Obviamente, A batalha de Argel (La
battaglia di Algeri/La bataille d'Argel/Maarakat
Alger, 1966) teve exibição proibida na França. No Brasil, a interdição
durou 14 anos. Muitas imagens são tristemente familiares aos brasileiros que
vivenciaram da pior forma a ditadura militar. Com narrativa em tom
semidocumental, a realização de Gillo Pontecorvo mira principalmente o ano de
1957. A população e a Frente de Libertação Nacional ampliam as ações em prol da
independência da Argélia. A França — potência colonizadora, bastião do
Iluminismo e da civilização ocidental — fez de tudo para manter a dominação.
Sai do filme — e da história — ensanguentada, com a reputação seriamente
abalada. Passados quase 50 anos, A batalha de Argel ainda preserva a
atualidade. Em linguagem crua e explosiva, alimentada por tomadas curtas e
precisas, apreende a respiração tensa e dramática do agente coletivo — a
população de Argel — que suportou o impacto da repressão e saiu às ruas para
defender o direito à autodeterminação. Pontecorvo não demoniza franceses nem
idealiza insurgentes. A responsabilidade pelos excessos recai sobre o sistema
de exploração colonial — julgado nos planos moral, político e histórico. Em 2005
A
batalha de Argel teve exibição no Pentágono, com o objetivo de mostrar aos
oficiais estadunidenses envolvidos na Guerra do Iraque os erros cometidos pelos
franceses. Uns e outros, pelo visto, nada aprenderam. A apreciação a seguir é
de 1987.
A batalha de Argel
La battaglia di Algeri/La bataille d'Argel/Maarakat
Alger
Direção:
Gillo Pontecorvo
Produção:
Antonio Musu, Yacef Saadi
Igor Film (Roma), Casbah Film(Argel)
Itália, Argélia — 1965
Elenco:
Jean Martin, Samia Kerbash, Yacef
Saadi, Brahim Haggiag, Fusia El Kader, Mohammed Ben Kassen, Ugo Paletti, Omar e
os não creditados Michéle Kerbash, Franco Moruzzi, Tommaso Neri, Gene Wesson.
Gillo Pontecorvo no tempo das filmagens de A batalha de Argel |
Herdeiro do Neorrealismo,
o cinema de conotações políticas manteve, principalmente nos anos 60 e 70,
forte tradição na produção da Itália. Diretores da linha de frente como Elio
Petri — A classe operária vai ao paraíso (La classe operaia va in paradiso,
1971), Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita (Indagine
su un cittadino al di sopra di ogni sospetto, 1970), Juízo
final (Todo modo, 1976) —, Francesco Rosi — O bandido Giuliano (Salvatore
Giuliano, 1962), O caso Mattei (Il caso Mattei, 1972), Cadáveres
ilustres (Cadaveri eccellenti, 1976), Três irmãos (Tre
fratelli, 1982), Cristo si è fermato a Eboli (1979)
—, Damiano Damiani — Confissões de um comissário de polícia ao procurador
da república (Confessione di un commissario di polizia al
procuratore della repubblica, 1971) —, Giuliano Montaldo — Sacco
e Vanzetti (Sacco e Vanzetti, 1971) —, Carlo Lizzani — Il processo di Verona
(1963), Sequestrados (Barbagia, 1969) — entre outros,
confirmam esse enraizamento. A eles se junta o bissexto Gillo Pontecorvo, mais
conhecido por Queimada (Queimada, 1969) — sobre as manobras
do colonialismo na América Latina —, durante longo tempo esquecido no freezer do brasileiro Departamento de
Censura da Polícia Federal até ser liberado à exibição em 1980.
Quatro anos antes
de Queimada
o diretor já mirava o colonialismo e seus efeitos no surpreendente e impactante
misto de ficção e documentário A batalha de Argel. Este também não
contou com o beneplácito dos zelosos funcionários da censura no Brasil. Os
fatos em tela compreendem o período entre 1954 e 1962. Mas a ação é concentrada
em 1957. Mostra a luta da Frente de Libertação Nacional (FLN) em prol da
independência da Argélia — há 130 anos ocupada — e a reação ao movimento por
parte do governo da República Francesa, a potência colonizadora. No Brasil, a
realização só foi liberada em 1982 — coincidentemente, o ano em que o país do
norte da África completava 20 anos de independência. Os censores patrícios
ficaram nitidamente incomodados diante das torturas aplicadas pelos
paraquedistas do Coronel Mathieu (Martin) aos prisioneiros da FLN. O indefensável
banimento das nossas telas tinha motivos mais que evidentes. Logo no começo se
instala pronta identificação entre a situação da Argélia subjugada pelos
franceses e o Brasil sob o tacão da ditadura militar. As imagens dos créditos
de abertura são muito familiares aos brasileiros que testemunharam a escalada
do arbítrio e da violência institucionalizada, principalmente as cenas em que
inúmeros soldados desembarcam de caminhões para cercar e esquadrinhar a Casbah
em busca do líder guerrilheiro Ali La Pointe (Haggiag).
Apesar do
lançamento tardio nas telas brasileiras, A batalha de Argel guarda o frescor
da atualidade. Resiste bravamente à ação do tempo. Pontecorvo se vale de
linguagem crua, de permanente impacto, próxima do Neorrealismo que formou
cineastas como Rossellini, Visconti e De Sica: imagens cruas, registradas em
preto e branco por câmera nervosa, quase sempre na mão e em constante movimento,
na execução de tomadas curtas; filmagens nas ruas, nos mesmos locais em que
ocorreram os fatos dramatizados; atores não profissionais; utilização dramática
de rostos, expressões e gestos da gente do povo em cenas tão pungentes que
dispensam qualquer linha de diálogo. Os moradores de Argel reconstituem a
própria história que protagonizaram pouco antes. O produtor associado e ator
Yacef Saadi — intérprete de Djafar — revive seu próprio papel. Foi um dos
organizadores da resistência popular final, quando os moradores da Casbah tomaram
literalmente de assalto a parte europeia de Argel; uma multidão sem fim, como é
mostrado.
Pontecorvo
reencena os acontecimentos sob o ponto de vista do líder Ali La Pointe, mas não
se compromete com personagens individuais. Interessa-lhe, antes de tudo,
apreender a formação de um sangrento processo histórico para avaliar a
trajetória final de todo colonialismo. Se da parte argelina são enfocados os
líderes do movimento de libertação, não é sobre eles que recai a atenção do
diretor. O foco da mirada de Pontecorvo é a personalidade coletiva, a gente do
povo que sentiu na pele os efeitos da repressão e participou intensa e
ativamente das lutas pela independência, como no culminante momento da greve
geral e na sequência de encerramento. Se o filme possui um personagem
individual de pronto destacado, este é o Coronel Mathieu — herói da resistência
francesa ao nazismo e explícita personificação do espírito e mentalidade
colonialistas. Emite juízos implacáveis que resumem a pronta e brutal
intervenção francesa: "Os argelinos não querem os franceses e os franceses
não querem sair da Argélia. Quem quer que a Argélia continue francesa deve
aguentar as consequências" — afirma aos jornalistas, de pronto justificando
os métodos que aplicará nos interrogatórios. Ao entrar em cena, Mathieu diz a
que veio, em alto e bom som, ao comparar, sem meias palavras, a tênia e a FLN:
ambas só morrem quando suas cabeças são esmagadas.
O foco da mirada de A batalha de Argel é o povo, o agente coletivo |
O Coronel Mathieu (Jean Martin) comanda a repressão aos insurgentes |
Pontecorvo não
esconde a simpatia à causa argelina, mas evita a adesão incondicional e
acrítica. Mostra as atrocidades dos franceses, sem deixar de registrar os
excessos cometidos pelos guerrilheiros, principalmente quando a população
civil, europeia ou nativa, é a vítima das ações indiscriminadas e furiosas de
ambos os lados. Não foram apenas os homens do Coronel Mathieu que cometeram
atos brutais e covardes. Pontecorvo não deixa dúvidas quanto a isso, mas evita
o recurso fácil de responsabilizar diretamente qualquer um dos lados em pugna.
O grande responsável pelo curso que a situação tomou é evidente: o sistema
colonial e a vocação à exploração, por pretensos civilizados, de uma população
sufocada e percebida pelo viés simplificador e preconceituoso da barbárie. A
França, pioneira e campeã das causas da cidadania e dos direitos humanos, sai
do filme com a reputação seriamente abalada. Até hoje o desfecho da questão
argelina soa mal aos franceses, da mesma forma como o Regime de Vichy, o
colaboracionismo com o invasor nazista, a Indochina, o Caso Dreyffus e o
antissemitismo.
Pontecorvo evita
a todo custo recursos que lançam mão de didatismos, idealizações românticas e sentimentalismo.
As imagens são secas e cortantes, ásperas e ágeis, no tom de um tenso registro do
melhor jornalismo praticado no calor da hora. Os acontecimentos são encenados
na forma de uma jornada empolgante, angustiante e violenta. Os dados da ficção acrescentados
cumprem a função de humanizar a história. Ao mesmo tempo, conferem eletrizante
e absorvente unidade narrativa ao relato, próxima do thriller, que a todo instante prende a atenção.
Ali La Pointe (Haggiag) e o gendarme |
Ao lado das
imagens desempenha nítida função dramática a música composta por Enio Morricone
e Gillo Pontecorvo, conduzida por Bruno Nicola, principalmente nos momentos
finais, quando se ouve um constante matraquear que acompanha o ritmo da
movimentação dos becos e vielas, ladeiras e escadarias da Casbah.
A resistência popular em A batalha de Argel |
A batalha de
Argel recebeu o Leão de Ouro de São Marcos no Festival de Veneza de 1966.
No mesmo ano conquistou os prêmios da Crítica Internacional, do Circoli del
Cinema Cittá di Imola e o Cittá di Venezia.
História: Franco Solinas. Roteiro: Franco Solinas, Gillo Pontecorvo. Desenho de produção e decoração: Sergio Canevari. Montagem: Mario Serandrei, Mario Morra.
Direção de fotografia (preto e branco):
Marcello Gatti. Música: Enio
Morricone, Gillo Pontecorvo. Direção
Musical: Bruno Nicola. Diretor de
segunda unidade: Giuliano Montaldo. Assistente
de direção: Fernando Morandi. Costumes
e guarda-roupa: Giovanni Axerio (não creditado). Auxiliar de câmara: Moussa Haddad. Assistentes de montagem: Anna Maria Montanari, Lina Caterini. Chefe de trucagens: Maurizio Giustini. Diretor de produção: Sergio Merolle, Nour Eddine
Brahimi. Colaborador do diretor de produção: Noureddine Brahimi. Inspetores de produção: Rolando Pieri,
Lakhdar-Toumi Edini, Abdenour Essed, Mohamed Hadj Smaïn (não creditado). Produção executiva: Fred Baker (não
creditado). Secretário de produção e
continuidade: Alfredo di Santo. Produtor
associado: Yacef Saadi. Operador de
segunda unidade: Claudio Racca. Operador
de câmera: Silvano Mancini. Assistentes
de câmera: Belkacen Bazi, Ali Maroc, Alfredo Marchetti. Técnico de
som: Omar Bouksani. Sincronização:
Alberto Bartolomei. Assistente de
montagem: Linc Caterini. Maquiagem:
Maurizio Giustini. Penteados: Hamdi
Mohamed. Segundo assistente de direção:
Moussa Haddad. Coordenação de
construções: Tarcisio Diamanti (não creditado). Efeitos especiais: Aldo Gasparri (não creditado). Eletricista-chefe: Nazzareno
Belardinelli. Publicidade:
Margherita Autuori (Rossetti), Enrico Lucherini, Matteo Spinola. Administração da produção: Mario
Maestrelli. Construções: Tarcisio Diamanti.
Fotografia de cena: Apot Press-Roma,
Casbah Films-Algeri. Edição musical:
RCA italiana, CAM SPA‑Roma. Registro
musical: RCA italiana. Canção: Je m'en
fiche, de De Lucia, interpretada por Miranda Martino. Produção do trailer: Warmflash
Productions Ltd. Tempo de exibição:
135 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1987)
Eugenio,
ResponderExcluirNão sei porque, mas depois de ver A Grande Estrada Azul/57, que vi por aqui com o titulo O Profundo Mar Azul, com o Montand e do Pentecorvo, eu me afeiçoei a este nome de vez.
A Grande Estrada Azul é lindo, tem momentos de raras belezas plásticas, e recordo que o Montand morre descendo no azul infinito do mar com sangue saindo de suas narinas.
São cenas que minha mente adolescente não conseguiram jamais esquecer.
Mas o procuro na Internet e somente aparece com o titulo A Grande Estrada Azul. Bem...
Depois disso andei lendo sobre A Batalha de Argel. Mas não consegui ver não recordo de o porque.
Ainda depois, do mesmo diretor, li muito sobre a interpretação de Marlon Brando em Queimada. Este pior, foi proibido no Brasil, acho que da mesma forma que Batalha de Argel.
Ultimamente consegui ver os dois. Mas era legendado a Batalha de Argel e eu perdi muito das imagens do filme lendo as legendas, ficando o mesmo mutilado em minha mente.
Depois vi Queimada. Não captei lá estas coisas que falavam sobre o Brando, mas vá lá que ele, que é bom ator, sempre tem interpretações válidas. Mas, mesmo assim também não guardo muitas lembranças dele, pois o vi há uns tres, quatro anos. Mas o tenho comigo e vou reve-lo para falar dele melhor em outra oportunidade.
O que sei é que o Pentecorvo foi um diretor que merece todo o respeito porque foi um cineasta que somente trazia para seus filmes temas de muita profundidade. E sempre fortes demais.
Além do mais ele era um bom administrador dos seus trabalhos, porque costurava seus filmes com rara qualidade e mostrava sempre, sem curvas, a que se propunha, assim como o que o cinéfilo desejava e precisava conhecer.
Fico entusiasmado com suas palavras sobre o filme, mostrando claramente seu conteudo, utilizando as palavras adequadas para a tensão que o filme foi, assim como a maneira de Gillo captar para a tela suas cenas como ele as desejava mostrar.
Lamentavelmente precisaria rever a fita para falar melhor. E vou tentar fazer isso porque sua leitura me induziu a tomar esta decisão, além de A Batalha de Argel ser uma fita que deveria ser conhecida a fundo por todos amante do cinema.
E nós brasileiros que cruzamos por períodos de muita semelhança, seria positivo um estudo reflexivo neste filme para melhor conhecer o que por aqui também andou disseminando.
Mais um bom trabalho seu, amigo Eugenio, sempre em busca de raridades dentro da Arte, assim como fitas de qualidades e que muitos poucos conseguiram ver.
jurandir_lima@bol.com.br
Jurandir,
ExcluirPena que Pontecorvo fez poucos filmes. Era um talento e um portento. Uso em sala de aula, como recursos didáticos, tanto QUEIMADA e A BATALHA DE ARGEL. Fazem sucesso com os alunos e rendem bons e acalorados debates. Ambos são títulos que estão na minha linha de frente do cinema. Podendo, reveja-os com o carinho que merecem.
Abraços.
Eugenio,
ResponderExcluirGostei de ler isso que escreveu. Sinal potentissimo de que preciso, mais que nunca, rever A Batalha de Argel. Ele deve ser muito e muito melhor que eu imaginava, porque amo historia e ele, ao que noto, é uma aula da mesma.
jurandir_lima@bol.com.br
Exatamente, Jurandir. Os filmes de Pontecorvo são, a um só tempo, didáticos, históricos, políticos, sociológicos e, claro, puramente cinematográficos.
ExcluirAbraços.