O sóbrio e corajoso diretor Francesco Rosi não foi feliz
em seus últimos trabalhos. A falta de inspiração se instalou em Carmen
(1984) e não mais o abandonou. Completamente desastrosa foi sua incursão pelo
universo de Gabriel García Márquez na adaptação de Crônica de uma morte anunciada
(Crónica
de una muerte anunciada), um dos livros mais simples e despretensiosos
do escritor colombiano. Em aproximadas 150 páginas, ironia e tragédia se unem no
desenrolar de uma trama de amor, sangue e vingança. O leitor atento percebe de
imediato os aspectos cinematográficos do texto. Parece que foi escrito
diretamente para o cinema. Por isso, causa espécie o malogro da adaptação a
cargo de Rosi em parceria com Tonino Guerra. O elenco também não ajuda. Nem a
autenticidade da cor local — facilitada pelas filmagens em locações
latino-americanas — conseguiu dar alguma relevância à empreitada. A apreciação a
seguir é de 1993.
Crônica de uma morte
anunciada
Chronique d'une mort annoncée/Cronaca di una morte
annunciata/Crónica de una muerte anunciada
Direção:
Francesco Rosi
Produção:
Yves
Gasser, Francis Von Buren
Italmedia Film, Soprofilm-Les Films
Ariene, France 3 Cinéma, Soprofilms, FOCINE, RAI 2
Colômbia, Itália, França — 1987
Elenco:
Rupert Everett, Ornella Muti, Gian
Maria Volonté, Irene Papas, Lucia Bose, Anthony Delon, Alain Cuny, Sergi Mateu,
Carlos Miranda, Rogerio Miranda, Carolina Lang, Carolina Rosi, Silverio Blasi,
Vicky Hernández, Mariela Rivas, Yolanda García, Matilde Suescun, Gabriel Pazos,
Isabel de León, Denis Julio, Carlos Varela, Pablo Soler, Maritza de Ávila,
Nelson Pineros, Dora Isquierdo, Lina Botero, Divo Cavicchioli, César Fernández,
Arquimedes Erazo, Bienvenida Chamorro, Carmecita De Rizo, Bill Moore, Leonor
Gonzáles, Edgardo Román, Lucy Martínez, António de la Vega, Regulo Ahumada,
María Elena Castro.
O diretor Francesco Rosi |
Um time de
craques do cinema italiano, liderado pelo diretor Francesco Rosi — parceiro de
Tonino Guerra na elaboração do roteiro —, perdeu-se feio na América Latina nesta
risível adaptação de Crônica de uma morte anunciada,
romance de Gabriel García Márquez. Rosi — dono de uma das mais sólidas e
engajadas filmografias do pós-guerra, com carreira consolidada, até o momento,
em 14 títulos ao longo de 40 anos — cometeu aqui o seu pior trabalho. Conseguiu
ser mais enfadonho que em Carmen (1984) — fracassada
transposição ao cinema da obra de Prosper Mérimée.
Um fracassado empreendimento cinematográfico do diretor Francesco Rosi e do roteirista Tonino Guerra |
A narrativa cinematográfica é organizada em torno das memórias de Cristo Bedoya, interpretado na maturidade por Gian Marian Volonté |
A latinidade de Rosi
não é a mesma de Márquez. Entre Itália e Colômbia há mais que um oceano. O
cineasta, em sua percepção europeia, não estava, mesmo, credenciado a transformar
em filme a crônica de honra, sangue e vingança esquematizada em precisas e
sucintas linhas pelo autor. Os intérpretes ficaram perdidos na tropical paisagem
do continente Sul Americano, reduzido a um acidente geográfico desprovido da
específica singularidade, principalmente a cultural. Crônica de uma morte anunciada
— o filme — é um empreendimento para regalo de turistas apressados e
distraídos. Consegue, quando muito, privilegiar os aspectos folclóricos de uma
terra ensolarada, quente e musical. Fornece visão deformada de um mundo
reduzido, com sua gente, a mero pano de fundo de uma história de vingança. O
roteiro não soube sequer aproveitar as potencialidades cinedramatúrgicas do
livro, que se apresenta decupado até para quem desconhece os ofícios do fazer
cinema. Outra infelicidade foi a escolha do elenco, especialmente os nomes
principais. Apresentam fenótipos excessivamente europeus para compor
personagens latinoamericanos. Também falhou a direção de atores. Com exceção de
Gian Maria Volonté — o Cristo Bedoya maduro (Mateu, quando jovem) — e Irene Papas —
a mãe da desonrada Angela Vicario (Muti) —, todo o resto representa muito mal,
especialmente Rupert Everett no papel de Bayardo San Roman.
Cristo Bedoya (Gian Maria Volonté) na expiação de circunstâncias de um passado de 25 anos |
Depois de 25 anos
ausente, o Dr. Cristo Bedoya regressa à cidade natal para assumir a direção de
um hospital. Sua memória fervilha. Passado tanto tempo, não expiou a culpa por
não ter evitado a morte do amigo Santiago Nasar (Delon). À
localidade chegou, no tempo rememorado, o rico forasteiro Bayardo San Roman.
Além de impressionar a todos pela excessiva generosidade, caiu de amores por
Angela Vicario, a quem desposa. Mas o matrimônio resulta em tragédia. Bayardo
descobre, no leito nupcial, que a mulher não é virgem. Devolve-a à casa paterna.
A desonra mexe com Pedro (Carlos Miranda) e Pablo (Rogerio Miranda), irmãos gêmeos
de Angela. Forçam-na a revelar o nome do homem que ultrajou a família. Ela
acusa Santiago Nasar — o último a saber dos fatos.
Angela Vicario (Ornela Muti), o pivô da tragédia |
Daí em diante,
ironia e tragédia se misturam no desenrolar da trama. A anulação do casamento vem
a público. O comentário é geral. Todos também sabem o nome do suposto culpado.
Porém, não há quem consiga preveni-lo do risco que corre. Os desencontros se
sucedem enquanto Nasar caminha desavisado ao encontro da morte certa.
Os irmãos Pedro e Pablo (Carlos Miranda e Rogério Miranda) acertam as contas com Santiago Nasar (Anthony Delon) |
Os gêmeos Pedro e Pablo (Carlos Miranda e Rogerio Miranda) |
Esperava-se
infinitamente mais dessa empreitada dispendiosa — 12 milhões de dólares vindos
somente dos produtores franceses — inteiramente rodada na Colômbia, em regime
de grande produção fotografada em Supertechniscope com equipamentos trazidos da
Europa. A produção chegou ao requinte de construir integralmente, em tamanho
real, imenso barco de transporte fluvial. Todos os esforços resultaram inúteis.
Crônica
de uma morte anunciada — o filme — é apenas um empreendimento à deriva.
Adernou nas águas à margem das letras que lhe deram origem.
As bodas de trágicas consequências de Bayardo San Roman (Rubert Everett) com Angela Vicario (Ornela Muti) |
Figurinos: Enrico Sabbatini. Roteiro: Francesco Rosi, Tonino Guerra, com base no romance Crônica
de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez. Direção de fotografia (cores, Supertechniscope): Pasqualino De
Santis. Montagem: Ruggero
Mastroianni. Música: Piero Piccioni.
Desenho de produção: Andrea Crisanti.
Produção associada: Xavier Gélin
(França), Felipe López Caballero (Colômbia). Assistentes de produção: James Ordonez, Felipe Aljure. Produção executiva: Jean-José Richer
(França). Produção de elenco: Gianni
Arduini. Maquiagem: Walter Cossu,
Federico Laurenti, Giuliano Laurenti, Flore Marina Sandoval, Maurizio Silvi. Gerente de unidade de pós-produção: Gerald
Morin. Gerente de unidade: Luciano
Pecoraro. Gerentes de produção de
tomadas: Paolo Piria, Christine Renaud. Primeiros assistentes de direção: Carlo Arduini, Gianni Arduini, Salvatore
Basile, Carlo Lastricati. Segundo
assistente de direção: Eric Dionysius. Assistente
de direção: Claudia Gomez. Ruídos de
sala: Italo Cameracanna. Edição de
efeitos sonoros: Italo Cameracanna, Daniele Quadroli. Operador de câmera: Bernard Chaumeil. Som: Pierre Gamet. Edição de
som: Gérard Hardy. Operador de foco:
Roberto De Nigris. Produção de elenco:
Enrico Marrari (Itália/não creditado). Assistente
de figurinos: Giovanni Viti. Engenheiro
musical: Greg Fulginiti. Continuidade:
Rachel Griffiths. Dublagem da versão
original: Tiziana Lattuca. Auditoria
da produção: Roberto Penna. Tempo de
exibição: 107 minutos.
(José Eugenio Guimarães, 1993)
É.
ResponderExcluirÉ necessário, ao menos, alguma sensibilidade para se envolver numa obra e recria-la com imagens o que foi transcrito em palavras.
Não conheço a fita, porém Carmem eu já havia visto e não gostara também, colocando toda credibilidade no editor desta postagem, por conhecer sua qualidade como homem de cinema e por sua sensibilidade a bons espetáculos.
Porém, talvez o Rosi não carregue apenas sozinho a culpa da má confecção de Cronica... Numa produção existem várias mãos a trabalhar em prol dela. Porém, cabe à voz principal, que é o diretor, picotar aqui e ali, aderir algo aqui e ali, se inteirar completamente do que quer fazer e, no fim, realizar um trabalho que mereça alguma dignidade.
E me parece que não fez isso ou nada disso. O que não é um fato único, dado em vista que todo bom diretor um dia toma uma porrada e seu projeto viaja esgoto abaixo.
jurandir_lima@bol.com.br
Olá, Jurandir;
ExcluirDe fato, não dá para debitar toda a culpa pelo fracasso de CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA sobre o diretor. Trata-se de uma grande produção envolvendo suportes, principalmente capitais, de três países. Não é uma realização pessoal, como as que fizeram as glórias do diretor, quais O CASO MATTEI, O BANDIDO GIULIANO, MÃOS SOBRE A CIDADE, TRÊS IRMÃOS... Interesses mais poderosos falaram mais alto e deu no que deu.
O triste é saber que esse diretor essencial do grande cinema italiano dos anos 60 e 70 terminou os seus dias dando conta de filmes injustificáveis para o seu talento. Mas são coisas do cinema e das armadilhas que ele prepara. Só podemos lamentar.
Um abraço.