domingo, 10 de janeiro de 2016

MANKIEWICZ DESNUDA OS CRUÉIS BASTIDORES DA FAMA E DO ESTRELISMO

A malvada (All about Eve, 1950), de Joseph L. Mankiewicz, é recordista na indicação aos prêmios Oscar. A narrativa elegante e sofisticada destila doses raramente vistas de veneno e cinismo na exposição dos bastidores do teatro e da força que o sustenta perante o grande público: o estrelismo de egos inflados e afetados. É o filme que retirou Bette Davis de um precoce ostracismo e lhe garantiu sobrevida durante os anos 50, período de radicais mudanças na estrutura hollywoodiana. Ela interpreta Margo Channing, atriz da Broadway acuada pela problemática idade na casa dos 40 anos. Receberá os golpes meticulosamente preparados pela jovem e inescrupulosa admiradora a quem acolheu, a carreirista Eve Harrington (Anne Baxter). É realização admirável; rara combinação de vulgaridade e sofisticação marcada por diálogos soberbos e realistas, interpretações acima do padrão e direção inspirada fincada na consistência. Cruel, Joseph L. Mankiewicz expõe os bastidores de um realidade feita de insegurança e alta rotatividade, na qual estrelas são efêmeros corpos de brilho intenso, mas prontas para o acintoso consumo de cronistas inescrupulosos e massas volúveis. Em meio a tudo isso abundam trapaças, ilusões, ressentimentos, jogos de sedução e a mais clamorosa amoralidade. Considerado o começo da década de 50, quando foi realizado, A malvada ainda é uma retrato devastador. Está para a Broadway da mesma forma que Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard), de Billy Wilder, realizado no mesmo ano, se apresenta para Hollywood. Entre tantos pontos altos ainda há o inusitado prazer de ver George Sanders brilhar como o crítico Addisson DeWitt, um canalha de primeira. A apreciação a seguir foi escrita em 1983.







A malvada
All about Eve

Direção:
Joseph L. Mankiewicz
Produção:
Darryl F. Zanuck
20th. Century-Fox
EUA — 1950
Elenco:
Bette Davis, George Sanders, Anne Baxter, Celeste Holm, Hugh Marlowe, Gary Merrill, Thelma Ritter, Gregory Rattoff, Marilyn Monroe, Barbara Bates, Walter Hampden, Randy Stuart, Craig Hill, Leland Harris, Barbara White, Eddie Fisher, William Pullen, Claude Stroud, Eugene Borden, Helen Mowery, Steve Geray e os não creditados Bess Flowers, Marion Pierce, Robert Whitney, Gertrude Astor, Frank Baker, Ralph Brooks, Jack Chefe, James Conaty, Jack Deery, Franklyn Farnum, Colin Kenny, Ethelreda Leopold, Carl M. Leviness, Thomas Martin, Mathew McCue, Harold Miller, Stanley Orr, 'Snub' Pollard, Cosmo Sardo, Larry Steers.



O diretor e roteirista Joseph L. Mankiewicz



A malvada é um dos melhores filmes produzidos na Hollywood do pós-guerra. De temática adulta, evita o ponto de vista cor-de-rosa típico do cinema estadunidense quando este se punha a divisar o mundo e as relações sociais. O que se vê e, principalmente, se ouve, é puro veneno. É obra ferina e cínica. Tornou-se, muito justamente, motivo de culto, ainda mais entre as rodas intelectualizadas de artistas e escritores. Até o momento é recordista de indicações ao Oscar. Foi finalista nas categorias de Melhor Atriz, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Fotografia em Preto e Branco, Melhor Cenografia (direção de arte e decoração), Melhor Som e Melhor Montagem. Recebeu as estatuetas por Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Figurino Para Filme em Preto e Branco, Melhor Som e Melhor Ator Coadjuvante (George Sanders).


Os eleitores da Academia foram generosos, principalmente nas duplas indicações a Melhor Atriz (Bette Davis e Anne Baxter) e Melhor Atriz Coadjuvante (Celeste Holm e Thelma Ritter). Nenhuma foi laureada. Mas no quesito das atuações femininas o ano de 1950 foi excepcional. É difícil apontar alguma favorita entre as concorrentes. Todas eram pesos-pesados; ofereceram interpretações extraordinárias. Bette Davis e Anne Baxter concorreram com Gloria Swanson (Crepúsculo dos deuses/Sunset Boulevard, de Billy Wilder), Eleanor Parker (À margem da vida/Caged, de John Cromwell), e a vitoriosa Judy Holliday (Nascida ontem/Born yesterday, de George Cukor). Já Thelma Ritter e Celeste Holm competiram com Nancy Olson (Crepúsculo dos deuses), Hope Emerson (À margem da vida), e a vitoriosa Josephine Hull (Meu amigo Harvey/Harvey, de Henry Koster). Holliday e Hull são resultados que confirmam a exceção à regra: num ano de sólidos desempenhos dramáticos — normalmente os preferidos dos eleitores da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood —, as premiadas ofereceram interpretações cômicas.


A dupla indicação diminuiu consideravelmente as chances de Bette Davis conquistar o terceiro Oscar. Os anteriores se devem a Perigosa (Dangerous, 1935), de Alfred E. Green, e Jezebel (Jezebel, 1938), de William Wyler. Por sua vez Anne Baxter era apontada como vitoriosa certa na disputa a Melhor Atriz Coadjuvante. Mas já havia recebido o Oscar da categoria por O fio da navalha (The razor's edge, 1946), de Edmund Goulding. Almejava sensações novas. Convenceu o big boss da 20th. Century-Fox, Darryl F. Zanuck, a lutar por sua indicação a Melhor Atriz. Bette Davis, de fato a principal, sofreu concorrência no próprio front. Prejudicaram-se mutuamente, justo quando tiveram seus desempenhos culminantes, conforme avaliação geral.


Foto promocional do elenco principal: a partir da esquerda, Gary Merrill, Bette Davis, George Sanders, Anne Baxter, Hugh Marlowe e Celeste Holm

  
Mas se perdeu a chance de novamente sentir o peso da estatueta, Davis foi agraciada pelo Círculo de Críticos de Nova York e com a Palma de Ouro no Festival de Cannes. São láureas mais prestigiadas que o Oscar, embora de popularidade menor. Porém, naquele momento ela necessitava de apelo junto ao público. A lembrança de seu nome declinava na preferência das plateias. Ao mesmo tempo diminuíam as chances de conseguir papéis de maior brilho. A malvada a retirou do limbo e lhe garantiu sobrevida ao longo dos anos 50. O mergulho definitivo no ostracismo parecia certo no começo dos anos sessenta. Nesta ocasião Davis chegou ao cúmulo de pedir emprego nos classificados dos jornais. Foi atendida por Robert Aldrich, que a escalou para contracenar com a arquirrival Joan Crawford no vigoroso e claustrofóbico O que terá acontecido a Baby Jane? (What ever happened to Baby Jane?, 1962), nova indicação ao Oscar de Melhor Atriz.


Em agradecimento sincero ao diretor Joseph L. Mankiewicz, Bette Davis afirmou: "Você me fez ressurgir dos mortos". Seu nome, em princípio, sequer estava cogitado. A produção preferia Claudette Colbert e Ingrid Bergman. Uma conspiração do destino imobilizou a primeira devido a um ferimento nas costas. A segunda se afastou temporariamente do convívio hollywoodiano ao rumar para os braços de Roberto Rossellini, na Itália. Davis, escolha de última hora, praticamente implorou pelo papel. Brindou as plateias com interpretação tão marcante a ponto de ser impossível imaginar outra que não ela na pele de Margo Channing, diva da Broadway na problemática casa dos quarenta anos.


Joseph L. Mankiewicz, também roteirista e produtor, é dos mais intelectualizados diretores de Hollywood. Diferente dos pioneiros e grandes mestres do cinema estadunidense — John Ford, Howard Hawks, Alan Dwan, Raoul Walsh etc., exemplos bem acabados do cruzamento entre o artista, o aventureiro e o experimentador intuitivo —, é racional, meticuloso, frio e calculista. O senso de humor é ferino, carregado de cinismo e ironia. Tem rara capacidade de observação e crítica. Estreou na direção em 1946, com O solar dos Dragonwyck (Dragonwyck), ao substituir o enfermo Ernst Lubitsch. Foi premiado com quatro oscars — como roteirista e diretor —, por Quem é o infiel? (A letter to three wives, 1949) e A malvada. De gosto refinado, domina plenamente a narrativa e a direção de atores. Acredita que o cinema não se resume apenas às imagens. A palavra é peça fundamental. Suas obras possuem diálogos extensos, ágeis, bem elaborados e maleáveis. Podem transitar facilmente do vulgar ao sofisticado, quando não são as duas coisas ao mesmo tempo. Apesar da elegância, não se abala frente à necessidade de descer o nível das falas para introduzir expressões do mais mundano calão. Está afinado ao realismo da comunicação. A malvada é feliz síntese dessas características. A narrativa lapidada, irônica e inteligente se casa perfeitamente com o tom ordinário dos xingamentos e expressões de rancor — em acordo com os limites permitidos pelo moralista código de produção em vigor no cinema estadunidense do período. Seus filmes, personalíssimos, revelam de imediato o diretor. Por isso é possível falar do toque de Mankiewicz, da mesma maneira como há toques de Wilder, de Lubitsch e os adjetivos fordiano, felliniano, hustoniano, hawksiano etc.


Eve Harrington (Anne Baxter) e Margo Channing (Bette Davis)

  
Em A malvada o olhar afiado e mordaz do cineasta é lançado sobre os bastidores do teatro. Observa aspectos que o espectador normalmente não vê. Levanta a cortina do star system. Expõe egos feridos e ilustrados. Ilumina o carreirismo, as trapaças, ilusões, mágoas, falsidades, os jogos de sedução, a amoralidade... Faz um filme arrasador, que está para a Broadway como Crepúsculo dos deuses está para Hollywood. Estas realizações desmistificadoras ganharão, logo mais, as valorosas companhias de A condessa descalça (The barefoot contessa, 1954), abordagem do estrelismo no cinema, também de Mankiewicz, e Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1952), de Vincente Minnelli, sobre a mentalidade oportunista e mercantilista dos produtores hollywoodianos.


Apesar de se consagrar na interpretação de tipos pérfidos, Bette Davis não defende a personagem do título em português, mas Anne Baxter. Esta vive Eve Harrington, carreirista para quem os fins justificam todos os meios. Termos como escrúpulo e ética não pertencem ao seu dicionário. Ascendeu ao posto de atriz premiada lançando mão de mentiras e golpes baixos. Se a necessidade obrigasse, usava sem pudor os amigos para pavimentar a trilha rumo ao sucesso. Margo Channing — de quem se acercou como admiradora, amiga, secretária, irmã e confidente — é a principal vítima dessa escalada ambiciosa. Mas Eve também cavalgou Bill Sampson (Merrill), diretor de teatro e amante de Margo; a melhor amiga desta, Karen (Holm), e seu marido, o autor teatral Lloyd Richards (Marlowe); o produtor Max Fabian (Rattoff); além do crítico Addisson DeWitt (Sanders).


Em estágio adiantado da narrativa, quando da recepção oferecida a Sampson, a emocionalmente insegura Margo Channing parece prever o rumo dos eventos. Deixa escapar para os convidados: "Apertem os cintos; a noite vai ser agitada". Não comunica apenas um fragmento de diálogo ou fração do roteiro. Também é alerta aos espectadores, principalmente aos incautos e desatentos que, àquela altura, ainda não haviam provado da taça de veneno servida por Mankiewicz. Após essa deixa, a narrativa e Eve mostram claramente a que vieram.


Eve Harrington (Anne Baxter), Margo Channing (Bette Davis), Miss Casswell (Marilyn Monroe) e Addison DeWitt (George Sanders)


A história de A malvada corre em flashback. Começa no prelúdio do momento culminante da cerimônia de entrega do Troféu Sarah Siddon para Realização Extraordinária aos Melhores do Teatro. O decano dos atores (Hampden) faz a preleção de praxe. Mas o que se ouve é a voz algo cansada, cínica, arrogante e em off de Addisson DeWitt, ali presente. Apresenta-se como crítico, comentarista e, conforme o próprio juízo, personalidade essencial ao teatro.


DeWitt informa: o Troféu Sarah Siddon goza de reputação jamais igualada por similares como o Oscar e Pullitzer — láureas menores, sustenta. Para a Sociedade Sarah Siddon o ator é tudo. Os demais elementos da encenação — diretor e autor inclusive — apenas auxiliam o intérprete a brilhar, tanto que são agraciados com prêmios considerados de pouca relevância, afirma. Nessa introdução, DeWitt prolonga a consciência crítica de Mankiewicz. Apresenta também os personagens essenciais à trama. A seguir, Karen Richards abre seus pensamentos para o espectador.


Quase todo o filme é ordenado como prolongamento das lembranças de Karen. Foi a primeira a conhecer Eve Harrington — a mais jovem atriz a receber a consagração máxima da Sociedade Sarah Siddon. A premiada, não faz muito tempo, era apenas uma pobre apaixonada pelo teatro. Esforçava-se para não perder as apresentações da diva Margo Channing. Economizava nos parcos vencimentos para adquirir os lugares mais baratos da plateia. A peça terminava, o público ia embora, mas não Eve. Permanecia nas proximidades, aguardando chance para se aproximar de Margo. Karen a percebia, noite após noite, no interminável plantão. Admirada com tanta persistência, resolveu apresentá-la ao objeto do desejo.


Eve Harrington (Anne Baxter), a mais jovem atriz premiada com o cobiçado Troféu Sarah Siddon por Realização Extraordinária em Teatro


É significativo: conduzida por Karen, Eve é introduzida no teatro pela porta dos fundos, justamente a mais próxima do palco. Mal consegue se conter. Instintivamente, dirige-se ao tablado que parece hipnotizá-la em sua perspectiva elevada. A seguir Mankiewicz desdenha das manhas e do ego inflado do artista. Consultada por Karen a respeito da jovem que deseja vê-la, Margo faz pouco caso. Mas é toda solícita quando Eve adentra o camarim e se declara admiradora incondicional. Comprova saber tudo sobre o ídolo e as peças em que atuou. Margo e Lloyd Richards ficam fascinados com tanta dedicação.


A estrela e o autor, isolados no mundo de faz de conta das encenações, parecem ter, pela primeira vez, contato com uma representante dos mortais comuns. Este comportamento, mais à frente, merecerá comentário do arguto DeWitt: "Atores e atrizes são pessoas normais, desde que fique claro sua total falta de semelhança com seres humanos normais". Bill Sampson chega. Resiste à visita, mas é logo envolvido. Imune permanece apenas a camareira Birdie Coonan (Ritter). Talvez por ser, como a intrusa, pessoa comum, apesar da peça que lhe pregou o destino. Foi grande atriz e, por 11 anos, a número 1 na preferência do público. Agora auxilia a diva do momento. Estrelas são luzes intensas, mas efêmeras, comenta Mankiewicz. Assemelham-se, na devida proporção, aos toureiros de Sangue e areia (Blood and sand, 1941), de Rouben Mamoulian. São consumidas impiedosamente, num mercado extremamente seletivo, onde uma devora o brilho da outra. O tempo de Birdie passou. Margo está nos estertores do seu. É a bola da vez e tem consciência disso. Se pudesse perceber os desejos ocultos sob a luz dos olhos de Eve...


A perspicaz e observadora Birdie Coonan (Thelma Ritter)

  
Ao falar de si, Eve Harrington conta triste e pouco luminosa história de vida. Filha de fazendeiros pobres, viúva de aviador morto durante a guerra, lutou para sobreviver desde cedo. Próximo ao final, DeWitt revelará a verdade sobre esse passado de fato humilde, mas habilmente disfarçado por uma certa Gertrude. Eve é uma oportunista. Pavimentou a trajetória à base de sexo e mentiras. Sempre quis ser atriz. Mas no momento em que a todos cativa, com ares tão desprotegidos e inocentes, cabe-lhe o caracterização dada por Margo: "Uma ingênua tonta em nossa selva de cimento".


Praticamente adotada pela diva, Eve passa a gozar de sua total intimidade. Conhece todos os meandros da vida privada da atriz. Seguiu ao pé da letra o pedido para cuidar dela, feito por Bill Sampson. Concorda integralmente com o personagem do diretor, na significativa sequência da conversa na escadaria, quando ele diz: "90% do teatro é trabalho duro, dedicação, suor, habilidade. Ser bom ator ou atriz significa uma construção do desejo e da ambição. Não pode ser uma pessoa comum. Há que dar tudo para um trabalho que vale tão pouco". Porém, Eve emenda, com voz extasiada e olhos esperançosos: "...Aplausos como ondas de luz envolvendo o ator no abraço. Só isso já vale qualquer coisa". Dará tudo por isso. Ambição não lhe falta. Está atenta a todas as movimentações de Margo — para desespero de Birdie, cada vez menos sem espaço. Agenda compromissos, copia gestos e roupas, prefere as mesmas bebidas. Torna-se sombra onipresente que a tudo ofusca. Até que, dominada pela insegurança quanto ao futuro, Margo a dispensa. Porém, arranja-lhe emprego no escritório de Max Fabian.


Bill Sampson (Gary Merrill), Eve Harrington (Anne Baxter) e Margo Channing (Bette Davis)

  
Antes da mudança, Eve consegue de Karen a indicação ao posto de atriz substituta. No teste, derrota Miss Casswell (Monroe em início de carreira), pupila de DeWitt formada pela Escola de Arte Dramática Copacabana, aspirante tão medíocre que nem no cinema conseguiu trabalho. Só lhe resta, por recomendação do crítico, a televisão. Novamente o personagem de Sanders funciona como perversa consciência crítica ao desferir frontal e explícito ataque às mídias de massa.


Margo, informada da vitória de Eve, ouve do ferino DeWitt que a novata será excelente atriz, tão boa como a titular. Surpreendida, sente o baque. O problema não é Eve ser tão boa, mas ser muito mais nova e fisicamente ajustada às personagens joviais que a quarentona costuma representar. A surpresa gera insegurança, a seguir raiva descontada em Bill, Lloyd e Fabian, avalistas do teste de Eve. Nesta sequência a atuação de Davis é explosiva. Transforma-se em fera acuada no ato desesperado e instintivo de defesa. Desmancha-se em emoções à flor da pele. Todo o cenário parece vibrar diante da performance de uma atriz no auge do talento.


Paranoica, Margo teme perder o amor de Bill. Será trocada por Eve, acredita. O descontrole provoca o afastamento do amante. Do outro lado, Lloyd, sensivelmente irritado pela mania de grandeza da diva, pretende lhe aplicar uma lição. Karen concorda. Ambos provocam a impossibilidade de Margo chegar a tempo para uma apresentação. É a grande chance de Eve. A substituta é elogiado em todos os jornais, por DeWitt principalmente. Este lhe destaca a juventude e o frescor enquanto alude maldosamente à idade de Margo.


Margo Channing (Bette Davis), Birdie Coonan (Thelma Ritter) e Karen Richards (Celeste Holm)


Daí em diante Eve se torna, sem nenhum meio-tom, a personagem do título em português. Não cobiça apenas o posto de Margo, mas o amante e os amigos. Tenta seduzir Bill Sampson, mas é rejeitada. Planeja afastar Lloyd de Karen, a amiga fiel que lhe abriu todas as portas. Chantageia-a em sequência primorosa. No banheiro de um restaurante, praticamente se desnuda como aplicada princesa atenta às lições de Maquiavel. Obriga Karen a lhe conseguir o papel principal na próxima peça de Lloyd, ou revelará a tramoia por trás da perda da fatal apresentação por Margot. Lívida, a personagem de Celeste Holm parece acuada pela serpente. É o grande momento de Anne Baxter. Ela, muito injustamente, nunca mereceu o devido destaque na constelação das mais talentosas de Hollywood.


DeWitt percebe as intenções de Eve e passa a vigiá-la. Levanta o véu de seu passado nebuloso. De posse de informações comprometedoras, usa da chantagem para controlá-la por completo. Nessa operação o crítico também se desmascara. Exposto o seu verdadeiro caráter, deixa de ser o alter ego de Mankiewicz e assume a identidade do cronista canalha, carente e ganancioso, ávido por uma rapinagem no meio teatral. Confessa a Eve que ambos são muito parecidos. Possuem em comum o "Desprezo pela humanidade, incapacidade de amar e ser amados, ambição insaciável  e talento. Merecemos um ao outro". Como se vê, a imprensa também sai conspurcada em A malvada. George Sanders prova, mais uma vez, o talento que o consagrou na pele de personagens elegantes, inteligentes, cínicos, irônicos, perversos e amorais.


Karen Richards (Celeste Holm), Margo Channing (Bette Davis) e Lloyd Richards (Hugh Marlowe)

  
É tarde quando Margo se arrepende do comportamento ególatra, pontuado de ataques de estrelismo, inseguranças e desequilíbrios que a caracterizaram. Uma profissional invejosa e calculista, tão fria quanto luminosa, tomou-lhe o lugar e conquistou o prêmio que ela, veterana, provavelmente jamais conseguirá. Qual será o seu futuro? Mankiewicz não mostra. Em compensação há um gesto revelador de DeWitt: o crítico a toma por camareira ao lhe confiar a guarda do casaco da medíocre Miss Casswell.


Mas essa história de carreirismo não termina. A noite da consagração de Eve antecipa uma queda em marcha. Shirley Phoebe (Bates), jovem ingênua e de boa vontade, acerca-se dela, da mesma forma como aconteceu com Margo. Sabedor da dinâmica dos processos, o experiente DeWitt questiona a nova aspirante diante do testemunho mudo do Troféu Sarah Siddon: "Gostaria de ganhar um prêmio assim? É só perguntar à senhorita Harrington como o conseguiu. Ela poderá lhe ensinar tudo".


A cena final capta a solitária Shirley vestida com as roupas de gala da consagrada estrela. Segura o Troféu Sarah Siddon e faz reverências diante do espelho, como se fosse a própria premiada. Repete, com outros movimentos, a cena em que Eve, ainda nas boas graças de Margo, trajava o figurino da diva e experimentava, no palco vazio, a sensação dos supostos aplausos de uma plateia imaginária. São momentos antológicos. Com eles Mankiewicz oferece sua versão para o nascimento e morte das estrelas, inclusive para o mal que as acomete.


O final com Barbara Bates no papel de Shirley Phoebe


Bette Davis e Gary Merrill se apaixonaram durante as filmagens e contraíram núpcias pouco depois. As características físicas de seus personagens são o único senão de A malvada. Nem fazendo muito esforço o espectador consegue acreditar que Bill Sampson tem apenas 32 anos e Margot tão somente 40.






Direção de fotografia (preto e branco): Milton R. Krasner. Música: Alfred Newman; Liebestraum, de Franz Liszt. Orquestração: Edward B. Powell. Decoração: Thomas Little, Walter M. Scott. Direção de arte: Lyle R. Wheeler, George W. Davies. Direção de guarda-roupa: Charles LeMaire. Costumes de Bette Davis: Edith Head. Montagem: Barbara McLean. Roteiro: Joseph L. Mankiewicz, baseado em sua ideia original e na história The wisdon of Eve, de Mary Orr (não creditada). Diálogos: Joseph L. Mankiewicz. Maquiagem: Ben Nye, Frank Prehoda (não creditada), Gene Roemer (não creditada). Efeitos fotográficos especiais: Fred Sersen. Som: W. D. Flick, Roger Heman Sr. Assistente de direção: Gaston Glass (não creditado). Maquiagem de corpo: Bunny Gardel (não creditada). Penteados (não creditados): Kay Reed, Gladys Witten. Gerente de produção: Max Golden (não creditado). Gerente de unidade de produção: Robert R. Snody (não creditado). Segundos assistentes de direção (não creditados): Gerald Braun, Hal Klein. Contrarregra: Fred R. Simpson (não creditado). Operador de boom: Paul Gilbert (não creditado). Gravação de som: Thomas T. Moulton (não creditado). Cabos: Harry Roberts (não creditado). Efeitos especiais: Jess Wolf (não creditado). Eletricista-chefe: Vaughn Ashen (não creditado). Assistentes de câmera (não creditados): Al Lebowitz, Bud Brooks, Charles Edler, James E. Lavin, Joe Robinson. Eletricista: Jack Dimmack (não creditado). Operador de câmera: Paul Lockwood (não creditado). Fotografia de cena: Ray Nolan (não creditado). Grua (não creditada): Jack Richter, Rex Turnmire. Guarda-roupa (não creditado): Sam Benson, Josephine Brown, Ann Landers, Merle Williams. Joalheria: Joan Joseff (não creditada). Aprendiz de montagem: Lyman Hallowell (não creditada). Direção musical: Alfred Newman (não creditado). Pianistas (não creditados): Edward Rebner, Urban Thielmann. Apresentação: Darryl F. Zanuck. Gerente de locações: W. F. Fitzgerald (não creditado). Publicidade: Grady Johnson (não creditado). Continuidade: Weslie Jones (não creditado). Supervisão de diálogos: Florence O'Neill (não creditado). Jurisdição das filmagens: International Alliance of Theatrical Stage Employees (IATSE). Sistema de mixagem de som: Mono pela Western Electric Recording. Tempo de exibição: 138 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1983)

7 comentários:

  1. Muchas gracias por su apoyo y palabras, David.

    Saludos y abrazos.

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  2. Eu amo este filme, tanto Bette Davis (a quem eu admiro muito) e Anne Baxter são soberbas. Eu acho que ofuscar os protagonistas masculinos. Desculpe se o comentário é algo errado, é que eu tenho que usar o Google Tradutor para fazer.
    Eu amei o seu post.
    Um beijo

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    1. Concordo com você, Chari BR7. Bette e Anne estão soberbas. Ofuscam, mesmo, os personagens masculinos, com exceção de George Sanders, que está magnífico. O comentário não saiu errado. Está tudo certo. Pode escrever em espanhol que consigo entender.

      Beijos.

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  3. Eugenio,

    Colocação mais que adequada: "uma pelicula de narrativa elegante e sofisticada"

    Vi esta fita na TV e jamais pude adequa-la ao meus sentidos, isto com 100% de qualidade, o que assisti por diversas vezes. Lutava, mas não conseguia acompanhar os letreiros, o que me impedia de capta-la melhor ou por inteiro.

    Percebi que se tratava de um classíco e, ainda se dirigido por Mankiewicz, o que mais dizer se, ainda no seu elenco haviam nomes como o da Davis, do Sanders, do Marlowe, do Merril, da Baxter e da Holm? O que poderia dar errado ali? NADA.

    Porém, minha falta de poder em acompanhar as legendas prejudicava sempre que o tentava rever. Ate que ele passou dublado e então pude avaliar que eu tinha toda razão em saber que naquele conteudo havia muito de importante.

    Um grande filme deste Mestre do Drama. Ele guia a fita com mãos santas e maestras, não deixando a fita escorregar em momento qualquer.

    Desconhecia o lado das dificuldades que a Davis passara naquela década e que esta pelicula a soergueu.

    Assisti ha poucos dias uma fita mostrando a vida e o lado teatral voltado ao ponto de vista dos bastidores. Foi Amar é Sofrer/54, do Seaton. Mas já havia visto A Malvada. E este dentro do mesmo ângulo das intrigas e situações de bastidores do teatro.

    Não vou escolher qualquer dos dois, pois são duas grandes fitas. Porém, A Malvada tem um pouco de brilho a mais, assim como muito mais intrigas e tudo o mais. Porém, são duas magníficas fitas.

    Estou aqui recordando deste formidável diretor que conseguiu nos dar ainda o Sensacional Julius Cesar/1953, o melhor filme que vi dentro do tema do Imperador.
    Mas não posso também deixar de frisar sobre um faroeste que vi, de alto nível, onde o Douglas e o Fonda abusam de suas qualidades. E o diretor mostra que também sabe se sair otimamente em outros gêneros. O filme foi Ninho de Cobras/70. Ótimo western.

    jurandir_lima@bol.com.br

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    1. Jurandir,

      NINHO DE COBRAS só vi uma vez, lamentavelmente. Procuro para ver novamente e não o encontro. Entrou para a categoria dos filmes raros. Também gosto muito de AMAR É SOFRER. Há poucos dias estava revendo o texto que escrevi para ele, ainda não publicado aqui no blog.

      Quanto ao Mankiewicz, gosto, em geral, de tudo o que fez. A exceção é CLEÓPATRA. Detesto esse épico, em absoluto. Só serviu para arruinar a carreira de Rouben Mamoulian, que iria dirigi-lo mas terminou afastado. Terminou nas mãos de Mankiewicz, que quase foi à loucura por causa do estrelismo de Taylor-Burton e das imposição de Zanuck. É o épico mais morto que já vi.

      Mas A MALVADA tem lugar reservado no meu panteão dos grandes títulos do cinema. É "o cinema da crueldade" em sua melhor forma. Pude vê-lo no cinema. Sinto-me privilegiado por isso. Infelizmente, é cada vez mais raro ver esses filmes no cinema, que é o lugar ao qual pertencem.

      Abraços, Jurandir.

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  4. Eugenio,

    Já li no blog de um outro colega nosso que a intromissão e as duras imposições do Zanuck era um praxe seu. De uma forma mais geral ele não deixava de fazer o seu papel de produtor, mesmo que isto causasse milhões de prejuizos aos seus próprio cofres, assim como dilacerar uma obra tão importante como Cleópatra poderia vir a ser.

    Desconhecia isso do Mamoulian, pois não tinha conhecimento que ainda em 1963 estava na ativa, já que era um diretor de grande atividade nas décadas de 1930 e 1940, desconhecendo até que em 1950 estivesse ativo.

    Ótimo saber, muito bom. Quanto mais informes para o acerto pessoal, melhor.

    jurandir_lima@bol.com.br

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    1. Otto Preminger conta bem como era o método do Zanuck na produção dos filmes da Fox. Se puder, leia o livro de entrevistas do Peter Bogdanovich: "Afinal, quem faz os filmes?", Jurandir.

      Abraços

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