domingo, 28 de junho de 2015

O WESTERN CREPUSCULAR DE BLAKE EDWARDS

Esta apreciação de Os dois indomáveis (Wild rovers, 1971), de Blake Edwards, é de 1975. Não sofreu alterações desde então, exceto algumas atualizações em notas de pé de página, alusivas a alguns nomes referenciados. O título é o único western da carreira do diretor, mais habituado às complexidades de personagens urbanos na contemporaneidade. Porém, saiu-se relativamente bem, apesar de não aproveitar todas as potencialidades sugeridas pelo bom roteiro que escreveu. Os dois indomáveis pertence à linha dos westerns crepusculares. Retrata o fim do Oeste bravio, do cowboy e do mito do indivíduo que sustentou as epopeias encenadas na fronteira ocidental dos Estados Unidos da América. A apreciação faz uma aproximação com o seminal Meu ódio será sua herança (The wild bunch, 1969), de Sam Peckinpah, inclusive porque o ator principal desse filme é o mesmo William Holden que protagoniza a realização de Edwards. As motivações, dores e desesperanças de Ross Bodine na encenação de 1971 são praticamente as mesmas que conduzem ao trágico epílogo de Pike Bishop e seus camaradas no testamento impresso a ferro e fogo por 'Bloody Sam' dois anos antes. Mas enquanto a amarga balada de Meu ódio será sua herança adquire tonalidades de exasperante tragédia, o lamento sussurrado de Edwards descuida da ênfase na descrição do fim de um espaço e tempo humanamente concebidos.






Os dois indomáveis
Wild rovers

Direção:
Blake Edwards
Produção:
Blake Edwards, Ken Wales
Metro-Goldwyn-Mayer, Geoffrey Productions, Inc. Productions
EUA — 1971
Elenco:
William Holden, Ryan O'Neal, Karl Malden, Lynn Carlin, Tom Skerritt, Joe Don Baker, James Olson, Leora Dana, Moses Gunn, Victor French, Rachel Roberts, Sam Gilman, Charles Gray, William Bryant, Jack Garner, Caitlin Wyles, Mary Jackson, William Lucking, Ed Bakey, Ted Gehring, Alan Carney, Ed Long, Lee DeBroux, Hal Lynch, Boyd "Red" Morgan, Bennie E. Dobbins, Bob Beck, Geoffrey Edwards, Studs Tanney, Bruno VeSota, Dick Crockett, Patrick Sullivan Burke e os não creditados Barbara Baldavin, Phyllis Douglas, Michael Haynes, Gloria Hill, Jay W. MacIntosh, Beatriz Monteil.



O diretor Blake Edwards



"O western é o cinema americano por excelência". No presente, porém, essa emblemática definição de André Bazin perde paulatinamente a razão de ser. O gênero que consagrou John Ford, Howard Hawks e Raoul Walsh entre os grandes diretores do cinema e serviu de campo às experimentações de baluartes como King Vidor, William Wellman, Delmer Daves, John Sturges, Anthony Mann, Henry King, Henry Hathaway e recentemente, Sam Peckinpah, está cada vez mais escasso em filmes. Hoje, os westerns são mais raros que os bisões e índios americanos do norte. Mas o gênero se recusa a morrer. De repente surge uma reação, vinda de onde menos se espera.


Depois de realizar comédias sofisticadas — Bonequinha de luxo (Breakfast at Tiffany’s, 1961), A Pantera Cor-de-Rosa (The Pink Panther, 1963); de "humor rasgado" — Anáguas a bordo (Operation Petticoat, 1959), Um tiro no escuro (A shot in the dark, 1964), A corrida do século (The great race, 1965), Um convidado bem trapalhão (The party, 1968); um soturno drama sobre o alcoolismo — Vício maldito (Days of wine and roses, 1963);  e interessante policial — Peter Gunn em ação (Gunn, 1967) —, Blake Edwards surpreende: invade a pradaria, instala-se na sacrossanta paisagem de Monument Valley imortalizada por John Ford, apoia-se em roteiro original de sua autoria e extrai Os dois indomáveis — amargo western crepuscular.


John Ford está morto[1]; Raul Walsh e Howard Hawks, aposentados[2]. John Wayne, o intérprete-símbolo do western — ainda em atividade[3] — não consegue disfarçar a ação do tempo, claramente estampada no rosto e na silhueta. Provavelmente, nenhum desses deixará herdeiros. A situação é de desalento. Ao cinéfilo que cresceu respirando a poeira e tomando gosto pelos personagens do Oeste cinematográfico só resta a conformação. Assim, deve ser saudada a iniciativa de Blake Edwards. Seu único western é frustrante. Mas nesse tempo de seca e vacas magras é melhor que nada.




Acima e abaixo: Frank Post (Ryan O'Neal), companheiro e inspiração para o amargurado Ross Bodine (William Holden)


William Holden — intérprete do desesperançado Pike Bishop em Meu ódio será sua herança (Wild bunch, 1969), de Sam Peckinpah — entra em Os dois indomáveis na pele do sem futuro Ross Bodine. Pike e Ross se movimentam em tempo de plena integração do Oeste aos Estados Unidos da América — quando os grandes espaços, abertos à iniciativa de pioneiros que chegavam solitários ou em grupo, perdem o poder de atração. Em outras palavras: fronteira fechada; terras "livres" cercadas e apropriadas por grandes empreendimentos de criação extensiva de gado. O landlord desloca o farmer; o pioneiro arruinado, sem munição para alimentar o mito do "indivíduo", assalaria-se como vaqueiro; as cidades, enquadradas ao império da lei, garantem tranquilidade à administração e reprodução ampliada do capital. Novas miragens são oferecidas pelo descuidado México. Para lá partem Pike Bishop e seu bando, em busca de sobrevida; e Ross Bodine, no rastro da imagem do rancho que lhe preenche os sonhos de juventude. Pike e Bodine, cowboys atropelados pela História, vivem o outono de suas existências e do mundo que lhes encheu de esperanças. Assistem, entre o pesar e a nostalgia, ao encerramento de uma época. O Oeste não lhes sorriu. Pike persegue o mito à frente de um grupo de celerados. Bodine afoga mágoas e frustrações de seus 50 anos sobrevivendo como vaqueiro empregado no R. Barr, grande estabelecimento pecuário do criador Walter Buckman (Malden). Estão fadados ao desaparecimento, não apenas físico, mas, principalmente, simbólico.



O despótico pecuarista Walter Buckman (Karl Malden)


Ross Bodine (William Holden)

Os dois indomáveis localiza a ação em 1880, na região compreendida pelos estados de Montana, Utah e Wyoming. Ross Bodine busca o rompimento com a idade estreitando laços de amizade com o colega Frank Post (O' Neal), 25 anos mais moço. A estúpida morte do companheiro Barney Drago os obriga a repensar as trajetórias vividas. Toda uma existência dedicada ao trabalho não permitiu ao companheiro morto a construção de nada sólido e duradouro. Terminou sozinho e pronto, como sempre viveu. Post questiona Ross: não seria hora de fazer alguma coisa por eles mesmos? Lança a ideia do assalto ao banco. Com o dinheiro poderiam concretizar os sonhos. Bodine não pensa duas vezes. Aceita praticamente sem discussões a proposta do companheiro. O plano é levado adiante com relativa facilidade. Problemático será atingir o México. Buckman ordena aos filhos Paul (Baker) e John (Skerritt) perseguição sem trégua aos ex-empregados. O que se assiste a seguir é uma corrida que se configura como prenúncio do fim dos mitos do indivíduo, do cowboy e do Oeste como sinônimo de liberdade. Post morre em consequência de ferimento à bala durante jogo de cartas em parada para descanso. Bodine prossegue, por pouco tempo. Alcançado pelos perseguidores, encontra o fim quando estava emoldurado na paisagem de Monument Valley.


O plenipotenciário Walter Buckman (Karl Malden) e o filho Paul (Joe Don Baker)


Os irmãos  Paul (Joe Don Baker) e John (Tom Skerritt)

  
Meu ódio será sua herança é um filme expansivo que não titubeia em carregar na dor do personagem Pike Bishop. Os dois indomáveis possui formato diferente. Envolve Ross Bodine num clima igualmente trágico, mas de tranquila introspecção. Isso é percebido desde o começo, na fotografia à base de meios-tons de Philip Lathrop: a neblina que se ergue dos campos ao alvorecer, o lobo solitário que se esgueira na contraluz, os dois cavaleiros envolvidos no lusco-fusco da aurora, a discreta iluminação que preenche as atividades diárias dos vaqueiros. Ambos os filmes são baladas. Mas se em Meu ódio será sua herança a melancolia adquire contornos selvagens e exasperantes, em Os dois indomáveis possui o tom do lamento sussurrado. Sam Peckinpah, porém, não desperdiça material. Conta como poucos uma história envolvente, vigorosa e trágica. Blake Edwards aproveita a tragédia, mas não a potencialidade do rico roteiro que escreveu. Os temas do crepúsculo do Oeste e do cowboy passam batidos, sem a necessária ênfase. O talento de William Holden garante os melhores momentos, principalmente no relativo longo monólogo que pronuncia quando da morte de Frank Post. Graças à competência do ator, as jornadas e paradas de Ross e Frank são como estações de reflexão do viver e do morrer. Isto está bem explicitado na conversa no bar, antes da briga com os criadores de carneiros, e na parada anterior à morte de Frank, quando Ross goza de um momento de tranquilidade que contamina inclusive a prostituta Sada Billings (Carlin) que lhe faz companhia.


Introspecção: Ross Bodine (William Holden) e Sada Billings (Lynn Carlin)


Ross Bodine (William Holden) e Frank Post (Ryan O'Neal) capturam e domam um cavalo


Primorosa é a sequência em slow motion na pradaria nevada, quando Ross captura e doma o cavalo que daí em diante lhe servirá de montaria. Nessa passagem, o mito do cowboy e tudo o que representa em termos de jovialidade comparece por inteiro.


O diretor Blake Edwards com a esposa, a atriz Julie Andrews, em Monument Valley, durante as filmagens de Os dois indomáveis



  
Roteiro: Blake Edwards. Direção de segunda unidade: Dick Crockett. Direção de fotografia (Panavision 70mm, Metrocolor): Philip H. Lathrop. Fotografia de segunda unidade: Frank Stanley. Direção de arte: George W. Davis, Addison Hehr. Decoração: Robert R. Benton, Reg Allen. Figurinos: Jack Bear. Montagem: John F. Burnett. Música: Jerry Goldsmith. Gerente de unidade de produção: Ridgeway Callow. Assistente de direção: Alan Callow. Assistente de gerente de produção: Jack McEdward. Som: Bruce Wright, Harry W. Tetrick. Maquiagem: Tom Tuttle, William Turner (não creditado). Penteados: Chérie. Assistente para os produtores: Linda Friedman. Produção de elenco: Joseph D'Agosta (não creditado). Direção da segunda unidade: Dick Crockett. Segundo assistente de direção: William R. Poole (não creditado). Estagiário do Directors Guild of América: Lorin Bennett Salob (não creditado). Contrarregra (não creditada): Ed Mulay, Robert Murdock. Responsável por áreas verdes: Don Pringle (não creditado). Chefe de equipe da direção de arte: Rick Simpson (não creditado). Pintura: Frank Wesselhoff (não creditado). Operador de cabos: George Songer (não creditado). Operador de boom: James Utterback (não creditado). Efeitos especiais (não creditados): Earl McCoy, Charles Schulthies. Dublês (não creditados): Michael Haynes, Michael Masters, Ron Nix, Al Wyatt Sr. Assistentes de câmera (não creditados): Mel Anderson, Robert J. Banks, George Holt, Cliff King, Don Larson, Leo Monlon, Cliff Ralke. Iluminação (não creditada): Wilbert Bratton, Jim Porter, Norman Punter. Operador de câmera: Duke Callaghan (não creditado). Fotografia de cena: Eric Carpenter (não creditado). Segundo assistente de câmera: Ray De La Motte (não creditado). Gravação em vídeo: Don Howard (não creditado). Eletricista-chefe: George Lasher (não creditado). Operador geral: Lee Smith (não creditado). Fotografia especial de cena: Robert Willoughby (não creditado). Produção extra de elenco: Frank Kennedy (não creditado). Guarda-roupa (não creditado): Norman A. Burza, Elva Martien. Edição musical: William Saracino. Músicos (não creditados): Laurindo Almeida (violão), Robert Bain (violão), Larry Bunker (percussão), Carl Fortina (acordeón), Caesar Giovannini (piano), Artie Kane (piano), Malcolm McNab (trumpete), Richard Nash (trombone), Tommy Morgan (harmônica). Direção musical: Jerry Goldsmith (não creditado). Remixagem da trilha musical: Michael J. McDonald (não creditado). Orquestração: Arthur Morton (não creditado). Transportes: Lloyd Hanlon (não creditado). Publicidade: Peter Benoit (não creditado). Doma de animais: Hal Driscoll (não creditado). Continuidade: Marie Kenney (não creditada). Instrumentos de doma: Frank D. Lane (não creditado). Gerentes de locações (não creditados): John Morrison, Jack N. Young. Primeiros socorros: Jerry Parker (não creditado). Auditor de locações: Paul Roedl (não creditado). Cronometragem em locações: John Suhrada (não creditado). Serviços artísticos: Ed Villa (não creditado). Sistema de mixagem de som: Mono e stéreo em seis canais. Tempo de exibição: 136 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1975)




[1] Faleceu em 31 de agosto de 1973.
[2] Hawks faleceu em 26 de dezembro de 1977; Walsh, em 31 de dezembro de 1980. Nota inserida em 2015.
[3] O ator faleceu em 11 de junho de 1979. Nota inserida em 2015.

4 comentários:

  1. Eugenio,

    Li atentamente cada palavra de sua dissertação, atentei para cada detalhe do que citas, me liguei a qualquer nuance dita e, ainda assim, nada deste filme me veio à tona.

    Recorri então aos meus alfarrábios, na tentativa vã de meus miolos estarem me traindo.
    Mas não estão. Ele não consta de lugar algum de meus escritos, nem mesmo na lista de filmes do Holden que assisti.

    Em suma, não conheço esta película.

    Ela é de 1971 mas, nem assim eu a conheço, não a vi e jamais ouvi falar dela.
    Porque teria sido isso, principalmente com um faroeste, que é um gênero que farejo tudo à distancia?

    Não sei. Só sei que não o vi e que, de imediato, estarei à cata deste em todos os meus pontos de busca.

    jurandir_lima@bol.com.br

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    1. Jurandir;

      Espero que consiga ver "Os dois indomáveis", ainda que tardiamente. Geralmente esses filmes melhoram muito com o tempo, o que será bom. Fique de olho na programação do TCM, caso tenha esse canal em sua grade da TV por assinatura. Acredito que ele é, volta e meia, aí exibido. Pelo que sei, é comercializado no Brasil pelo selo DVD Califórnia, que não é uma empresa idônea, que prima pela qualidade do material embalado. Vai ver, é da DVD Califórnia a cópia malfadada que você adquiriu de "Chisum" e acabou jogando fora, de raiva.

      Boa sorte na busca.

      Grande abraço.

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  2. Hola cielo,a mi el cine del viejo Oeste me gusta mucho aunque las únicas referencias que tengo son de Clint Eastwood :))) La reseña me llena de gran profundidad y deseo de ver el filme... Me siguen gustando mucho las fotografías,todo muy bien,más que bien... Tu pluma extraordinaria y precisa,gracias por compartir,te mando besitos dulces y un gran abrazo...!!! :)

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    1. Muchas gracias por la apreciación y por el estímulo, minha querida Maria Del Socorro. Gracias también, principalmente, por las referencias elogiosas mi pluma. Va a ver, cuando estamos inspirados por bellos temas, como los retratados en esta película, los textos salen mejores. De hecho, es una película muy bonita. Espero que usted pueda, un día, verla. Creo que le gustará mucho.

      Besos, abrazos y saludos, querida.

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