domingo, 5 de julho de 2015

MEMÓRIAS DE INFÂNCIA LEVADAS AO CINEMA COM COR E SABOR: "A GLÓRIA DE MEU PAI"

O francês Yves Robert realizou um dos melhores filmes sobre a infância: A guerra dos botões (La guerre des boutons, 1962). Retornou ao tema em 1990, com A glória de meu pai (La gloire de mon père) e O castelo de minha mãe (Le château de ma mère), traduções cinematográficas de Souvenirs d’enfance — as memórias de criança do escritor e cineasta Marcel Pagnol. O próprio autor pretendia levá-las às telas, mas foi impedido pelo falecimento. Coube ao amigo Yves Robert dar conta do recado. A glória de meu pai corresponde ao primeiro volume das lembranças de Pagnol. Ambientado em sua maior parte na Provença, durante as férias escolares, trata principalmente das relações do garoto Marcel (Julien Ciamaca) com o pai Joseph (Philippe Caubère), cioso e respeitável professor de escola primária. A narrativa, situada nos primeiros anos do século 20, contém as cores e os sabores das melhores crônicas de época. Despretensioso e despojado em sua concepção, o filme é raro exemplo de um gênero que pode ser chamado de 'cinema da felicidade'. A apreciação a seguir é de 1994.






A glória de meu pai
La gloire de mon père

Direção:
Yves Robert
Produção:
Alain Poiré
Gaumont, Les Productions de la Guéville, TF1 Films Production, Centre National de la Cinématographie
França — 1990
Elenco:
Philippe Caubere, Nathalie Roussel, Didier Pain, Julien Ciamaca, Therese Liotard, Victorien Delamare, Joris Molinas, Benoît Martin, Paul Crauchet, Pierre Maguelon, Michel Modo, Jean Rougerie, Jean-Pierre Darras, Victor Garrivier, Raoul Curet, Annick Danis, Louis Lalanne, Maxime Lombard, Michèle Loubet, René Loyon, Sébastien Grazzini, Benjamin Detriche e a não creditada Andrée Damant.



Com o megafone, o diretor Yes Robert durante as filmagens de A glória de meu pai


Por trás de A glória de meu pai está Yves Robert, diretor posicionado entre os melhores que imortalizaram aspectos de uma determinada infância. É o responsável pelo encantador clássico A guerra dos botões (La guerre des boutons, 1961). Mas o filme em apreciação também tem na retaguarda — antes do realizador — o dramaturgo, escritor cineasta e membro da Academia Francesa Marcel Pagnol (1895-1974). Suas obras em literatura somam cerca de 20 títulos. Conheço Marius (1929), Topaze (1930), Fanny (1932) e L'eau des collines (1964). Também marcaram época os filmes que dirigiu: 18 títulos revestidos, em geral, pela espontaneidade da prosa de forte apelo popular e por uma visão de mundo assumidamente realista. Destacam-se: Jofroi (1934), Angèle (1934), César (1936), Regain (1937), Le Schpountz (1938), A mulher do padeiro (La femme du boulanger, 1938), Merlusse (1938), La fille du puisatier (1940), Topaze (1951), Manon des sources (1952) e Les lettres de mon moulin (1954). Apenas A mulher do padeiro mereceu amplo conhecimento dos brasileiros. Condenado a breve período de ostracismo após a Segunda Guerra Mundial, Pagnol e seus filmes foram redescobertos pela Nouvelle Vague. Atualmente são reconhecidos como precursores do Neorrealismo Italiano.


A glória de meu pai e seu “irmão gêmeo”, O castelo de minha mãe (Le château de ma mère, 1990), também de Yves Robert, são baseados em Souvenirs d’enfance — as memórias de criança de Marcel Pagnol, escritas em 1957. Tratam principalmente das férias escolares passadas com a família na rural e montanhosa Provença, sul da França. A glória de meu pai corresponde ao primeiro volume dessas lembranças carregadas de afetividade. Era pretensão do autor levar pessoalmente a obra à tela. Foi impedido pelo falecimento. Ficou a cargo do amigo Yves Robert prosseguir com a tarefa. Segundo consta, fez isso com grande respeito ao original.


O dramaturgo, escritor e cineasta Marcel Pagnol


Livro e filme estão apoiados em narrativas episódicas, de caráter anedótico, em acordo com as lembranças picotadas de um adulto, recuperadas muito tempo após os anos "felizes e inocentes" da infância — ao menos como adianta Pagnol na transposição de Robert. As evocações surgem e ganham sentido na forma de pequenos casos cristalizados pela afetividade: cenas do convívio familiar, das atividades paternas, do envolvimento com parentes próximos, das descobertas, de algumas aventuras e desventuras, das viagens que traziam o gosto da liberdade e das novidades. Há muito carinho e afeto na recuperação do tempo por Pagnol via Robert. Mas A glória do meu pai, a partir do ponto de vista das telas, jamais se perde em sentimentalismo excessivo. A pieguice foi convenientemente afastada, o que serve para comprovar o frescor do original e a inspiração do diretor. Há uma mistura muito bem dosada do caricato com a ironia, sem esquecer a atenção dedicada pela transposição aos personagens. Predominam o lirismo, a calma e o encantamento. As cores e as ambientações são primaveris. Remetem à época particular de uma criança crescendo em estado de graça e enlaçada aos seus. Não é uma história que pode ser generalizada e compreendida como representativa de toda a infância. Outras podem ser tão idílicas quanto. Mas deve ficar claro: A glória de meu pai trata especificamente da infância de Marcel Pagnol. A Provença aqui retratada remete a um espaço e tempo míticos, nos quais reinam a ordem da felicidade, sem esquecer os dissabores que fazem parte de todas as contingências que envolvem o crescimento.


Portanto, trata-se de outra Provença. Apesar de terna, é certamente tão real como o lugar retratado por Pagnol em tons acentuadamente mais dramáticos, com as ênfases da crueldade e da mesquinharia, na novela L'eau des collines, levada pessoalmente às telas em Manon des sources (1952). Quatro anos antes de o autor ser retomado por Yves Robert, Claude Berri adaptou o texto integral e legou aos cinemas Jean de Florette (Jean de Florette, 1986) e seu prolongamento em A vingança de Manon (Manon des sources, 1986).


A família de Marcel (Julien Ciamaca), o segundo a partir da direita


Marcel Pagnol marca presença de duas maneiras em A glória de meu pai. De início e durante o desenrolar da história é a voz off do narrador Jean-Pierre Darras. Por ela, o autor adulto revê o passado e a própria infância nas interpretações de Benoît Martin e Julien Ciamaca. O primeiro é o petiz assumidamente precoce que assombra a todos com sua esperteza e perspicácia. Aprende a ler por conta própria, aos quatro anos, por exemplo. O segundo é o Marcel mais presente na narrativa, aos 11 anos, redefinindo valores e pesando o lugar que ocupa no mundo em que foi criado, preenchido de significados principalmente pelo pai Joseph (Caubere), cioso e perspicaz professor de escola primária em Marselha. Calígrafo como poucos, racional, agnóstico, republicano, irretocável em seus valores e despido de falhas segundo os olhos do filho, Joseph é o típico indivíduo ilustrado de final do século 19. Acredita acima de tudo na ciência e na redenção da humanidade pelo progresso. Segue-se a mãe, a bela costureira Agustine (Roussel), doce, gentil, inocente e prática conforme o modelo de virtude feminina do período, sempre preocupada com o rebento e suas escolhas. Segundo Marcel, em sua idealização infantil da vida, ela nasceu no mesmo dia que ele; ambos possuem a mesma idade. Também há a sempre disposta Tia Rose (Liotard), irmã de Augustine e braço direito desta na condução dos assuntos domésticos, ainda mais quando do nascimento de Marcel e seu impertinente irmão caçula Paul (Delamare). O quadro das afetividades familiares é completado pelo bonachão e jovial Jules (Pain), funcionário público assumidamente católico, por isso, quase sempre em conflito com o positivista e republicano Joseph. Será guindado ao status de tio dos garotos devido ao seu casamento com Rose.


A glória de meu pai recebeu no Festival de Cinema de Seattle, 1991, o Golden Space Needle de Melhor Filme juntamente com O castelo de minha mãe. Ainda nos Estados Unidos, no mesmo ano, fez jus ao prêmio do National Board Review como Melhor Realização Estrangeira.


Marcel (Julien Ciamaca) e Joseph (Philippe Caubere)

  
O centro da narrativa, como antecipa o título, é o olhar devotado por Marcel à figura paterna. Joseph se apresenta como emblema da perfeição. Suas qualidades são ainda mais acentuadas quando comparado ao "fanfarrão" tio Jules. As férias na Provença possibilitam ao filho a oportunidade de conhecer o genitor em profundidade, principalmente do ponto de vista prático. Ele é uma sumidade no plano teórico. Porém, é totalmente desajeitado nas relações com o mundo empírico. Por isso, o menino toma para si a missão de salvaguardar a honra paterna, ainda mais do que poderá ser uma provável humilhação da parte do mais sagaz, preparado e experiente Tio Jules.


Marcel  (Julien Ciamaca) entre o Tio Jules (Didier Pain) - à esquerda - e o pai Joseph (Philippe Caubere)


Tais acontecimentos se desenrolam por volta de 1906. A pastoral e ensolarada Provença será palco de uma aventura em tom menor que possibilita o rito de passagem do inocente Marcel ao status de jovem melhor conhecedor das pessoas, situações e coisas em seu entorno. Ao fim da idílica temporada, o personagem aliviado pôde enfim reconhecer que seu poderoso pai é tão somente um homem comum, apesar da aparência pedante advinda do saber professoral e da formação científica. Mesmo assim, com a altura do pedestal consideravelmente reduzida, as razões para dele continuar se orgulhando no plano da normalidade é que deixarão marcas para o resto da vida.


A grande chance de Marcel — consequentemente do pai, que assim terá a glória do título — é propiciada por uma caçada às perdizes ao longo de todo um dia. O garoto presencia os preparativos do "grande evento". Teme por uma "derrota" do pai, visivelmente despreparado, para o tio Jules. Secretamente, resolve tomar parte da expedição, nem que seja para trapacear em favor da honra paterna. Ao possibilitar a glória de Joseph, Marcel também amplia seu saber ao conhecer acidentalmente Lili des Bellons (Molinas) — garoto provençal experiente em natureza e caçadas. É o contraponto perfeito para o menino da cidade, educado segundo a percepção burguesa do mundo. Nasce desse encontro uma amizade essencial para a vida, que confere às férias o real sabor de outro tempo, o do aprendizado dentro de limites diferenciados, não exclusivamente familiares. Emerge também uma certa amargura, pois o período dessa nova cumplicidade logo chegará ao fim com o término das férias e o consequente retorno à vida ordenada da cidade. É como se o tempo dedicado à celebração da alegria de viver encontrasse um melancólico termo e prenunciasse a passagem a uma fase mais madura da existência. Deixa no menino — também no espectador — a sensação estranha de que da estação primaveril irrompeu não o verão, mas o outono, época mais afinada com a introspecção.


 Joseph (Philippe Caubere) busca a sua "glória" 

Lili des Bellons (Joris Molinas) e Marcel (Julien Ciamaca)

  
Posicionar-se frente a uma realização como A glória de meu pai é um prazer, ainda mais para cinéfilos habituados às narrativas pausadas, carregadas de sentido, com tempo para absorver o frescor das imagens e as verdades dos personagens. É parte de um cinema que se perdeu, graças ao bombardeio constante e massivo das produções que se contentam com tomadas de visualização rápida, que mal se fixam na retina, e dos bombásticos efeitos especiais que tomam o lugar do próprio filme. O trabalho de Robert não busca a emoção do espectador com reviravoltas, suspenses e perigos, mas pelo talento de contar algo que pode ser apreendido na normalidade do tempo em lenta fluidez, por isso, assumidamente humano, preenchido de pausas para se ouvir e observar, estruturado numa sucessão de pequenos episódios revestidos de colorido específico. Predomina algo como uma saudável harmonia na descrição, a ponto de dispensar as explicações. Os significados são diretamente captados pelos sentidos. Apesar das diferenças que podem haver entre a infância específica de Marcel e as demais, sempre há elementos identificadores que nos conduzem a um tempo especificamente nosso, no qual também sentíamos, quando crianças, aqueles momentos plenos de significação dos quais se tirava algum aprendizado. Mesmo sendo outros os tempos e lugares, também tivemos pomares, parentes, viagens, amigos caros, cheiros e gostos especiais. Então, há de todo modo uma certa universalidade nas sensações transmitidas pela infância de Marcel na França de ares míticos na transição do século 19 ao 20, período assombrado por tantos inventos e descobertas decorrentes da ciência.


Marcel (Julien Ciamaca) com o amigo provençal Lili des Bellons (Joris Molinas)

  
É um filme de celebração do viver, em tudo o que reveste esse ato: há amor, alegria, tristezas, desconfianças, descobertas, dúvidas, decepções. Mas toda a narrativa é conduzida com leveza e bom humor, propiciando a emissão de sorrisos discretos mas francos. A graça vem das pequenas observações, como o pavor que certamente os mais letrados experimentaram com a emergência de um mundo microscópico — também povoado de seres vivos, alguns perigosos —, mas que sempre esteve presente ao longo de toda a história humana. Agora — com essa realidade invisível ao olho desarmado tornada palpável — se ampliaram os motivos para alimentar os pavores do cotidiano. Como não achar graça também da sensação de estranhamento e desconforto de Marcel ao ser confrontado pela primeira vez a uma garota? Comenta o narrador: "Até então eu não tivera contato algum com as mulheres, apenas com mamãe e tia Rose, que não eram exatamente mulheres, mas, sim, mamãe e tia Rose".


O desenvolvimento é suave. Não há atropelos na condução de A glória do meu pai. Acima de tudo, destacam-se os personagens, tão genuínos. Transmitem verdades no que são e afirmam. Apesar do aspecto anedótico, adultos e crianças se comportam como tais — algo tão raro no cinema atual, quando parece não haver clara distinção entre faixas etárias.


Marcel (Julien Ciamaca)


Outros elementos contribuem ao sentido da plena evocação de Pagnol por Yves Robert. De início, há o roteiro de Jéôome Tonnerre, Louis Nucéra e do próprio diretor. Conjuga tempo e espaço à perfeição. Apresenta personagens bem desenhados e contextualizados. O prazer suscitado por A glória de meu pai é o mesmo de acompanhar uma crônica contemporânea da época em que foi escrita. O filme, de final do século 20, transmite a sensação de captar sem falsidades o que teriam sido os primeiros momentos, de transição, dessa centúria. Foram traduzidos em imagens com o sabor do melhor romance, daqueles que são lidos numa só tacada.


Vladimir Cosma não compôs simplesmente a música. Sua peça é um comentário, tão bem ajustado às cenas, complementando-as no que carregam de evocação. A direção de fotografia de Robert Alazraki, Christophe Beaucarne, Eric Vallée e Paco Wiser transmite a sensação de se absorver, dependendo do momento, uma poesia ou crônica em movimento, graças ao compromisso com a fidelidade no esforço de captação de tempo e lugar, cada qual perfeitamente ajustado um ao outro. As cenas da caçada, do jogo de bocha, do romance no parque entre Rose e Jules, as montanhas da Provença, os trajes, até a corrida do padre (Garrivier) em direção ao ônibus, para entregar a Joseph a fotografia de sua glória, surgem aos nossos olhos impregnados de justa e sincera realidade.


O padre (Victor Garrivier) registra em fotografia a glória do positivista e anticlerical Joseph  (Philippe Caubere), abraçado ao filho Marcel  (Julien Ciamaca)

Joseph (Philippe Caubere) e Marcel (Julien Ciamaca)

  
A glória de meu pai é exemplo bem acabado da conjunção entre sétima arte e romance de época. Respira magnificamente a partir de fontes da literatura, com vagar, sensibilidade e tom menor, como poucas vezes se permitiu mostrar. É o cinema da felicidade. Deixa o espectador comovido, com vontade de revê-lo uma ou mais vezes, sempre com o sabor da primeira vez.


O diretor Yves Robert


Roteiro: Jéôome Tonnerre, Louis Nucéra, Yves Robert, a partir da novela de Marcel Pagnol. Direção de Fotografia (Eastmancolor): Robert Alazraki, Christophe Beaucarne, Eric Vallée, Paco Wiser. Montagem: Pierre Gillette. Música: Vladimir Cosma. Produção de elenco: Gérard Moulévrier. Desenho de produção: Jacques Dugied. Figurinos: Dominique Gay, Agnès Nègre. Maquiagem: Maryse Félix, Monique Huylebroeck. Penteados: Danielle Jacquillard, Jacqueline Stuffel. Gerentes de unidade de produção: Jacques Allaire, Bruno Azzi, Jean-Claude Cartier, Monique Colotte. Gerentes de produção: Guy Azzi, Marc Goldstaub. Assistentes de direção: Gilles Bannier, Luc Etienne, Daniel Ziskind. Primeiro assistente de direção: Jean-Claude Ventura. Assistente de contrarregra: François Borgeaud. Assistentes de decoração: Jean-Claude Bourdin, Martin Drescher, Alain Racine, Christian 'Coyotte' Portal. Camareiros: Chantal Giuliani. Edição de som: Monique André. Edição da combinação de sons: Gilbert Crozet. Mixagem sonora: Bernard Leroux, Claude Villand. Efeitos sonoros: Alain Lévy, Jérôme Lévy. Som: Alain Sempé, Olivier Villette. Ruídos de sala: Jacques Thomas-Gérard. Assistentes de câmera: André Atellian. Eletricista-chefe: Robert Beulens. Direção de fotografia da segunda unidade: Jean-César Chiabaut. Operador de câmera: Gilbert Duhalde. Fotografia de cena: Jérôme Prébois. Produção de elenco extra: Brigitte McKellar. Confecção de trajes: Dominique Roulance. Assistente de montagem: Michel Bouchot, Olivia Lumbroso, Gladys Piocelle. Assistente de continuidade: Nathalie Alquier. Continuidade: Lucette Andréi. Administração da produção: Colette Chevereau, Roger Pera. Assessoria de imprensa: Dominique Segall. Sistema de mixagem de som: Dolby. Tempo de exibição: 110 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1994)


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