957.
Apesar do
protagonismo de Burt Lancaster, o melhor em cena é Charles Durning — disparado.
Aceitou o papel recusado por Paul Newman e compôs inspirado retrato para um Presidente
estadunidense repleto de boa vontade e ingenuamente enredado nos fios de uma
trama há muito consolidada, que lhe escapa totalmente ao controle. Contribuem
para o brilho da narrativa a direção de fotografia carregada de inquietante atmosfera
de Robert B. Hauser e a empolgante pontuação musical de Jerry Goldsmith, substituto
do então enfermo compositor Frank DeVol — colaborador habitual de Robert
Aldrich.
Os generais Martin MacKenzie (Richard Widmark) e Lawrence Dell (Burt Lancaster) |
Por fim, algumas
curiosidades: o título original Twilight's last gleaming é retirado
de um verso do Hino Nacional dos Estados Unidos. Richard Widmark em momento
algum interagiu com os demais atores, exceto alguns figurantes. Devido aos
problemas de agenda, teve todas as cenas filmadas em separado. Nos
Estados Unidos a exibição aconteceu com intervalo, apesar da
duração nem tão extraordinária de 146 minutos.
Roteiro: Ronald M. Cohen, Edward Huebsch, baseados na
novela Viper three de Walter Wager. Produção executiva: Helmut Jedele, Lutz Hengst (Geria), Harry R.
Sherman (Lorimar). Música: Jerry
Goldsmith. Direção de fotografia
(Technicolor, Panavision): Robert B. Hauser. Montagem: Michael Luciano, William Martin, Maury Winetrobe. Assistente de montagem: Paul LaMastra
(não creditado). Produção de elenco:
Jack Baur. Desenho de produção: Rolf
Zehetbauer. Direção de arte: Werner
Achmann. Figurinos: Tom Dawson. Maquiagem e penteados: Georg Jauss, Hans-Peter
Knoepfle. Supervisão da produção: Harry
R. Sokal. Assistente de direção:
Rolf M. Degener. Primeiro assistente de
direção: Wolfgang Glattes. Segundo
assistente de direção: Stefan Zürcher (não creditado). Concepção do poster: Bill Gold (não creditado). Arte do poster: Robert Tanenbaum (não
creditado). Edição de som: Gordon
Daniel, Gordon Davidson, Gilbert D. Marchant. Operador de boom: John Stevenson. Mixagem da regravação de som: John Wilkinson. Mixagem de som: James Willis. Efeitos
especiais: Henry Millar. Assistente
de efeitos especiais: Willi Neuner. Dublê:
Tony Epper (não creditado). Eletricistas-chefes:
Georg Eck, Jack Wilson. Operadores de
câmera: Gerhard Fromm, Dieter Matzka.Assistentes
de câmera: Franz Knoll, Gernot Köhler, Alfred Leitensdorfer. Fotografia de cena: Karl-Heinz
Vogelmann. Supervisão de guarda-roupa:
Tom Dawson. Guarda-roupa: Siegi
Haubold, Hubert Lindenberg. Montagem
musical: Joan Biel. Edição musical:
John C. Hammell. Orquestração: Arthur
Morton. Coordenação de transportes: Don
French (não creditado). Concepção dos
créditos: Walter Blake. Publicidade:
Dave Davies. Consutoria técnica: Andrew
Erwin. Continuidade: Alvin Greenman.
Edição em linha: Petra von Oelffen. Assistente de produção: Irmi von
Rüxleben. Dublagem para Richard Jaeckel:
Klaus Löwitsch (não creditado). Estúdio
de divisão de tela: Modern Film Effects. Estúdio de gravação: Glen Glenn Sound Company. Estúdio de elaboração de créditos principais: The Howard Anderson
Company. Sistema de mixagem de som:
monoaural para cópias óticas em 35mm, estereofônico em quatro pistas para
cópias magnéticas em 35mm. Tempo de
exibição: 146 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 2018)
[1] Atualmente denominado O último clarão do crepúsculo
no Internet Movie Database (IMDb - <https://www.imdb.com/title/tt0076845/?ref_=nv_sr_1?ref_=nv_sr_1>).
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