A malvada (All about Eve, 1950), de Joseph L.
Mankiewicz, é recordista na indicação aos prêmios Oscar. A narrativa elegante e
sofisticada destila doses raramente vistas de veneno e cinismo na exposição dos
bastidores do teatro e da força que o sustenta perante o grande público: o
estrelismo de egos inflados e afetados. É o filme que retirou Bette Davis de um
precoce ostracismo e lhe garantiu sobrevida durante os anos 50, período de
radicais mudanças na estrutura hollywoodiana. Ela interpreta Margo Channing,
atriz da Broadway acuada pela problemática idade na casa dos 40 anos. Receberá
os golpes meticulosamente preparados pela jovem e inescrupulosa admiradora a
quem acolheu, a carreirista Eve Harrington (Anne Baxter). É realização admirável;
rara combinação de vulgaridade e sofisticação marcada por diálogos soberbos e
realistas, interpretações acima do padrão e direção inspirada fincada na
consistência. Cruel, Joseph L. Mankiewicz expõe os bastidores de um realidade
feita de insegurança e alta rotatividade, na qual estrelas são efêmeros corpos
de brilho intenso, mas prontas para o acintoso consumo de cronistas
inescrupulosos e massas volúveis. Em meio a tudo isso abundam trapaças,
ilusões, ressentimentos, jogos de sedução e a mais clamorosa amoralidade.
Considerado o começo da década de 50, quando foi realizado, A
malvada ainda é uma retrato devastador. Está para a Broadway da mesma
forma que Crepúsculo dos deuses (Sunset Boulevard), de Billy Wilder, realizado no mesmo ano, se
apresenta para Hollywood. Entre tantos pontos altos ainda há o inusitado prazer
de ver George Sanders brilhar como o crítico Addisson DeWitt, um canalha de
primeira. A apreciação a seguir foi escrita em 1983.
A malvada
All about Eve
Direção:
Joseph L. Mankiewicz
Produção:
Darryl F. Zanuck
20th. Century-Fox
EUA — 1950
Elenco:
Bette
Davis, George Sanders, Anne Baxter, Celeste Holm, Hugh Marlowe, Gary Merrill,
Thelma Ritter, Gregory Rattoff, Marilyn Monroe, Barbara Bates, Walter Hampden,
Randy Stuart, Craig Hill, Leland Harris, Barbara White, Eddie Fisher, William
Pullen, Claude Stroud, Eugene Borden, Helen Mowery, Steve Geray e os não
creditados Bess Flowers, Marion Pierce, Robert Whitney, Gertrude Astor, Frank
Baker, Ralph Brooks, Jack Chefe, James Conaty, Jack Deery, Franklyn Farnum,
Colin Kenny, Ethelreda Leopold, Carl M. Leviness, Thomas Martin, Mathew McCue,
Harold Miller, Stanley Orr, 'Snub' Pollard, Cosmo Sardo, Larry Steers.
O diretor e roteirista Joseph L. Mankiewicz |
A malvada é um dos
melhores filmes produzidos na Hollywood do pós-guerra. De temática adulta,
evita o ponto de vista cor-de-rosa típico do cinema estadunidense quando este
se punha a divisar o mundo e as relações sociais. O que se vê e, principalmente,
se ouve, é puro veneno. É obra ferina e cínica. Tornou-se, muito justamente,
motivo de culto, ainda mais entre as rodas intelectualizadas de artistas e
escritores. Até o momento é recordista de indicações ao Oscar. Foi finalista
nas categorias de Melhor Atriz, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Fotografia em
Preto e Branco, Melhor Cenografia (direção de arte e decoração), Melhor Som e Melhor
Montagem. Recebeu as estatuetas por Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Roteiro
Adaptado, Melhor Figurino Para Filme em Preto e Branco, Melhor Som e Melhor Ator
Coadjuvante (George Sanders).
Os eleitores da
Academia foram generosos, principalmente nas duplas indicações a Melhor Atriz
(Bette Davis e Anne Baxter) e Melhor Atriz Coadjuvante (Celeste Holm e Thelma
Ritter). Nenhuma foi laureada. Mas no quesito das atuações femininas o ano de
1950 foi excepcional. É difícil apontar alguma favorita entre as concorrentes.
Todas eram pesos-pesados; ofereceram interpretações extraordinárias. Bette
Davis e Anne Baxter concorreram com Gloria Swanson (Crepúsculo dos deuses/Sunset
Boulevard, de Billy Wilder), Eleanor Parker (À margem da vida/Caged,
de John Cromwell), e a vitoriosa Judy Holliday (Nascida ontem/Born
yesterday, de George Cukor). Já Thelma Ritter e Celeste Holm competiram
com Nancy Olson (Crepúsculo dos deuses), Hope Emerson (À margem da vida), e a
vitoriosa Josephine Hull (Meu amigo Harvey/Harvey,
de Henry Koster). Holliday e Hull são resultados que confirmam a exceção à
regra: num ano de sólidos desempenhos dramáticos — normalmente os preferidos
dos eleitores da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood —, as
premiadas ofereceram interpretações cômicas.
A dupla indicação
diminuiu consideravelmente as chances de Bette Davis conquistar o terceiro Oscar.
Os anteriores se devem a Perigosa (Dangerous, 1935), de
Alfred E. Green, e Jezebel (Jezebel, 1938), de William Wyler.
Por sua vez Anne Baxter era apontada como vitoriosa certa na disputa a Melhor Atriz
Coadjuvante. Mas já havia recebido o Oscar da categoria por O fio
da navalha (The razor's edge, 1946), de Edmund Goulding. Almejava sensações
novas. Convenceu o big boss da 20th.
Century-Fox, Darryl F. Zanuck, a lutar por sua indicação a Melhor Atriz. Bette
Davis, de fato a principal, sofreu concorrência no próprio front. Prejudicaram-se mutuamente, justo quando tiveram seus desempenhos
culminantes, conforme avaliação geral.
Foto promocional do elenco principal: a partir da esquerda, Gary Merrill, Bette Davis, George Sanders, Anne Baxter, Hugh Marlowe e Celeste Holm |
Mas se perdeu a
chance de novamente sentir o peso da estatueta, Davis foi agraciada pelo Círculo
de Críticos de Nova York e com a Palma de Ouro no Festival de Cannes. São
láureas mais prestigiadas que o Oscar, embora de popularidade menor. Porém, naquele
momento ela necessitava de apelo junto ao público. A lembrança de seu nome
declinava na preferência das plateias. Ao mesmo tempo diminuíam as chances de
conseguir papéis de maior brilho. A malvada a retirou do limbo e lhe garantiu
sobrevida ao longo dos anos 50. O mergulho definitivo no ostracismo parecia certo
no começo dos anos sessenta. Nesta ocasião Davis chegou ao cúmulo de pedir emprego
nos classificados dos jornais. Foi atendida por Robert Aldrich, que a escalou para
contracenar com a arquirrival Joan Crawford no vigoroso e claustrofóbico O que
terá acontecido a Baby Jane? (What
ever happened to Baby Jane?, 1962), nova indicação ao Oscar de Melhor
Atriz.
Em agradecimento
sincero ao diretor Joseph L. Mankiewicz, Bette Davis afirmou: "Você me fez
ressurgir dos mortos". Seu nome, em princípio, sequer estava cogitado. A produção
preferia Claudette Colbert e Ingrid Bergman. Uma conspiração do destino
imobilizou a primeira devido a um ferimento nas costas. A segunda se afastou
temporariamente do convívio hollywoodiano ao rumar para os braços de Roberto
Rossellini, na Itália. Davis, escolha de última hora, praticamente implorou
pelo papel. Brindou as plateias com interpretação tão marcante a ponto de ser
impossível imaginar outra que não ela na pele de Margo Channing, diva da
Broadway na problemática casa dos quarenta anos.
Joseph L.
Mankiewicz, também roteirista e produtor, é dos mais intelectualizados
diretores de Hollywood. Diferente dos pioneiros e grandes mestres do cinema estadunidense
— John Ford, Howard Hawks, Alan Dwan, Raoul Walsh etc., exemplos bem acabados do
cruzamento entre o artista, o aventureiro e o experimentador intuitivo —, é
racional, meticuloso, frio e calculista. O senso de humor é ferino, carregado
de cinismo e ironia. Tem rara capacidade de observação e crítica. Estreou na
direção em 1946, com O solar dos Dragonwyck (Dragonwyck),
ao substituir o enfermo Ernst Lubitsch. Foi premiado com quatro oscars — como
roteirista e diretor —, por Quem é o infiel? (A
letter to three wives, 1949) e A malvada. De gosto
refinado, domina plenamente a narrativa e a direção de atores. Acredita que o
cinema não se resume apenas às imagens. A palavra é peça fundamental. Suas
obras possuem diálogos extensos, ágeis, bem elaborados e maleáveis. Podem
transitar facilmente do vulgar ao sofisticado, quando não são as duas coisas ao
mesmo tempo. Apesar da elegância, não se abala frente à necessidade de descer o
nível das falas para introduzir expressões do mais mundano calão. Está afinado
ao realismo da comunicação. A malvada é feliz síntese dessas características.
A narrativa lapidada, irônica e inteligente se casa perfeitamente com o tom ordinário
dos xingamentos e expressões de rancor — em acordo com os limites permitidos
pelo moralista código de produção em vigor no cinema estadunidense do período. Seus
filmes, personalíssimos, revelam de imediato o diretor. Por isso é possível
falar do toque de Mankiewicz, da mesma maneira como há toques de Wilder, de
Lubitsch e os adjetivos fordiano, felliniano, hustoniano, hawksiano etc.
Eve Harrington (Anne Baxter) e Margo Channing (Bette Davis) |
Em A
malvada o olhar afiado e mordaz do cineasta é lançado sobre os
bastidores do teatro. Observa aspectos que o espectador normalmente não vê.
Levanta a cortina do star system.
Expõe egos feridos e ilustrados. Ilumina o carreirismo, as trapaças, ilusões,
mágoas, falsidades, os jogos de sedução, a amoralidade... Faz um filme
arrasador, que está para a Broadway como Crepúsculo dos deuses está para
Hollywood. Estas realizações desmistificadoras ganharão, logo mais, as
valorosas companhias de A condessa descalça (The
barefoot contessa, 1954), abordagem do estrelismo no cinema, também de Mankiewicz,
e Assim
estava escrito (The bad and the beautiful, 1952), de
Vincente Minnelli, sobre a mentalidade oportunista e mercantilista dos
produtores hollywoodianos.
Apesar de se
consagrar na interpretação de tipos pérfidos, Bette Davis não defende a
personagem do título em português, mas Anne Baxter. Esta vive Eve Harrington, carreirista
para quem os fins justificam todos os meios. Termos como escrúpulo e ética não pertencem
ao seu dicionário. Ascendeu ao posto de atriz premiada lançando mão de mentiras
e golpes baixos. Se a necessidade obrigasse, usava sem pudor os amigos para
pavimentar a trilha rumo ao sucesso. Margo Channing — de quem se acercou como
admiradora, amiga, secretária, irmã e confidente — é a principal vítima dessa
escalada ambiciosa. Mas Eve também cavalgou Bill Sampson (Merrill), diretor de
teatro e amante de Margo; a melhor amiga desta, Karen (Holm), e seu marido, o
autor teatral Lloyd Richards (Marlowe); o produtor Max Fabian (Rattoff); além
do crítico Addisson DeWitt (Sanders).
Em estágio
adiantado da narrativa, quando da recepção oferecida a Sampson, a
emocionalmente insegura Margo Channing parece prever o rumo dos eventos. Deixa
escapar para os convidados: "Apertem os cintos; a noite vai ser
agitada". Não comunica apenas um fragmento de diálogo ou fração do roteiro.
Também é alerta aos espectadores, principalmente aos incautos e desatentos que,
àquela altura, ainda não haviam provado da taça de veneno servida por Mankiewicz.
Após essa deixa, a narrativa e Eve mostram claramente a que vieram.
Eve Harrington (Anne Baxter), Margo Channing (Bette Davis), Miss Casswell (Marilyn Monroe) e Addison DeWitt (George Sanders) |
A história de A malvada
corre em flashback. Começa no
prelúdio do momento culminante da cerimônia de entrega do Troféu Sarah Siddon
para Realização Extraordinária aos Melhores do Teatro. O decano dos atores
(Hampden) faz a preleção de praxe. Mas o que se ouve é a voz algo cansada,
cínica, arrogante e em off de
Addisson DeWitt, ali presente. Apresenta-se como crítico, comentarista e,
conforme o próprio juízo, personalidade essencial ao teatro.
DeWitt informa: o
Troféu Sarah Siddon goza de reputação jamais igualada por similares como o
Oscar e Pullitzer — láureas menores, sustenta. Para a Sociedade Sarah Siddon o
ator é tudo. Os demais elementos da encenação — diretor e autor inclusive — apenas
auxiliam o intérprete a brilhar, tanto que são agraciados com prêmios
considerados de pouca relevância, afirma. Nessa introdução, DeWitt prolonga a
consciência crítica de Mankiewicz. Apresenta também os personagens essenciais à
trama. A seguir, Karen Richards abre seus pensamentos para o espectador.
Quase todo o
filme é ordenado como prolongamento das lembranças de Karen. Foi a primeira a
conhecer Eve Harrington — a mais jovem atriz a receber a consagração máxima da
Sociedade Sarah Siddon. A premiada, não faz muito tempo, era apenas uma pobre apaixonada
pelo teatro. Esforçava-se para não perder as apresentações da diva Margo
Channing. Economizava nos parcos vencimentos para adquirir os lugares mais
baratos da plateia. A peça terminava, o público ia embora, mas não Eve. Permanecia
nas proximidades, aguardando chance para se aproximar de Margo. Karen a
percebia, noite após noite, no interminável plantão. Admirada com tanta
persistência, resolveu apresentá-la ao objeto do desejo.
Eve Harrington (Anne Baxter), a mais jovem atriz premiada com o cobiçado Troféu Sarah Siddon por Realização Extraordinária em Teatro |
É significativo:
conduzida por Karen, Eve é introduzida no teatro pela porta dos fundos, justamente
a mais próxima do palco. Mal consegue se conter. Instintivamente, dirige-se ao
tablado que parece hipnotizá-la em sua perspectiva elevada. A seguir Mankiewicz
desdenha das manhas e do ego inflado do artista. Consultada por Karen a
respeito da jovem que deseja vê-la, Margo faz pouco caso. Mas é toda solícita
quando Eve adentra o camarim e se declara admiradora incondicional. Comprova
saber tudo sobre o ídolo e as peças em que atuou. Margo e Lloyd Richards ficam
fascinados com tanta dedicação.
A estrela e o
autor, isolados no mundo de faz de conta das encenações, parecem ter, pela
primeira vez, contato com uma representante dos mortais comuns. Este
comportamento, mais à frente, merecerá comentário do arguto DeWitt: "Atores
e atrizes são pessoas normais, desde que fique claro sua total falta de
semelhança com seres humanos normais". Bill Sampson chega. Resiste à
visita, mas é logo envolvido. Imune permanece apenas a camareira Birdie Coonan
(Ritter). Talvez por ser, como a intrusa, pessoa comum, apesar da peça que lhe pregou
o destino. Foi grande atriz e, por 11 anos, a número 1 na preferência do
público. Agora auxilia a diva do momento. Estrelas são luzes intensas, mas
efêmeras, comenta Mankiewicz. Assemelham-se, na devida proporção, aos toureiros
de Sangue
e areia (Blood and sand, 1941), de Rouben Mamoulian. São consumidas
impiedosamente, num mercado extremamente seletivo, onde uma devora o brilho da
outra. O tempo de Birdie passou. Margo está nos estertores do seu. É a bola da
vez e tem consciência disso. Se pudesse perceber os desejos ocultos sob a luz
dos olhos de Eve...
A perspicaz e observadora Birdie Coonan (Thelma Ritter) |
Ao falar de si,
Eve Harrington conta triste e pouco luminosa história de vida. Filha de
fazendeiros pobres, viúva de aviador morto durante a guerra, lutou para
sobreviver desde cedo. Próximo ao final, DeWitt revelará a verdade sobre esse
passado de fato humilde, mas habilmente disfarçado por uma certa Gertrude. Eve é
uma oportunista. Pavimentou a trajetória à base de sexo e mentiras. Sempre quis
ser atriz. Mas no momento em que a todos cativa, com ares tão desprotegidos e
inocentes, cabe-lhe o caracterização dada por Margo: "Uma ingênua tonta em
nossa selva de cimento".
Praticamente
adotada pela diva, Eve passa a gozar de sua total intimidade. Conhece todos os
meandros da vida privada da atriz. Seguiu ao pé da letra o pedido para cuidar dela,
feito por Bill Sampson. Concorda integralmente com o personagem do diretor, na
significativa sequência da conversa na escadaria, quando ele diz: "90% do
teatro é trabalho duro, dedicação, suor, habilidade. Ser bom ator ou atriz
significa uma construção do desejo e da ambição. Não pode ser uma pessoa comum.
Há que dar tudo para um trabalho que vale tão pouco". Porém, Eve emenda, com
voz extasiada e olhos esperançosos: "...Aplausos como ondas de luz
envolvendo o ator no abraço. Só isso já vale qualquer coisa". Dará tudo
por isso. Ambição não lhe falta. Está atenta a todas as movimentações de Margo
— para desespero de Birdie, cada vez menos sem espaço. Agenda compromissos,
copia gestos e roupas, prefere as mesmas bebidas. Torna-se sombra onipresente
que a tudo ofusca. Até que, dominada pela insegurança quanto ao futuro, Margo a
dispensa. Porém, arranja-lhe emprego no escritório de Max Fabian.
Bill Sampson (Gary Merrill), Eve Harrington (Anne Baxter) e Margo Channing (Bette Davis) |
Antes da mudança,
Eve consegue de Karen a indicação ao posto de atriz substituta. No teste,
derrota Miss Casswell (Monroe em início de carreira), pupila de DeWitt formada
pela Escola de Arte Dramática Copacabana, aspirante tão medíocre que nem no
cinema conseguiu trabalho. Só lhe resta, por recomendação do crítico, a televisão.
Novamente o personagem de Sanders funciona como perversa consciência crítica ao
desferir frontal e explícito ataque às mídias de massa.
Margo, informada
da vitória de Eve, ouve do ferino DeWitt que a novata será excelente atriz, tão
boa como a titular. Surpreendida, sente o baque. O problema não é Eve ser tão
boa, mas ser muito mais nova e fisicamente ajustada às personagens joviais que
a quarentona costuma representar. A surpresa gera insegurança, a seguir raiva
descontada em Bill, Lloyd e Fabian, avalistas do teste de Eve. Nesta sequência
a atuação de Davis é explosiva. Transforma-se em fera acuada no ato desesperado
e instintivo de defesa. Desmancha-se em emoções à flor da pele. Todo o cenário
parece vibrar diante da performance de uma atriz no auge do talento.
Paranoica, Margo teme
perder o amor de Bill. Será trocada por Eve, acredita. O descontrole provoca o
afastamento do amante. Do outro lado, Lloyd, sensivelmente irritado pela mania
de grandeza da diva, pretende lhe aplicar uma lição. Karen concorda. Ambos provocam
a impossibilidade de Margo chegar a tempo para uma apresentação. É a grande
chance de Eve. A substituta é elogiado em todos os jornais, por DeWitt
principalmente. Este lhe destaca a juventude e o frescor enquanto alude maldosamente
à idade de Margo.
Margo Channing (Bette Davis), Birdie Coonan (Thelma Ritter) e Karen Richards (Celeste Holm) |
Daí em diante Eve
se torna, sem nenhum meio-tom, a personagem do título em português. Não cobiça
apenas o posto de Margo, mas o amante e os amigos. Tenta seduzir Bill Sampson,
mas é rejeitada. Planeja afastar Lloyd de Karen, a amiga fiel que lhe abriu todas
as portas. Chantageia-a em sequência primorosa. No banheiro de um restaurante,
praticamente se desnuda como aplicada princesa atenta às lições de Maquiavel. Obriga
Karen a lhe conseguir o papel principal na próxima peça de Lloyd, ou revelará a
tramoia por trás da perda da fatal apresentação por Margot. Lívida, a
personagem de Celeste Holm parece acuada pela serpente. É o grande momento de
Anne Baxter. Ela, muito injustamente, nunca mereceu o devido destaque na
constelação das mais talentosas de Hollywood.
DeWitt percebe as
intenções de Eve e passa a vigiá-la. Levanta o véu de seu passado nebuloso. De
posse de informações comprometedoras, usa da chantagem para controlá-la por
completo. Nessa operação o crítico também se desmascara. Exposto o seu
verdadeiro caráter, deixa de ser o alter
ego de Mankiewicz e assume a identidade do cronista canalha, carente e
ganancioso, ávido por uma rapinagem no meio teatral. Confessa a Eve que ambos são
muito parecidos. Possuem em comum o "Desprezo pela humanidade,
incapacidade de amar e ser amados, ambição insaciável — e talento. Merecemos um
ao outro". Como se vê, a imprensa também sai conspurcada em A
malvada. George Sanders prova, mais uma vez, o talento que o consagrou
na pele de personagens elegantes, inteligentes, cínicos, irônicos, perversos e amorais.
Karen Richards (Celeste Holm), Margo Channing (Bette Davis) e Lloyd Richards (Hugh Marlowe) |
É tarde quando
Margo se arrepende do comportamento ególatra, pontuado de ataques de
estrelismo, inseguranças e desequilíbrios que a caracterizaram. Uma
profissional invejosa e calculista, tão fria quanto luminosa, tomou-lhe o lugar
e conquistou o prêmio que ela, veterana, provavelmente jamais conseguirá. Qual
será o seu futuro? Mankiewicz não mostra. Em compensação há um gesto revelador
de DeWitt: o crítico a toma por camareira ao lhe confiar a guarda do casaco da
medíocre Miss Casswell.
Mas essa história
de carreirismo não termina. A noite da consagração de Eve antecipa uma queda em
marcha. Shirley Phoebe (Bates), jovem ingênua e de boa vontade, acerca-se dela,
da mesma forma como aconteceu com Margo. Sabedor da dinâmica dos processos, o
experiente DeWitt questiona a nova aspirante diante do testemunho mudo do Troféu
Sarah Siddon: "Gostaria de ganhar um prêmio assim? É só perguntar à
senhorita Harrington como o conseguiu. Ela poderá lhe ensinar tudo".
A cena final capta
a solitária Shirley vestida com as roupas de gala da consagrada estrela. Segura
o Troféu Sarah Siddon e faz reverências diante do espelho, como se fosse a
própria premiada. Repete, com outros movimentos, a cena em que Eve, ainda nas
boas graças de Margo, trajava o figurino da diva e experimentava, no palco
vazio, a sensação dos supostos aplausos de uma plateia imaginária. São momentos
antológicos. Com eles Mankiewicz oferece sua versão para o nascimento e morte
das estrelas, inclusive para o mal que as acomete.
O final com Barbara Bates no papel de Shirley Phoebe |
Bette Davis e
Gary Merrill se apaixonaram durante as filmagens e contraíram núpcias pouco
depois. As características físicas de seus personagens são o único senão de A
malvada. Nem fazendo muito esforço o espectador consegue acreditar que
Bill Sampson tem apenas 32 anos e Margot tão somente 40.
Direção de fotografia (preto e branco): Milton R. Krasner. Música: Alfred Newman; Liebestraum, de Franz Liszt. Orquestração: Edward B. Powell. Decoração: Thomas Little, Walter M.
Scott. Direção de arte: Lyle R.
Wheeler, George W. Davies. Direção de
guarda-roupa: Charles LeMaire. Costumes
de Bette Davis: Edith Head. Montagem:
Barbara McLean. Roteiro: Joseph L.
Mankiewicz, baseado em sua ideia original e na história The wisdon of Eve, de
Mary Orr (não creditada). Diálogos:
Joseph L. Mankiewicz. Maquiagem: Ben
Nye, Frank Prehoda (não creditada), Gene Roemer (não creditada). Efeitos fotográficos especiais: Fred
Sersen. Som: W. D. Flick, Roger
Heman Sr. Assistente de direção:
Gaston Glass (não creditado). Maquiagem
de corpo: Bunny Gardel (não creditada). Penteados (não creditados): Kay Reed, Gladys Witten. Gerente de produção: Max Golden (não
creditado). Gerente de unidade de
produção: Robert R. Snody (não creditado). Segundos assistentes de direção (não creditados): Gerald Braun, Hal
Klein. Contrarregra: Fred R. Simpson
(não creditado). Operador de boom: Paul
Gilbert (não creditado). Gravação de
som: Thomas T. Moulton (não creditado). Cabos: Harry Roberts (não creditado). Efeitos especiais: Jess Wolf (não creditado). Eletricista-chefe: Vaughn Ashen (não creditado). Assistentes de câmera (não creditados):
Al Lebowitz, Bud Brooks, Charles Edler, James E. Lavin, Joe Robinson. Eletricista: Jack Dimmack (não
creditado). Operador de câmera: Paul
Lockwood (não creditado). Fotografia de
cena: Ray Nolan (não creditado). Grua
(não creditada): Jack Richter, Rex Turnmire. Guarda-roupa
(não creditado): Sam Benson, Josephine Brown, Ann Landers, Merle
Williams. Joalheria: Joan Joseff
(não creditada). Aprendiz de montagem:
Lyman Hallowell (não creditada). Direção
musical: Alfred Newman (não creditado). Pianistas (não creditados): Edward Rebner, Urban Thielmann. Apresentação: Darryl F. Zanuck. Gerente de locações: W. F. Fitzgerald
(não creditado). Publicidade: Grady
Johnson (não creditado). Continuidade:
Weslie Jones (não creditado). Supervisão
de diálogos: Florence O'Neill (não creditado). Jurisdição das filmagens: International Alliance of Theatrical
Stage Employees (IATSE). Sistema de
mixagem de som: Mono pela Western Electric Recording. Tempo de exibição: 138 minutos.
(José Eugenio
Guimarães, 1983)
Muchas gracias por su apoyo y palabras, David.
ResponderExcluirSaludos y abrazos.
Eu amo este filme, tanto Bette Davis (a quem eu admiro muito) e Anne Baxter são soberbas. Eu acho que ofuscar os protagonistas masculinos. Desculpe se o comentário é algo errado, é que eu tenho que usar o Google Tradutor para fazer.
ResponderExcluirEu amei o seu post.
Um beijo
Concordo com você, Chari BR7. Bette e Anne estão soberbas. Ofuscam, mesmo, os personagens masculinos, com exceção de George Sanders, que está magnífico. O comentário não saiu errado. Está tudo certo. Pode escrever em espanhol que consigo entender.
ExcluirBeijos.
Eugenio,
ResponderExcluirColocação mais que adequada: "uma pelicula de narrativa elegante e sofisticada"
Vi esta fita na TV e jamais pude adequa-la ao meus sentidos, isto com 100% de qualidade, o que assisti por diversas vezes. Lutava, mas não conseguia acompanhar os letreiros, o que me impedia de capta-la melhor ou por inteiro.
Percebi que se tratava de um classíco e, ainda se dirigido por Mankiewicz, o que mais dizer se, ainda no seu elenco haviam nomes como o da Davis, do Sanders, do Marlowe, do Merril, da Baxter e da Holm? O que poderia dar errado ali? NADA.
Porém, minha falta de poder em acompanhar as legendas prejudicava sempre que o tentava rever. Ate que ele passou dublado e então pude avaliar que eu tinha toda razão em saber que naquele conteudo havia muito de importante.
Um grande filme deste Mestre do Drama. Ele guia a fita com mãos santas e maestras, não deixando a fita escorregar em momento qualquer.
Desconhecia o lado das dificuldades que a Davis passara naquela década e que esta pelicula a soergueu.
Assisti ha poucos dias uma fita mostrando a vida e o lado teatral voltado ao ponto de vista dos bastidores. Foi Amar é Sofrer/54, do Seaton. Mas já havia visto A Malvada. E este dentro do mesmo ângulo das intrigas e situações de bastidores do teatro.
Não vou escolher qualquer dos dois, pois são duas grandes fitas. Porém, A Malvada tem um pouco de brilho a mais, assim como muito mais intrigas e tudo o mais. Porém, são duas magníficas fitas.
Estou aqui recordando deste formidável diretor que conseguiu nos dar ainda o Sensacional Julius Cesar/1953, o melhor filme que vi dentro do tema do Imperador.
Mas não posso também deixar de frisar sobre um faroeste que vi, de alto nível, onde o Douglas e o Fonda abusam de suas qualidades. E o diretor mostra que também sabe se sair otimamente em outros gêneros. O filme foi Ninho de Cobras/70. Ótimo western.
jurandir_lima@bol.com.br
Jurandir,
ExcluirNINHO DE COBRAS só vi uma vez, lamentavelmente. Procuro para ver novamente e não o encontro. Entrou para a categoria dos filmes raros. Também gosto muito de AMAR É SOFRER. Há poucos dias estava revendo o texto que escrevi para ele, ainda não publicado aqui no blog.
Quanto ao Mankiewicz, gosto, em geral, de tudo o que fez. A exceção é CLEÓPATRA. Detesto esse épico, em absoluto. Só serviu para arruinar a carreira de Rouben Mamoulian, que iria dirigi-lo mas terminou afastado. Terminou nas mãos de Mankiewicz, que quase foi à loucura por causa do estrelismo de Taylor-Burton e das imposição de Zanuck. É o épico mais morto que já vi.
Mas A MALVADA tem lugar reservado no meu panteão dos grandes títulos do cinema. É "o cinema da crueldade" em sua melhor forma. Pude vê-lo no cinema. Sinto-me privilegiado por isso. Infelizmente, é cada vez mais raro ver esses filmes no cinema, que é o lugar ao qual pertencem.
Abraços, Jurandir.
Eugenio,
ResponderExcluirJá li no blog de um outro colega nosso que a intromissão e as duras imposições do Zanuck era um praxe seu. De uma forma mais geral ele não deixava de fazer o seu papel de produtor, mesmo que isto causasse milhões de prejuizos aos seus próprio cofres, assim como dilacerar uma obra tão importante como Cleópatra poderia vir a ser.
Desconhecia isso do Mamoulian, pois não tinha conhecimento que ainda em 1963 estava na ativa, já que era um diretor de grande atividade nas décadas de 1930 e 1940, desconhecendo até que em 1950 estivesse ativo.
Ótimo saber, muito bom. Quanto mais informes para o acerto pessoal, melhor.
jurandir_lima@bol.com.br
Otto Preminger conta bem como era o método do Zanuck na produção dos filmes da Fox. Se puder, leia o livro de entrevistas do Peter Bogdanovich: "Afinal, quem faz os filmes?", Jurandir.
ExcluirAbraços