domingo, 15 de maio de 2016

JOHN FORD ABRE A ‘TRILOGIA DA CAVALARIA’ COM O DESMISTIFICADOR “FORT APACHE”

Em matéria de cinema sou fordiano até a medula. Se a eleição dos textos para o blog não fosse presidida por critérios randômicos, outras apreciações a filmes de John Ford teriam a primazia na ocupação do espaço. O título da vez é Sangue de heróis (Fort Apache, 1948), um dos mais importantes westerns segundo minhas considerações. A realização abre a famosa “trilogia da cavalaria”, baseada em novelas de James Warner Bellah. A trinca — somada a outras obras rapidamente realizadas em regime de baixo orçamento — permitiu ao diretor o levantamento de recursos para levar às telas o tão acalentado projeto de Depois do vendaval (The quiet man, 1952). Sangue de heróis está entre os títulos que inauguram a fase romântica do western, dedicada à revisão crítica dos mitos da fronteira. Corajosamente pioneiro, investe contra a aura de herói em torno do General Custer — disfarçado sob a identidade do Tenente-Coronel Owen Thursday — e confere humanidade aos índios. Também assinala a primeira parceria de Ford com o roteirista Frank Nugent, responsável pelos guiões de outros clássicos do diretor, principalmente o de Rastros de ódio (The searchers, 1956). A narrativa enganadoramente simples de Sangue de heróis conjuga humor, drama, tensão e crítica ao heroísmo desmedido. Exalta a camaradagem e destaca o papel das mulheres como elementos humanizadores e integradores. A apreciação a seguir foi escrita em 1975, quando o autor estava com 19 anos. 






Sangue de heróis
Fort Apache

Direção:
John Ford
Produção:
John Ford, Merian C. Cooper
Argosy Pictures, RKO Radio Pictures
EUA — 1948
Elenco:
John Wayne, Henry Fonda, Ward Bond, Victor McLaglen, Shirley Temple, John Agar, Pedro Armendáriz, George O’Brien, Anna Lee, Irene Rich, Dick Foran, Guy Kibbee, Grant Withers, Jack Pennick, Ray Hyke, Movita Castenada, Hank Worden, Mae Marsh, Philip Kieffer, Miguel Inclán, Mary Gordon e os não creditados Frank Fergunson, Francis Ford, Cliff Clarke, William Forrest, Fred Graham, Mickey Simpson, Harry Tenbrook, Archie Twichell, Jane Crowley, Frank McGrath, Phil Schumacher, Brick Sullivan, Eleanore Vogel.



Nas locações de Sangue de heróis: o diretor John Ford, de branco, sentado, ladeado à esquerda por Jack Pennick, John Agar e, à direita, Grant Withers. Atrás, a partir da esquerda: Dick Foran, Victor McLaglen, John Wayne, Ben Johnson, Henry Fonda  e Pedro Armendariz



O cinema estadunidense participou decisivamente do esforço bélico durante a Segunda Guerra Mundial. Além de contribuir com filmes de propaganda ou dedicados à educação e treinamento dos soldados, deslocou ao front profissionais os mais diversos. Alguns desses, atores e atrizes principalmente, desempenharam seus próprios papéis em shows e entrevistas com soldados. Animavam pelotões para elevar o moral e a autoestima das tropas. Outros se envolveram diretamente nos conflitos e ocuparam postos na hierarquia das forças armadas. É o caso de Tenente Comandante John Ford. O diretor de No tempo das diligências (Stagecoach, 1939) exerceu, de 1942 ao fim da guerra, atribuições de correspondente. Realizou importantes documentários na frente e retaguarda das batalhas: Sex hygiene (1942); The battle of Midway (1942)  que lhe custou a vista esquerda, atingida por um disparo; Torpedo Squadron (1942); At the front in North Africa with the U.S. Army (1943); December 7th (1943); We sail at midnight (1943); How to operate behind enemy lines (1943); German industrial manpower (1943); e Undercover (1944).


Em 1952, sete anos após o término do conflito, Ford realizou a inconteste obra mestra Depois do vendaval (The quiet man, 1952). Trata-se de projeto antigo, baseado em romance de Maurice Walsh, ao qual se entregou com afinco desde o retorno à vida civil. Rodado e ambientado na Irlanda de seus ancestrais, é deliciosa celebração de valores que lhe são caros: tradição, comunidade, simplicidade, alegria de viver, camaradagem e o convívio fraterno entre os diferentes. Exalta a paz como raras vezes o cinema logrou fazer. Revela uma particular concepção de paraíso. O caráter lírico e evocativo da realização aliviava diretor e público das profundas sequelas decorrentes de seis longos anos de guerra.


De 1946 a 1952  desde Paixão dos fortes (My darling Clementine) a Sangue por glória (What price glory), excetuando-se o documentário This is Korea (1951)  Ford se lançou a uma série de filmes, em geral westerns de produção rápida, para levantar os recursos necessários a Depois do vendaval. As tomadas em locações exigiriam aporte financeiro acima do normal. Para garantir a plena liberdade de criação, acumularia também funções de produtor. Assim evitaria a geralmente nefasta interferência dos chefes de estúdios, prisioneiros de fórmulas viciadas e esquemas padronizados.


Entre as obras que suportaram a concretização de Depois do vendaval está a famosa “trilogia da cavalaria” baseada em novelas de James Warner Bellah e inaugurada com Sangue de heróis em 1948. Completam-na Legião invencível (She wore a yellow ribbon, 1949) e Rio Bravo (Rio Grande, 1950).


Sangue de heróis é o terceiro western rodado por Ford à sombra dos imponentes rochedos de Monument Valley[1] e a segunda produção da Argosy Pictures[2] — companhia que fundou em 1947, associado a Merian C. Cooper — produtor e codiretor, com Ernest B. Schoedsack, de King Kong (King Kong, 1933). Sangue de heróis inicia a frutífera e bem-sucedida colaboração entre Ford e o roteirista Frank S. Nugent, responsável pelos guiões de O céu mandou alguém (3 godfathers, 1948); Legião invencível; Caravana de bravos (Wagonmaster, 1950); Depois do vendaval; Mister Roberts (Mister Roberts, 1955); Rastros de ódio (The searchers, 1956); The rising of the moon (1957); O último hurra (The last hurra, 1958); Terra bruta (Two rode togheter, 1961); e O aventureiro do Pacífico (Donovan’s reef, 1963).


Ford renovou o western com o paradigmático No tempo das diligências, com o qual revelou ao cinema nova maneira de interpretar histórias e episódios relacionados à mitologia da fronteira. A vocação de pioneiro audacioso vem mais uma vez à luz em Sangue de heróis, primeiro filme a fornecer — timidamente, ainda — retrato favorável aos índios e a questionar — disfarçando episódios e personagens verídicos — a aura de herói do General Custer. Até então, na maioria dos westerns, os índios raramente falavam. Emitiam no máximo sons desconexos e se ocultavam sob máscaras assustadoras, pouco confiáveis, da perversidade e morbidez. Sangue de heróis desenha novo quadro. Os Apaches de Cochise (Inclan) são mostrados como vítimas de perfídias e traições, tanto dos tratados não cumpridos como do militarismo sedento de glórias, arrogante e carreirista. Em sequência repleta de novidade para a época, Cochise lista para o comandante da cavalaria que o combate, Tenente-Coronel Owen Thursday (Fonda), todas as mazelas da conquista: uma história de expropriações, submissões e massacres que custaram a dignidade, a determinação e o orgulho de sua gente.


O Tenente-Coronel Owen Thursday (Henry Fonda), à direita, e a filha Philadelphia (Shirley Temple) são recebidos no Fort Apache. Ao centro, o Capitão Kirby York (John Wayne). À esquerda, o Capitão Sam Collingwood (George O'Brien) e a esposa Emily (Anna Lee). Junto à porta, o Sargento Beaufort (Pedro Armendáriz)


O General George Armstrong Custer e seus homens  o Sétimo Regimento de Cavalaria baseado em Fort Lincoln  foram dizimados em 25 de junho de 1876 na célebre batalha de Little Big Horn, ao enfrentar a confederação Sioux chefiada por Touro Sentado ou Sitting Bull. A derrota para um inimigo considerado belicoso e traiçoeiro adquiriu os imediatos contornos da abnegação e do sacrifício heróico: Custer e comandados teriam morrido gloriosamente, pela pátria. Assim entraram para a História. Ao comandante não eram atribuídas responsabilidades pela derrocada. Saía com a reputação completamente ilesa do episódio. Porém, com o passar do tempo, remove-se aos poucos o véu da mistificação. A história do massacre sofre reavaliações. O gênio militar de Custer é questionado e macula a imagem do mártir. O Sétimo de Cavalaria fora vitimado, acima de tudo, pela prepotência e sede de glória do chefe. Subestimara as capacidades de fogo e organização do oponente, principalmente a superioridade numérica e melhor conhecimento do terreno. A estratégia dos índios conduziu o regimento ao embate suicida. Em busca dos louros da glória e confiando na vitória fácil, Custer não aguardou os reforços por chegar.


Ernest Haycox reescreveu a história de Custer em Bugles in the afternoon, peça de desmistificação na qual buscou a máxima aproximação aos fatos. James Warner Bellah concebeu a novela Massacre — ponto de partida do roteiro de Frank S. Nugent — com base nas ponderações de Haycox. Porém, comparado ao original, foi comedido na exposição. Ataca o militarismo exacerbado e belicoso, mas evita o confronto direto com a face perdida de Custer. Privilegia a descrição do cotidiano de uma guarnição acantonada nas lonjuras imensas, afastada dos valores civilizados do Leste. A abordagem sincera, terna e nostálgica evoca o senso de comunidade instalado no seio da guarnição formada por soldados de todos os tipos e origens, acompanhados ou não dos familiares. Os componentes desse universo integrado e harmônico, conformado pela ética militar, tentam, dentro do possível, evitar que a instituição tão onipresente e à qual devotam fidelidade, soterre individualidades, vontades e desejos.


O Fort Lincoln da verdade histórica, rebatizado para Fort Stark por Bellah, converte-se em Fort Apache no roteiro de Nugent, guarnição perdida em algum trecho do Arizona. Os Sioux de Touro Sentado dão lugar aos Apaches de Cochise. O General George Armstrong Custer comparece sob a identidade do Tenente-Coronel Owen Thursday. A descrição minuciosa e bem-humorada do dia-a-dia do posto é preservada, afinal, corresponde à idealização fordiana do mundo.


Cochise (Miguel Inclán) e seus apaches

  
O cinema, campo de batalha do diretor, sempre foi um meio de expressão popular, de fácil penetração no seio das massas. Estas, apesar de toda a desmistificação em andamento na época da realização de Sangue de heróis, tinham Custer em alta conta. Por isso, para não ferir as suscetibilidades e a autoestima do público, Ford e Nugent preferiram ocultar a real identidade das situações, lugares e personagens envolvidos. Entretanto, há mais: apesar de criticar Custer, Ford reverenciava o mito do comandante morto. Justificou-se em entrevista a Peter Bogdanovich, ao alegar, basicamente nestes termos: a vida de um país segue melhor quando o povo possui heróis para admirar, mesmo que não fossem, em verdade, grandes homens[3]. Portanto, quatorze anos antes de O homem que matou o facínora, o cineasta fazia jus aos dizeres emblemáticos não apenas desse filme como de toda a fordiana: “Quando a realidade se transforma em lenda, publica-se a lenda”, escritos com todas as letras no epílogo de Sangue de heróis, apesar da abordagem crítica que perpassa a realização.


Ao longo de todo o filme Ford reavalia, através de Thursday — ávido por preservar a reputação e a integridade — o comportamento belicoso, arrogante, aristocrático, autoritário, psicótico e de desprezo aos subordinados, não apenas de Custer mas de militares assemelhados. Expõe, no epílogo, a relativa autonomia de um processo de mitificação desencadeado, por mais irônico que pareça, pela própria instituição — sacrificada inutilmente em muitos homens devido à cegueira beligerante desmedida. O Capitão Kirby York (Wayne) — homem comum, egresso das fileiras populares, merecedor do respeito e carinho de Ford  sabia bem quem era Thursday, o superior que o desprezava e ao qual se opunha. Não obstante, quando os fatos na forma de mito se incorporam à História, concorda com os jornalistas em visita ao forte: enaltece a imagem valorosa e altiva do “herói”. Porém, sabe: a verdade é inteiramente outra.


As mulheres testemunham a partida dos homens para a guerra: Mrs. Mary O'Rourke (Irene Rich) e Mrs. Gates (Mae Marsh)


"Não consigo vê-lo! Tudo o que vejo são bandeiras", diz Mrs. Emily Collingwood (Anna Lee), ao centro, referindo-se ao marido, enquanto assiste com Philadelphia (Shirley Temple) e Mrs. Mary O'Rourke (Irene Rich) a partida dos homens para a guerra


Mais trágico ainda: a sombra do herói é única. Sobrepuja engrandecida as imagens de todos os demais, homens comuns e anônimos mortos ao seu redor. A isso alude o repórter (Fergunson): “Só se fala de Thursday, mas e os outros como o Capitão Sam Collingwood (O’Brien)?” Ou os sargentos Mulcahy (McLaglen), O’Rourke (Bond), Beaufort (Armendáriz), Quincannon (Foran) e Shattuck (Pennick), para não falar de outros, ainda mais desconhecidos? Esse olvido é previsto pela Sra. Emily Collingwood (Lee). Ladeada por outras mulheres na belíssima cena em que observa, da murada do forte, a última partida do marido com a tropa, diz: “Não consigo vê-lo. Tudo o que vejo são bandeiras”. A História é cruel. Esquece a maioria para engrandecer a memória de um. John Ford contraria o esquecimento. Boa parte dos filmes que realizou é, em grande parte, um elogio ao esforço não reconhecido da gente simples. Kirby York recompõe os contornos de suas identidades ao completar a fala do repórter: “Eles estão lá fora, comendo feijão e recebendo 13 dólares por mês...”.


O Tenente-Coronel Owen Thursday (Henry Fonda), os capitães Kirby York (John Wayne) e Sam Collingwood (George O'Brien) mais o Sargento-Major Michael O'Rourke (Ward Bond)


A história do filme: rebaixado ao posto de Tenente-Coronel, o ex-General Thursday, acompanhado da filha Philadelphia (Shirley Temple em um dos seus últimos papéis no cinema), viaja pelas estradas poeirentas do Arizona ao encontro do Fort Apache. É o novo comandante da guarnição. Não há destino pior para quem foi adido militar na Inglaterra. As primeiras frases pronunciadas por Thursday revelam desprezo pela região que percorre. Em poucos planos e falas Ford adianta o caráter do militar: um aristocrata empedernido, apegado aos padrões da honra estamental. Não se conforma com o destino imposto. Vê o Fort Apache da forma a mais instrumental: apenas um lugar para cumprir, rapidamente e a contento, missões gloriosas para recuperar a honra perdida. Numa parada, pai e filha encontram o jovem Tenente Michael O’Rourke (Agar), recém-saído da academia militar e também a caminho do Fort Apache. Entre ela e o rapaz firma-se uma relação de mútua simpatia aprofundada ao longo do filme. Quanto a Thursday, observa com reservas o oficial, por dois motivos: primeiro, o tenente descende de imigrantes irlandeses e tem por pai um suboficial, o Sargento-Major O’Rourke (Bond). O comandante não compreende como o filho de um subalterno atingiu tão rapidamente o oficialato. Segundo: à parada chega uma patrulha para escoltar Michael ao forte. Como as comunicações pelo telégrafo estavam interrompidas, honra igual não foi oferecida a Thursday. Mais tarde, em nome da honra, proibirá os encontros da filha com o Tenente.


A arrogância e prepotência de Thursday interferem radicalmente no cotidiano do forte. A seu critério, sem ouvir auxiliares, altera toda a estrutura de comando. Aos que discordam, faz questão de lembrar, em alto e bom som, quem é o comandante, mesmo que demonstre patente ignorância sobre a região, os homens e, principalmente, os índios. Apega-se, sem transigir, ao formalismo acadêmico. Logo entra em conflito com os O’Rouke. As desavenças com os capitães Collingwood e York também não tardam. Entre superior e subordinados Ford apresenta duas visões do exército e destaca com qual simpatiza: 1) a instituição apropriada por homens pomposos como Thursday, que a utilizam em benefício próprio, desprezando os elementos humanos que a formam; e, 2) o celeiro de homens comuns que fazem da farda um modo de vida ao passo que a guarnição se torna um centro de cultivo da igualdade, camaradagem, democracia, sobrevivência e interação social.


Rumo ao Fort Apache: Philadelphia (Shirley Temple) e o pai, Tenente-Coronel Owen Thursday (Henry Fonda)

  
Sob o novo comando a farda adquire peso insuportável. Thursday se faz onipresente em todos os setores da vida do forte. Abole as individualidades. Transforma tudo e todos em meras peças que manipula ao bel-prazer.


A oportunidade para demonstrar a superioridade de suas táticas não tarda. Diante da palavra sempre quebrada dos brancos, Cochise e seus guerreiros fogem da reserva e se internam no México. São contactados pelo Capitão York e Sargento Beaufort. O oficial, mediante empenho da própria palavra, consegue o retorno dos Apaches à reserva, onde devem aguardar a abertura de novas negociações. Mas Thursday passa por cima do acordo. Pretende subjugar Cochise militarmente, punindo-o pela fuga. Toma os índios como selvagens ignorantes. Apesar de inferiorizado numericamente, acredita na vitória fácil, e, consequentemente, na transferência para paragens mais civilizadas. York o previne dos riscos da campanha. Além de não ser ouvido, é chamado de covarde por insistir na advertência. Obrigado a depor as armas, é despachado para a retaguarda e condenado à Corte Marcial.


Philadelphia (Shirley Temple), o Segundo Tenente Michael Shannon O'Rourke (John Agar) e o Tenente-Coronel Owen Thursday (Henry Fonda) 

  
Conforme o esperado, o “inferior” Cochise humilha Thursday. Revela suficiente conhecimento de estratégia e atrai o comandante a uma armadilha fatal. De longe, afastados do front, York e o Tenente O’Rourke assistem impotentes à derrota de seus pares mal abrigados numa reentrância do terreno. A poeira cobre a cena do massacre. Segue-se o processo de mitificação de Thursday.


Apesar de não gozar da simpatia de Ford, Thursday não sofreu em sua caracterização. A direção evitou o maniqueísmo que o reduziria à unidimensionalidade. O personagem interpretado por Henry Fonda é complexo e ambíguo, como todos os componentes da galeria fordiana. O realizador, ao logo de quase todo o filme, acentua os defeitos e preconceitos sociais do militar. Mas não deixa de lhe enaltecer as qualidades nos instantes finais. Ao isolar York do combate, ordenou também o afastamento do Tenente O’Rourke, provavelmente por pressentir a necessidade de preservá-lo para a filha. Percebeu que o enredo poderia se desenrolar fora do previsto. Mesmo assim, apegado à honra, manteve-se resoluto na decisão de combater. Não violaria as próprias ordens e convicções militares, das quais era prisioneiro integral. Seguiu em frente, rumo à derrocada.


O Tenente-Coronel Owen Thursday (Henry Fonda) e o restante de seus comandados, atraídos a uma emboscada e massacrados

  
A primeira refrega sofrida pelas tropas revela o caráter suicida da missão. York, apesar de tudo, admira ao longe a obstinada coragem do comandante. Testemunha o instante no qual, desnorteado na confusão da batalha, é derrubado da montaria. Parte para socorrê-lo. Thursday, sem demonstrar fraqueza, dispensa a ajuda. Apenas ordena que York lhe entregue o cavalo e a espada. Feito isso, deve retornar ao posto ao qual foi designado, pois o Fort Apache poderá, em breve, necessitar de novo oficial no comando.


Ford defende o índio e também a instituição militar. Muitos viram nessa atitude a equivocada adesão do realizador ao militarismo cego. Enganaram-se. O diretor, mais de uma vez em sua carreira, sempre repudiou o assentimento extremado às instituições. Isto salta aos olhos, de imediato, em Sangue de heróis. A caserna não é um conjunto de regras a serem obedecidas mecanicamente, mas o ambiente perfeito para o diretor encenar o drama de homens internamente divididos. Kirby York é exemplo disso. Como soldado deve obediência aos superiores, representantes diretos da instituição que lhe cobra lealdade. Por outro lado, também se orienta pelo bom senso decorrente da própria autonomia moral. Assim questiona a vocação obstinada de Thursday ao heroísmo, tão perigosa à honra e à integridade da cavalaria. York se debate, de um lado, com a ética do dever; de outro, com a ética da responsabilidade individual que assume dimensões coletivas ao manifestar preocupação com o destino dos soldados que formam a instituição, conjuntos tão desprezados por Thursday.


Ford trabalha a oposição York-Thursday para exaltar valores que lhe são caros. Do lado do capitão está a fronteira, a terra ainda a povoar, se possível por homens imbuídos de ideias novas, baseados numa moral não poluída pelos vícios da civilização representada pelo tenente-coronel. Ao egocentrismo deste, Ford opõe o senso de camaradagem e de respeito ao soldado e ao índio daquele. Mas o diretor sabe: o mundo não é formado apenas por homens como York. Indivíduos como Thursday existirão sempre. A utopia fordiana busca o meio termo na junção das oposições. Deve-se a essa procura muito da beleza dos filmes de Ford. Na sua visão da “terra sem males” ninguém é desprezado. Todos podem ser harmonizados e integrados. Não para menos o filho de Michael e Philadelphia terá por nome Michael Thursday York O’Rouke.


A corrente da integração fordiana:  Mrs. Gates (Mae Marsh), Sargento Festus Mulcahy (Victor McLaglen), Mrs. Emily Gollingwood (Anna Lee), Tenente-Coronel Owen Thursday (Henry Fonda),  Mrs. Mary O'Rourke (Irene Rich), Capitão Sam Collingwood (George O'Brien), Philadelphia (Shirley Temple) e o Sargento-Major Michael O'Rourke (Ward Bond)

  
Outro aspecto relevante é o papel das mulheres nos filmes de Ford, particularmente em Sangue de heróis. Surgem como conciliadoras face ao dado impulsivo do elemento masculino. Desejam a paz e o equilíbrio. Apesar de a guarnição ser por excelência um universo de homens, as mulheres marcam presença em todos os setores, sempre atentas e ativas: nas chegadas, partidas, festas e nos funerais. Humanizam o ambiente e firmam alianças onde acampa a discórdia. Exemplo marcante disso é a bela sequência do baile dos suboficiais. Segundo as regras do cerimonial, o pouco à vontade Thursday deve abrir a festa e dançar com a senhora Mary O’Rourke (Rich). O Primeiro Sargento O’Rouke deve segui-lo no gesto. Dançará com a filha do viúvo comandante. No ápice da festa, os casais separados se enlaçam pelos braços, como se formassem uma corrente de elos intercalados por homens e mulheres. É a perfeita ilustração de um mundo integrado à generosidade dos ideais humanistas e igualitários de Ford.





Música: Richard Hageman. Arranjos, Orquestração e direção musical: Lucie Cailliet. Roteiro: Frank S. Nugent, com base em Massacre, novela de James Warner Belah, por sua vez inspirada em Bugles in the afternoon, de Ernest Haycox. Direção de fotografia (preto e branco): Archie Stout, William H. Clthier (não creditado). Direção de arte: James Basevi. Assistentes de direção: Lowell J. Farrell, Jack Pennick (não creditado). Montagem: Jack Murray. Coreografia: Kenny Williams. Efeitos especiais: Dave Koehler, Daniel Hayes (não creditado). Editoria de pesquisa: Katherine Cliffton. Pesquisa de Figurinos: D. R. O. Hatswell. Som: Frank Webster, Joseph I. Kane. Consultoria técnica: Katharine Spaatz, Major Philip Keiffer. Maquiagem: Emile LaVigne. Guarda-roupa masculino: Michael Meyers. Guarda-roupa feminino: Ann Peck. Camareiro: Joseph Kish. Direção de segunda unidade: Cliff Lyons. Contrarregra: Jack Golconda. Chefe de produção: Bernard McEveety. Dublês (não creditados): Frank Baker, Ben Johnson, Fred Carson, John Epper, Richard Farnsworth, Fred Graham, John Hudkins, Walt La Rue, Cliff Lyons, Ted Mapes, Frank McGrath, Gil Perkins, Bob Rose, Danny Sands, Barlow Simpson, Jack Williams, Henry Wills, Terry Wilson. Produção executiva (não creditada): Merian C. Cooper, John Ford. Assistente de gerente de produção: William Forsyth (não creditado). Gerente de produção: Bernard McEveety (não creditado). Direção de segunda unidade: Cliff Lyons (não creditado). Segundo assistente de direção: Frank Parmenter (não creditado). Capataz de construções: Robert Clark (não creditado). Operador de câmera: Eddie Fitzgerald (não creditado). Assistente de câmera: Carl Gibson (não creditado). Fotografia de cena: Al St. Hilaire (não creditado). Cantor em playback: Morton Downey (não creditado). Apresentação: Merian C. Cooper, John Ford. Marcação de cena para John Wayne: Sid Davis (não creditado). Médicos nas locações (não creditados): James Green, Robert Nielson. Ligações aéreas: Paul Mantz (não creditado). Assistente da produção executiva: Jack Pennick (não creditado). Auditoria da produção: Charles Quesnel (não creditado). Continuidade: Meta Stern (não creditado). Assistente de publicidade: Tom Wood (não creditado). Sistema de mixagem de som: Western Electric Recording. Tempo de exibição: 127 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1975)



[1] Antes de Sangue de heróis, Ford rodou em Monument Valley: No tempo das diligências e Paixão dos fortes (My darling Clementine, 1946).
[2] Domínio de bárbaros (The fugitive, 1947), de John Ford, adaptação da novela O poder e a glória, de Grahan Greene, é a primeira produção da Argosy.
[3] BOGDANOVICH, Peter. John Ford. Madrid: Editorial Fundamentos, 1971. p. 87.

6 comentários:

  1. John Ford foi un trovador da vida e da épica. Como ben desglosas inventou varias linguaxes do cine. É me imposible engadir nada novo. Unha información extensa e fantástica. Dende logo queda demostrado que o cine é unha das túas grandes pasións.
    Un pracer leerte.

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    1. Sí, Marybel, el cine es una de mis grandes pasiones. Ciertamente es la mayor pasión que tengo, desde 1958, cuando estaba con dos años de edad. Y en medio de tantas pasiones cinematográficas, John Ford es mi director mayor, el más estimado. Es apaixonante su manera de lidar con los personajes, principalmente la forma de posicionalos en el espacio. El espacio fordiano es incomparable, principalmente por ser un espacio humanizado. Y la película "Fort Apache" es una de los mejores en los cuales el gran director desarrolló su épica, su ética y su estética. Muy grato. Besos y abrazos.

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  2. Eugenio,

    Vi esta fita há anos e anos atrás, não como Sangue de Herois, mas como Fort Apache.

    Tanto que certo dia ao ver o titulo Sangue de Herois, fui ver o filme como se sendo algo novo e era o mesmo Sangue de Apache já conhecido.

    Em nenhuma das vezes que o vi eu imaginei que o Ford fazia uma comparação, com disfarces, de algo relacionado ao irresponsável e imprudente General Custer.
    Isso mesmo;jamais liguei nada do filme ao fato trágico que o maldito General submeteu seus soldados.

    O filme do Ford é um louvor ao western propriamente dito. Ninguém faz faroestes atingindo a forma real que o mesmo poderia ter tido sem ser sob a égide do grande cineasta.

    Tinha minhas diferenças com ele, pela forma um tanto desumana e superior com que tratava pessoas que trabalhavam com ele. No entanto, consegui separar as coisas.

    Cada pessoa é como é e o Ford era assim. O que não implica no elemento ser um grande cineasta e fazedor de faroestes, como ele mesmo dizia.

    Fort Apache é um grande western. O Fonda, mesmo com a empáfia dada na fita, dá sua nota como sempre o soube dar. O Duke, submisso das diretrizes do Fonda, caminha meio às escondidas no filme, até mesmo com o John Agar tendo mais presença.

    Mas no momento das batalhas vemos o Duke e seus auxiliares cumprindo muito bem suas missões, enquanto o Fonda sucumbia diante de sua empáfia e irresponsabilidade.

    Agora, depois de ler tudo a respeito do filme, capto que existe sim, pela parte do roteiro e criação do diretor, uma correlação bem direta com o papel do Fonda como uma sombra do audacioso General Custer.

    Ainda sigo amando mais na carreira do diretor O Homem que Matou o Facínora/62, o ponto culminante de sua carreira, assim como uma obra imortal, vejo-a assim.

    O que não tira de forma alguma o valor de sua trilogia 1948/1949/1950, e nem fica de lado seu classico de 1939, fita que lançou o Duke no estrelato, não podendo esquecer de forma alguma de evidenciar a magnitude de Depois do Vendaval/52, uma fita rara e muito bela, também ressaltada nesta edição.

    Bom trabalho, bela descrição para algo escrito 41 anos atrás, ou seja, em 1975.

    jurandir_lima@bol.com.br

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    1. Jurandir, FORTE APACHE estreou nos cinemas brasileiros com o nome de SANGUE DE HERÓIS. Posteriormente, teve o nome alterado para a tradução literal do título original quando de sua estreia na TV. Mas o relançamento em VHS/DVD/BR preservou o nome do lançamento: SANGUE DE HERÓIS. Sempre que trato de um filme, procuro referenciá-lo pelo nome com que foi conhecido primeiramente entre nós.

      Sim, o Tenente-Coronel interpretado por Fonda é um êmulo de Custer. Ford deixou isso claro. Neste ponto, foi fiel ao original no qual o roteirista se baseou para extrair o guião. De certo modo, Ford foi o primeiro diretor a questionar o mito de herói em torno da figura de Custer.

      Apesar de maneira como Ford tratou o Ben Johnson - logo Ford, que o descobriu e ofereceu ao até então astro de rodeio a primeira oportunidade no cinema -, desconheço as razões que deram origem ao mal estar. Sei que o Ford, quando implicava com alguém, era para valer. Não sei se tinha ou não razão. Lembro que ele e Wayne quase foram às vias de fato pelo fato de o ator ter ficado nos EUA durante a guerra enquanto tantos outros atores e diretores estavam se alistando e partindo para o front. Ford chamou Wayne várias vezes de "covarde" quando fizeram FOMOS OS SACRIFICADOS. Demoraram a fazer as pazes. Mesmo assim, apesar da dureza de Ford, foi ele que comprou uma área enorme em Hollywood e mandou erguer casas para atores que ficaram ao Deus dará com o advento do cinema sonoro. Era Ford que socorria os índios Navajos nos momentos de precisão, principalmente quando estavam cercados por tempestades de neve. Para impedir que morressem de fome em uma ocasião assim, alugou aviões do exército para lançar comida de paraquedas aos índios. Ford destinou parte da renda de O DELATOR ao IRA - Exército Republicano Irlandês - para a compra de ambulâncias. Ford contribuiu financeiramente com o republicanos espanhóis que lutavam contra Franco na Guerra Civil Espanhola. Então, diante de exemplos como esses, prefiro não dar muito importância aos ressentimentos que o diretor porventura tenha alimentando com Ben Johnson. Só posso lamentar. Ford era generoso, apesar de sua dureza, e com base em vários exemplos de dignidade que deu, pode-se dizer que era um sujeito maior que a vida. Tinha seus defeitos, mas... Quem não os tem?

      O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA é, para mim, o melhor filme de Ford, pelo menos nos dias pares. Pois nos dias ímpares eu prefiro RASTROS DE ÓDIO. Hehehehehehehe! Nos fins de semana, o meu preferido é DEPOIS DO VENDAVAL.

      Abraços.

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  3. Eugenio,

    Jamais conheci nada do Ford que citas em outros momentos de minha vida como cinéfilo.

    Soube de casos dele com diversos atores, inclusive com o Bond, que era seu amigão e por quem tanto sofreu com sua morte, além de outros.

    Só que o caso do Johnson foi o mais cruel de todos, porque ele fez o que lhe foi possivel para impedir que o ator voltasse a trabalhar em qualquer outro filme, ou seja, tentou extirpa-lo de interpretar.

    Do Ford também conhecia seu Historico como cinegrafista de Guerra, dos ferimentos que teve e dos ótimos documentários que fez.

    Até desta briga que citas com o Duke, taxando-o de covarde, nunca soube.

    Entre todas coisas, o que soma em tudo isto que dialogamos é a troca de informações e a saida do escuro para um melhor clareamento dos conhecimentos.

    Pode acreditar a grande validade dos informes que me passou. Vou também fazer o mesmo que fizeste para mim; VOU REPASSA-LOS para muitos com quem converso por aqui sobre cinema.

    jurandir_lima@bol.com.br

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    1. Jurandir, procure conhecer o livrinho "Gabriel Figueroa - o mestre do olhar", sobre a entrevista dada pelo grande diretor de fotografia mexicano - que trabalhou com Ford em DOMÍNIO DE BÁRBAROS, em muitos filmes do Buñuel realizados no México e também para Eisenstein em QUE VIVA MÉXICO! - ao crítico já falecido Leon Cakoff. Figueroa disseca para Cakoff muita coisa que não era conhecida da personalidade de John Ford, principalmente a sua extrema generosidade. Não nego que ele também tinha os seus momentos de extrema crueldade.. A isto até a Maureen O'Hara se refere no magnífico documentário sobre Ford que o Peter Bogdanovich dirigiu: DIRECTED BY JOHN FORD, de 1971. Lamento pelo acontecido com o Ben Johnson, mas não sei exatamente o que aconteceu para a coisa chegar a tanto. Pelo visto, fizeram as pazes muito mais tarde, pois o ator estava em CREPÚSCULO DE UMA RAÇA.

      Abraços.

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