domingo, 3 de janeiro de 2016

O POUCO KAFKIANO "KAFKA" DE SODERBERGH

Kafka (Kafka, 1991) é o segundo título longo da filmografia do irregular cineasta Steven Soderbergh. Durante a realização, problemas no roteiro de Lem Dobbs e com as primeiras edições transferiram as locações de Praga para Londres. É uma produção ambiciosa. Mas deixa a desejar. Filmada em preto e branco e em cores, conta livremente a história de Franz Kafka (Jeremy Irons). Integra à narrativa contribuições extraídas de livros do personagem, notadamente O processo, Metamorfose, Carta ao pai e O castelo. Num ambiente marcado pelo autoritarismo, com atmosfera permeada por sombras e pesadelos, Kafka é o funcionário relativamente apagado de uma companhia seguradora que se desdobra na atividade informal de detetive. Tenta desvendar o mistério em torno do desaparecimento e morte do colega Eduard Raban (Vladimír Gut). As atividades o levarão às dependências da sede do governo, o temido castelo de Hradcany. Abundam influências do cinema expressionista alemão, do filme noir estadunidense, de O terceiro homem (The third man, 1949), de Sir Carol Reed, e O processo (Le procès, 1962), de Orson Welles. A apreciação a seguir, de 1994, passou por ligeira revisão em 2000.






Kafka
Kafka

Direção:
Steven Soderbergh
Produção:
Stuart Cornfeld, Harry Benn
Baltimore Pictures, Pricel, Renn Productions
França, EUA — 1991
Elenco:
Jeremy Irons, Theresa Russell, Joel Grey, Ian Holm, Jeroen Krabbé, Armin Mueller-Stahl, Alec Guinness, Brian Glover, Keith Allen, Maria Miles, Leon Silver, Robert Flemyng, David Jansen, Simon McBurney, Matyelok Gibbs, Ion Caramitru, Hilde Van Mieghem, Jan Nemejovský, Toon Agterberg, Vladimír Gut, Emil Wolk, Josef Abrhám, Guy Fithen, Zuzana Halustokova, Ondrej Havelka, Lenka Korínková, Petr Lepsa, Debora Weston, Jan Slovák, David Shaw Parker, Jerome Flynn, Ewan Stewart, James McPhee, Lubos Rychvalsky, Pavel Myslik, Frantisek Stupka, Petr Jákl, Karel Belohradský, Josef Sebek, Robert Krejcik, Vitezslav Bouchner.



O diretor Steven Soderbergh


Depois de assistir ao filme de estreia de Steven Soderbergh, o excessivamente incensado Sexo, mentiras e videotape (Sex, lies, and videotape, 1989) — Palma de Ouro em Cannes —, Jeremy Irons sentiu vontade de trabalhar com o diretor. A oportunidade surgiu com Kafka, segundo título assinado pelo cineasta. Custou 12 milhões de dólares, quantia irrisória para os padrões hollywoodianos. Entretanto, é uma superprodução se comparada aos risíveis 1,2 milhão de dólares de Sexo, mentiras e videotape.



Acima e abaixo: Jeremy Irons no papel de Franz Kafka


O roteiro de Lem Dobbs, simplificado por Soderbergh, é livremente inspirado na vida do escritor tcheco Franz Kafka. Elementos extraídos de livros do autor — Metamorfose, O processo, O castelo e Carta ao pai — foram acrescentados. A parte antiga de Praga — onde Kafka viveu —, capital da até então Tchecoeslováquia[1], serviu como locação. Soderbergh — insatisfeito com o roteiro e primeiras imagens editadas — se viu na necessidade de refilmar 20% do material, ocasião em que as locações foram transferidas para Londres.


Kafka é um thriller de toques surrealistas. Integra elementos de mistério, drama político, policial e terror. Como já acontecera com Dashiell Hammett pela ótica de Win Winders em Hammett, o Falcão Maltês[2] (Hammett, 1982) e, mais recentemente, com William S. Burroughs em Mistérios e paixões (Naked lunch, 1991), de David Cronenberg, Franz Kafka (Irons) é convertido em personagem das suas próprias tramas. É transportado ao próprio universo literário permeado por sombras, irrealidade e pesadelos. Esteticamente, a realização recebe influências do cinema expressionista alemão, do noir estadunidense dos anos 40 e, principalmente, de O terceiro homem (The third man, 1949), de Carol Reed.


Franz Kafka (Jeremy Irons), pouco expressivo funcionário de companhia de seguros

  
O protagonista — apagado funcionário subalterno de uma seguradora em Praga — habita um universo monótono. Seus maiores desafios são proporcionados por perambulações noturnas às áreas marginais e boêmias repletas de cafés enfumaçados. Fora isso, isola-se no sótão que lhe serve de moradia, onde escreve histórias — em princípio impublicáveis — e sofridas cartas à família. A modorra é radicalmente alterada com o desaparecimento misterioso do amigo e colega de trabalho Eduard Raban (Gut), também escritor. O infortúnio permite a ascensão profissional de Kafka. Passa a ser assessorado por funcionários — Ludwig (Allen) e Oscar (McBurney) — insuportavelmente confusos e hilariantes. Na verdade, são informantes dos órgãos de segurança. A vida privada e pública de qualquer cidadão é minuciosamente vigiada pelo governo com sede no temido Castelo de Hradcany.


Nas horas vagas, Franz Kafka (Jeremy Irons) perambula pelos setores boêmios de Praga

Kafka (Jeremy Irons)  às voltas com seus assessores e agentes dos órgãos de informação: Ludwig (Keith Allen) e Oscar (Simon McBurney)


Quando o corpo de Eduard aparece, resgatado de um rio, o comissário de polícia Grubach (Mueller-Stahl) chama Kafka para a identificá-lo. As mãos estão estranhamente perfuradas. Curioso, o protagonista passa a investigar o caso por conta própria. Envolve-se com organização revolucionária secreta que prega a resistência ao governo e planeja atentados. Entre os membros do grupo está Gabriela (Russell), namorada de Eduard. As investigações conduzem ao Castelo de Hradcany, onde fatos terríveis são presenciados.


Armin Muller-Stahl como o Comissário de Polícia Grubach


Soderbergh alega que tentou fazer algo muito diferente do medíocre rame-rame do atual cinema dos EUA. Infelizmente, os resultados foram frustrantes, apesar das concepções arrojadas do projeto. Kafka não decola. É certo que a direção não pretendia nada próximo da genialidade de O processo (Le procès, 1962), de Orson Welles, com o qual guarda semelhanças. Seriam desonestos maiores esforços para aproximar uma obra da outra. Porém, mesmo improcedente, a comparação é inevitável. Kafka não possui a vigésima parte da grandeza da realização perpetrada pelo autor de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). Suas imagens poderosas — com destaques para a fotografia (preto de branco na maior parte e colorida na sequência decisiva do castelo), movimentação da câmara e direção de arte —, emolduram uma história pálida, pouco vigorosa à recriação de um mundo feito de brumas e opressão.



Acima e abaixo: Gabriella (Theresa Russell) e Franz Kafka (Jeremy Irons)

  
Frustrado, o espectador sai do cinema com vontade de rever Brazil: o filme (Brazil, 1985), de Terry Gilliam; 1984 (Nineteen eighty-four, 1984), de Michael Radford; O Processo, de Orson Welles, ou, na falta desses, os clássicos de horror ingleses da Hammer, ou estadunidenses da Universal, todos, em essência, mais kafkianos que o Kafka de Soderbergh.



  
Produção executiva: Paul Rassam, Barry Levinson, Mark Johnson. Roteiro: Lem Dobbs. Música: Clif Martinez. Direção de fotografia (Panavision, cores, e preto e branco): Walt Lloyd. Montagem: Steven Soderbergh. Desenho de produção: Gavin Bocquet, Tony Woollard. Direção de arte: Leslie "Les" Tomkins, Jiri Matolin, Philip Elton. Planejamento de som: Mark A. Mangini. Operador de câmera: Eddie Collins. Produção de elenco: Susie Figgis. Decoração: Joanne Woollard. Figurinos: Michael Jeffery. Chefe de penteados: Paula Gillespie. Maquiagem: Zdenek Klika, Allen Weisinger. Penteados: Stephen Rose. Supervisão de produção: Jan Balzer. Gerentes de unidade: Miloslav Dolezal, Petr Moravec. Gerente de produção: Pavel Nový. Segundos assistentes de direção: Lee Cleary, Nick Laws, Alice Ronovska. Assistentes de direção: Steve Harding, Mirek Lux, Jirí Ostry, Guy Travers. Terceiro assistente de direção: Zbynek Honzík. Pintura: Bill Bernie, George Dean. Contrarregra: Joe Dipple, Bohumil Kadlec. Coordenação de construções: Len Furey, Mike Rickard. Carpintaria: John Whitby. Sketch artist: Tony Wright. Edição adicional de efeitos sonoros: Ron Bartlett. Edição de som: Larry Blake, Mark A. Mangini. Mixagem da regravação de som: Larry Blake, Mark A. Mangini. Segundo assistente de operador de boom: Tomas Cervenka. Operadores de boom: Phil Croal, Mark Holding. Supervisão de adr: Louis Elman (Inglaterra). Ruídos de sala: Nerses Gezalyan. Produção da mixagem de som: Paul Ledford. Efeitos sonoros na biblioteca: Steve Lee. Weddington recordist: Dave Moreno. Ruídos de sala: Dan O'Connell, Greg Orloff, Randy Singer, Alicia Stevenson. Consultoria de som stereo para a Dolby: Steve F.B. Smith. Mixagem da adr: Alan Snelling. Efeitos especiais: Philip Elton, Terry Glass, Jirí Matolín, Ian Wingrove. Assistentes de processamentos fotográficos: Mike Heaviside, Brian Orris. Processamentos fotográficos: Charles Staffell. Coordenação de dublês: Marc Boyle. Dublê para Jeremy Irons: Pavel Cajzl. Dublê: Perry Davey. Segundo assistente de câmera: John Attwell. Primeiro assistente de câmera: Steve Burgess. Eletricistas-chefes: George Cole, Martin Evans. Operador geral: Jim Coward. Assistentes de câmera: John Flemming, George Hunt, Jimmy Waters, Paul Wells. Eletricistas: Jiri Horych. Fotografia de cena: Alan Pappe. Operador da grua: Adam Samuelson. Assistente de produção de elenco (Inglaterra): Abi Cohen. Decorador: Hana Kucerova. Assistentes de montagem: Aaron Glascock, Rob Green. Colorização: Tom Salvatore. Uniformização do negativo: Patricia Sztaba, Stan Sztaba. Consultoria para a trilha musical: Sharal Churchill. Composição de música adicional: Jeff Rona (não creditado). Continuidade: Jean Bourne, Annie Penn. Assistente de produção: Sarah Flack. Publicidade: Robert A. Levine. Contabilidade: Tony Miller. Assistente para Steven Soderbergh: Jill Samuels. Coordenação da produção: Gail Samuelson. Supervisão da alimentação: Robin Demetriou (não creditado). Agradecimentos a: Charles Newirth. Estúdios de filmagem: Pinewood Studios, Barrandov Studios. Estúdios de adr: Anvil Post Production. Fornecimento de alimentação: First Unit Caterers. Equipamentos de iluminação: Lee Lighting. Serviços de corte: Masterwords, Match Cut Film Services. Fotografias de cérebro: Oxford Scientific Films. Fotografias de olhos: Oxford Scientific Films. Agentes marítimos: Packair Airfreight, Renown Freight. Equipamentos de câmera: Panavision Prague. Planejamento de créditos: R/Greenberg Associates. Gravação de ruídos de sala: Skywalker Sound. Agência de viagem: The Travel Company. Estúdios de gravação da trilha musical: Virgin Records America. Estúdios de regravação de som: Weddington Productions. Sistema de mixagem de som: Dolby SR. Tempo de exibição: 98 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1994; revisto em 2000)



[1] Em 1 de janeiro de 1993, a Tchcoslováquia se dissolveu em República Tcheca, com capital em Praga, e Eslováquia (Nota da revisão de 2000).
[2] Com este título estreou nos cinemas brasileiros. Foi alterado para Hammett — mistério em Chinatown desde o lançamento em VHS (Nota da revisão de 2000).

8 comentários:

  1. Já estive lá e deixei uma mensagem parabenizando-a, Adriana. Foi logo pela manhã.

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  2. Amo franz kafka, fiquei feliz em saber que existe um filme sobre ele <3

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    1. Se o assistir, manifeste aqui o que você achou, Letícia. Abraços.

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  3. Gracias, David. Es un simple blog, donde divulgo mi pasión por el cine y las evaluaciones que escribí - y todavía escribo - para diferentes películas que he visto en toda mi vida. Agradecido por su presencia.

    Saludos y abrazos.

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  4. Eugenio,

    Não me sinto, de forma alguma, com qualquer sentimento de submissão ao citar que nada sei sobre o Kafka. Nunca li nada a respeito, desconhecendo por completo esta lenda.

    Entretanto, em se voltando para o Steven Soderbergh, quando vi Sexo, Mentiras e Video Tape/89, eu não me senti à vontade com o filme.
    Depois vi Traffic, que ele fez 11 anos depois.

    Também não amei em nada o filme, possivelmente por te-lo visto legendado, que é um fator que me desagrada e que não me deixa à vontade para fazer uma análise com o rigor que o filme merece.

    No entanto, depois, refleti e percebi que precisaria rever este filme. O fiz. Novamente legendado mas, agora com um sentimento mais ameno da fita.

    Depois, por fim, o vi dublado e me conscientizei de que era uma muito boa pelicula.

    Passei então a seguir sua carreira. E foi quando vi Irresistivel Paixão/98, que adorei e então segui vendo seus trabalhos. E entre eles fiquei impressionado com a qualidade de Erin Brockovich/2000.

    É um diretor consciencioso, que administra com qualidade seus trabalhos, mas que tem uma espécie de mania, que é dirigir seus filmes sem conta-los linearmente, o que me desagrada porque cinema não nasceu assim e não sei se muitas invenções dentro da Arte lhe faz bem.

    Mas não nego que um diretor de respeito, com sua trilogia de Onze Homens e Um Segredo que fez um enorme sucesso, entre mais obras suas que precisamos respeitar por sua qualidade e técinica.

    jurandir_lima@bol.com.br

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    1. Não tenho problemas com filmes não lineares, Jurandir. Até gosto. É uma boa oportunidade para se confirmar o talento de um diretor como contador de histórias. Ademais, muitos filmes nasceram com o firme propósito de brincar com a memória e com a linearidade. O cinema contemporâneo está repleto de experiências assim. Temos como exemplo o Orson Welles com seu CIDADÃO KANE e do início dos anos 60, os filmes de Alain Resnais como O ANO PASSADO EM MARIEMBAD e HIROSHIMA MEU ANOR, para ficar apenas com estes dois exemplos.

      Quanto ao Soderbergh, é um bom diretor cheio de obras irregulares. Mas é sempre alguém a ser observado. KAFKA, infelizmente, não é um grande filme. Ficou apenas na promessa.

      Abraços.

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  5. Eugenio,

    Me referi diretamente ao trabalho do Soderberg em seu filme Traffic, onde a fita é toda narrada sem a contenção de pontos de partida, onde cenas passadas são indexada à fita em seu momento atual, emprestando à pelicula uma conotação diferente e até confusa para muitos.

    Acho este modo alternativo de criar um filme um tanto desconfortável para quem não tem o preparo adequado para assimilar o que se tenta dizer e, de um modo geral, termina-se por não entender seu conteúdo a contento em cima de tantos vai e vem.

    Não recordo bem de Sexo, Mentiras e Video Tape/89, podendo esta causa que explicito ter sido a razão da fita ter se tornado um tanto deslocada para minha compreensão à época de seu lançamento, quando a vi.

    Já nos seus Erin e Irresistivel Paixão, ele criou os filmes dentro de um normal padrão de seguimento.

    É sim um bom diretor. As notas que faço sobre alguns seus trabalhos não arrancam do profissional, qualificado que é, suas qualidades como realizador.

    jurandir_lima@bol.com.br

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    1. O jeito "complexo" de Traffic é proposital. A complexidade da montagem - sem fim ou princípio - só aponta para a complexidade do problema das drogas e do trafico no mundo contemporâneo. Não há soluções simples para ele. Onde, de fato, começa o problema? Com quem estamos lidando? Como o poderia das drogas e do tráfico cresceu tanto? Que dimensões tomará? Há como combater o problema? Que relações terá a geopolítica com isso? O filme é como um quebra-cabeça pois não há respostas simples para a quantidade de problemas que se entrecruzam. Não poderia, mesmo, ser realizado de forma linear. TRAFFIC é, de fato, um bom filme. O roteiro é dos mais inteligente. Não conta uma história - por isto, não é linear - mas apresenta um painel de desdobramentos sociais e políticos da maior complexidade.

      Abraços.

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