Luiz Carlos Lacerda adaptou, em sua estreia no longa
metragem, o denso Mãos vazias, de 1938, título consagrador de Lúcio Cardoso como
romancista plenamente formado. O filme não é estritamente fiel ao original. Porém,
preserva a atmosfera de irrealidade, a introspecção, mais os estados de tensão
e inquietação que grassam numa comunidade conservadora, fortemente moralista,
prestes a se desagregar pela intervenção de um elemento externo. A realização
valoriza o silêncio e os planos longos. Os personagens parecem esmagados pelo peso
da ambientação. Nesse contexto de contenção, povoado por seres acanhados,
acuados e frustrados, irrompe Ida (Leila Diniz), espécie de anjo vingador e
libertador. É o último trabalho da atriz. Pereceu em decorrência de acidente
aéreo em 14 de junho de 1972, quando voltava da Austrália. Aí esteve, com
integrantes da equipe e do elenco, para apresentar Mãos vazias no Festival
Internacional do Filme de Adelaide, que a consagrou como Melhor Atriz. A
comoção provocada pelo precoce e inesperado falecimento de Leila suspendeu
todos os entraves internos à liberação do filme ao grande público, mesmo assim
com uma ressalva inibidora impressa no cartaz.
Mãos vazias
Direção:
Luiz Carlos Lacerda
Produção:
Jece Valadão, Luiz Carlos Lacerda e Ana Maria
Magalhães
Magnus Filmes, Ponto Filmes, Paraíso Filmes
Brasil — 1971
Elenco:
Leila Diniz, José Kléber, Arduíno Colasanti, Manfredo
Colasanti, Márcio de Castro, Hélio Fernando, Ana Maria Magalhães, Ana Maria
Miranda, Nildo Parente, Irene Stefânia, Hélio Braga, José Roberto Orosco,
Gabriel Archanjo, Márcio de Castro, Dora Ribeiro, Shirley Rocha, Eunice Espínola,
Sérgio, Daniella, Murilinho, Thamar.
Luiz Carlos Lacerda, roteirista e diretor de Mãos vazias |
Mãos vazias — primeiro longa dirigido por Luiz
Carlos Lacerda — ganhou triste notoriedade. Tornou-se, de certo modo, o
responsável pela morte da atriz principal, Leila Diniz, aos 27 anos. De início,
a apresentação da obra ao público quase não ocorreu. A Censura ameaçou interditá-la.
Caso isso não acontecesse, o produtor principal, Jece Valadão, alardeou que não
a lançaria em respeito à moral familiar. Tinha poderes para tanto. A Magnus
Filmes, de sua propriedade, era a única companhia regularizada envolvida na
realização. Embarcou no projeto com o único propósito de viabilizá-lo legal e
financeiramente — bancou os custos de laboratório, da pós-produção e os
salários de partes da equipe e do elenco. Essa colaboração — que por pouco não
se mostrou indevida — se materializou por intermediação da própria Leila Diniz.
Ela pessoalmente procurou Valadão — com quem trabalhou em Mineirinho vivo ou morto
(1967), de Aurélio Teixeira — e o convenceu a se associar à empreitada. A parte
restante do esforço produtivo se organizou informalmente, como cooperativa,
principalmente em torno da Paraíso Filmes fundada por Lacerda e Carlos Alberto
Diniz. Também foram essenciais os aportes do poeta e ator José Kleber. Influente
na cidade-locação de Paraty/RJ, conseguiu disponibilizar dois casarões que
serviram de cenários e hospedagem à equipe e aos atores, além de outros pontos fundamentais
à ambientação. Julio Romiti, personalidade ligada ao cinema, há muito
relacionada à família de Luiz Carlos Lacerda, viabilizou o empréstimo de uma
câmera de 35mm e os equipamentos de iluminação e captação sonora. Outra vez os
esforços de Leila foram vitais: vendeu o próprio automóvel, um fusca, para
levantar recursos ainda necessários. Além do mais, segundo o diretor, o empenho
e generosidade da atriz se manifestaram de outros modos: ela administrou
"nossas carências, minha aflição de estreante (...); e – sintomaticamente
– resolveu assumir o papel de mãe, engravidando durante a visita de seu
namorado Ruy Guerra às filmagens"[1].
Ida é interpretada por Leila Diniz |
Por sorte — ou azar, diriam os
supersticiosos no tocante a Leila — Mãos vazias chegou ao conhecimento
de Eric Williams, diretor do Festival Internacional do Filme — realizado
sucessivamente em Adelaide (Austrália) e Auckland (Nova Zelândia) —, que se
interessou em tê-lo na parte competitiva do certame. Diante disso, ficaria mal
qualquer impedimento, tanto por parte das obtusas autoridades federais como do
próprio Jece Valadão. Leila e outros participantes da realização viajaram para
a Austrália e colheram os melhores resultados em críticas positivas e, para
ela, o prêmio de Melhor Atriz. A nota trágica, que marcou para sempre o filme,
repercutiu em 14 de junho de 1972. O jato da Japan Airlines que a trazia de volta
ao Brasil explodiu sobre o espaço aéreo da Índia. A comoção nacional provocada
pela morte de Leila — que tanto se empenhou na viabilização de Mãos
vazias — suspendeu todos os entraves que internamente se apresentavam à sua
liberação ao público, ainda mais após a boa repercussão conseguida no festival de
Eric Williams. Mesmo assim, os cartazes foram impressos com uma ressalva
inibidora: "Este é um filme de arte. Deve ser assistido somente por
pessoas amantes do gênero".
Antes de se lançar à realização de Mãos
vazias, o estreante em longa metragem Luiz Carlos Lacerda acumulou larga
experiência em cinema.
Também gozava da amizade de Lúcio Cardoso — autor do romance
homônimo no qual se baseia o filme — e era profundo conhecedor de sua
literatura. Lacerda se familiarizou ao processo de realização cinematográfica
desde a casa paterna: é filho do atuante produtor dos anos 40 e 50 João Tinoco
de Freitas. Também fez assistência de direção em Onde a terra começa (1966),
de Ruy Santos; El justiceiro (1967), de Nelson Pereira dos Santos; Fome
de amor (1968), de Nelson Pereira dos Santos; Máscara da traição (1969),
de Roberto Pires; É Simonal (1970), de Domingos de Oliveira; Azyllo muito louco
(1970), de Nelson Pereira dos Santos; e Como era gostoso o meu francês
(1971), também de Nelson. Participou como diretor de produção do importante
documentário Panorama do cinema brasileiro (1968), de Jurandyr Passos
Noronha. Atuou em Possuída dos mil demônios (1970), de Carlos Frederico; dirigiu
os curtas Odóia 67 (1967) e Nelson filma (1971), espécie de making off de Como era gostoso o meu francês[2].
O romancista Lúcio Cardoso |
Ao parto de Mãos vazias foi imprescindível
o incentivo do sempre generoso e estimulador Nelson Pereira dos Santos. Luiz
Carlos Lacerda integrava a comunidade formada em torno da inspiração do diretor
de Vidas
secas (1963) desde que este elegeu Paraty, litoral sul do estado do Rio
Janeiro, para cenário de quatro de suas realizações: Fome de amor, Azyllo
muito louco, Como era gostoso o meu francês e o desconcertante
Quem
é Beta? (1972). O grupo nuclearmente constituído por Arduíno Colasanti,
Ana Maria Magalhães, Irene Stefânia, José Kléber e marginalmente por Leila
Diniz, estruturava-se, à sua maneira, como foco de resistência cultural e
existencial ao endurecimento da ditadura militar. Era partidário da liberdade
sexual e revolução alucinógena. Tanto desbunde escandalizou a esquerda ortodoxa
e os moralistas de direita, que tinham a turma na alça de mira, inclusive o
diretor. Nesse contexto, Nelson terminou as filmagens de Como era gostoso o meu francês.
Sabedor da vontade de Luiz Carlos Lacerda de se lançar à direção de longas,
presenteou-o com 10 latas de negativo e a recomendação para começar a filmar[3].
Parecendo atender a um ordenamento natural,
Lacerda optou por levar às telas algo do universo de velho conhecido Lúcio
Cardoso, autor lançado em 1934 com Maleita e que se firmou no cenário
literário brasileiro desde A luz do subsolo, de 1936. Ganhou feições
de romancista bem acabado em 1938, com Mãos vazias, e O desconhecido, de 1940.
Ao autor, além do mais, Lacerda se confessou endividado por sua formação
intelectual e preferências literárias. Também lembra que pouco antes de
falecer, em 1968, por consequência de um derrame que o inutilizou parcialmente
alguns anos antes, Cardoso manifestara desejo de ter vertidos para o cinema Mãos
vazias ou A professora Hilda, de 1946[4].
Coincidência ou não, as obras de
Lúcio Cardoso sempre atraíram a atenção do nosso cinema. O próprio autor nutria
vivo interesse pela forma de expressão das imagens em movimento. Foi , de
certo modo, um diretor frustrado, desde 1949, quando não conseguiu concluir o
próprio projeto de pessoalmente fazer A mulher de longe, adaptado de
roteiro seu. O material filmado, dado como desaparecido por mais de 60 anos, ressurgiu
em 2012 pelas mãos de Luiz Carlos Lacerda — como pagamento de um débito afetivo
— em formato de documentário. Foi lançado no circuito dos festivais de cinema
daquele ano[5].
Cardoso está entre os autores
brasileiros mais visitados por nossos cineastas. Desenvolveu amizade com
muitos. A parceria começou em 1948, com Almas adversas, roteiro seu dirigido
por Leo Marten. Em 1961, Paulo César Saraceni levou às telas Porto
das Caixas; voltaria ao universo de Lúcio Cardoso no curta O
enfeitiçado (1968) — espécie de cinebiografia do autor —, A
casa assassinada (1971) — extraído do livro A crônica da casa assassinada
(1959) — e O viajante (1999). Em 1978, Rui Santos verteu para o cinema o
romance O desconhecido.
Dentre os títulos que Cardoso
gostaria de ver filmados, Lacerda preferiu Mãos vazias por apresentar, em
relação a A professora Hilda, mais forte embasamento social[6].
Em linhas gerais, ambos os romances se assemelham graças ao pano de fundo que
serve à movimentação dos personagens: comunidades conservadoras, limitadas por
ranços tradicionais, lidam com a presença de uma forasteira à qual,
inicialmente, opõem resistência. Fruto desse intercâmbio são as mudanças
provocadas nos cenários — trágicas algumas. Igualmente, em ambos os romances,
os personagens se movem e administram suas ações inspirados por tensões
resultantes do cruzamento da racionalidade com a mais aberta visceralidade. Cultiva-se
um desejo de liberdade. Mas não há noções claras acerca do que isso significa,
inclusive por falta de conhecimento empírico no assunto. Toma-se a liberdade
como algo absoluto, bastante em si mesmo. No limite, ser livre passa a ser
compreendido como a eliminação pura e simples do outro, principalmente de quem surge
como agente limitador. Evidencia-se, acima de tudo, a impossibilidade de
autonomia e da ação responsável, pois consciências e comunidades alimentadas
por valores e preconceitos tão entranhados não permitem o surgimento de algo destacado
como individualidade, imediatamente transformado em diferente e ameaçador.
Ida (Leila Diniz) no conservador e intrigante cenário social de Vila Velha |
Como é comum nos romances de Lúcio
Cardoso, uma mulher tomada de insatisfação, em oposição ao patriarcado, ao
machismo, ao descaso e frivolidade de seus iguais, protagoniza a narrativa.
Toma para si a condução do processo, seja passivamente — apenas como expositora
de fatos e casos gerados em contexto no qual se percebe prisioneira — ou como
agente de transformação, exigindo para tanto, quase sempre, a intromissão da fúria
dos elementos, tanto os da natureza exterior aos indivíduos como aqueles
típicos de suas constituições: carne, sangue e vísceras, ainda mais quando as
situações e tensões esbarram em impedimentos morais e sociais. Há muito som e
fúria nos romances de Lúcio Cardoso, ainda que isso não tenha tradução em ações
expansivas. Explosões e rompantes são quase sempre contidos, porém não são
menos destruidores em seu alcance. Normalmente não fica pedra sobre pedra. Após
desencadeada, a ação transformadora é ininterrupta. Parece avançar desprovida
de sensos de direção ou racionalidade, como se a compreensão da liberdade
significasse apenas o desmantelamento geral de tudo o que se apresentava como
estruturador.
Mãos vazias, o filme, não é adaptação literal do
original de Lúcio Cardoso. Porém, de imediato, a fidelidade não estava nos
planos do diretor. O escritor é recuperado pelo clima de irrealidade e
permanente tensão/inquietação que perpassam os ambientes, modelam os estados de
alma e impulsionam os personagens à ação ou inanição. Tem-se a sensação de que
o estado de natureza a tudo domina. Logo no começo, o tom monocórdio do comentário
musical de Jaceguay Lins antecipa o que se verá. Ouve-se, em meio ao cenário
tomado de estagnação, algo semelhante ao ranger de um mecanismo prestes a se
exaurir. Lembra o som de um engenho decadente ou o onipresente eco de uma
lembrança que atormenta lugares e consciências. A narrativa avança sem pressa
desde as primeiras cenas. Porém, o ritmo é cortado, interrompido por instantes vazios e demoradas pausas. Os planos são longos. Sente-se o peso da ambientação. Tudo se
move com lentidão semelhante ao rio das proximidades. O curso d'água também se
mostra cansado, estagnado. É como se estivesse impedido de fluir. Os
personagens, quando se expressam, dão a impressão de dialogar com o público,
pois o campo de comunicação com os elementos do interior da cena se afiguram inexistentes;
ou se há, de nada adiantam.
Dois personagens logo tomam a
primazia da condução/apresentação dos eventos. O primeiro é o espaço geográfico:
a interiorana e assombrada cidade de Vila Velha na ambientação de Paraty. O
local entra em cena moldado como microcosmo alimentado de repressão e conservadorismo.
Mina a alma de seus habitantes, reduzindo-os a seres acanhados, frustrados,
acuados em seus desejos e temerosos de seus próximos. Cumpre-se o dizer de
Sartre: "O inferno são os outros". A cidade é uma entidade coletiva
que age em uníssono.
Vigia , coopta e dilacera aos poucos os moradores,
principalmente os ainda possuidores de reservas de autonomia e vitalidade. Estes,
logo percebidos como ameaças, são admoestados a entregar os pontos, às vezes pela
trilha do suicídio ou da loucura. Intrigas, maledicências e o vigiar constante
da vida alheia andam de braços dados com a moral religiosa e as muitas
carências que afloram nesse universo. Pichações de autoria desconhecida
infestam muros e paredes. Acusam os malfeitos de uns e outros; aumentam o clima
de intolerância. Chega-se ao ponto de proibir o fornecimento de giz às
professoras — que passam a lecionar sob severa vigia policial — e a
comercialização do produto.
Acuada pela insuportável pressão social, a jovem Maria comete suicídio |
O segundo personagem é Ida (Diniz), protagonista
e narradora da história. Suas falas descortinam o espaço físico e social a
partir de tempo e lugar não definidos. Vemo-la movimentando-se ao longo da
história, como se fosse a intérprete de si mesma ou de acontecimentos que
testemunhou e ajudou a desencadear, a partir de uma rememoração construída em
outro lugar, transcorridos alguns períodos após a década de 30. Todo o filme se
molda como álbum de recordações nem sempre bem definidas, que conecta momentos
e tempos dispersos sem o auxílio de uma linha de contínua coesão.
Leila Diniz, intérprete de Ida, a protagonista de Mãos vazias |
Ida é mineira, herdeira de família
tradicional e de posses, casada com o moralista Felipe (Kléber), ao qual se
submete. Luisinho é filho criança de ambos. Por determinação do marido deixam a
cidade em que viviam. Mudam-se para a ensolarada e assombrada Vila Velha. Felipe
sonha com posto de projeção no Banco do Brasil local e na reativação do engenho
estagnado da família. Planeja internar o filho em colégio de boa formação, no
Rio de Janeiro. Entretanto, dada a atmosfera local, os planos não se
materializam. Lembranças da infância, de um tempo mais promissor, atravessam a
narrativa ao som da exasperante trilha de Jaceguay Lins. Enquanto isso, os
recém-chegados se aclimatam à nova ambientação, principalmente pelas relações
de amizade logo desenvolvidas com um casal em crise: Ana (Magalhães) e Mário
(Arduíno Colasanti). Ele, médico, alimenta parte das intrigas que movimentam a
cidade, graças a um envolvimento homossexual.
A vicissitude conjugal de Ana e Mário,
somada à peculiaridade social de Vila Velha, aos poucos interfere e mina a
relação de Ida com Felipe. A cisão se instala definitivamente com a enfermidade
e morte de Luisinho. Depois de muitas noites de vigília na atenção ao garoto,
Ida desaba emocionalmente com a constatação do óbito. Alivia a tensão em cena
ousada, entregando-se sexualmente a Mário no leito onde jaz o corpo do filho. Cometida
a máxima transgressão, julga-se desimpedida para agir. O coroamento do luto se
dá ao abandonar o marido. Com as mãos livres (ou vazias) deixa a casa em
disparada, discretamente sorridente. Tenta a independência. Mas há a
cidadezinha que tudo ouve, vê e cerceia. Torna-se indispensável acertar contas
com este microcosmo social. A isto Ida se obriga, de forma a mais visceral e
desconcertante.
Elas atuam em Mãos vazias: Irene Stefânia (à direita, acima), Ana Maria Miranda e Ana Maria Magalhães (à esquerda). |
O farmacêutico de Vila Velha
(Parente) é a primeira vítima fatal da reconstrução da personagem. Ela o
assassina de forma aparentemente banal e gratuita. Porém, ele sabia da vida de
todos. Pouco antes de morrer admitiu: "Não há limite entre eu mesmo e
outras pessoas". A seguir, como se desse testemunho da impossibilidade da
individualidade, admite: "O pior sofrimento é permanecer à margem". Logo
após, Ida se acumplicia a Ana para dar cabo de outro sabedor de segredos:
Mário. O amante deste acompanhado de outras mulheres vitimadas pela moral
social se juntam à trama, o que fornece validade à observação sobre a
comunidade da parte de um dos personagens: “Todas as pessoas desta cidade são
idênticas. Umas completam as fraquezas e mentiras das outras. Não se perdoa
nenhuma saída individual. É como um gado que caminha para a morte, em silêncio”.
Consumado mais um ato de liberação sanguinolenta, o filme se encaminha para o
final. Apesar dos esforços do temeroso Felipe acerca dos julgamentos da moral
social, não consegue assegurar o retorno de Ida ao convívio doméstico. No
epílogo, assiste impotente a partida da esposa no barco de um marinheiro que ela
há pouco conheceu. Ida vai com sua ilusão de liberdade. Simbolicamente carrega
todas as suas culpas no enorme baú que guarda o corpo de Mário. O final, francamente
pessimista, aponta para a impossibilidade do viver pleno em qualquer tipo de
relacionamento, seja no social mais amplo ou no convívio matrimonial, ainda
mais quando estão cerceadas todas as possibilidades de fruição individual. Atesta
taxativamente uma fala final: “A gente só vai se ver livre do outro quando um
de nós morrer”. Ou segundo afirmação da emblemática figura da cartomante
(Stefânia), liberdade significa não ter culpa. Porém, como?
Nildo Parente (à esquerda) interpreta o farmacêutico; Arduíno Colasanti faz o médico Mário |
Em primeiro plano a mal afamada cartomante Irene (Irene Stefânia) |
Irene (Irene Stefânia) e Ida (Leila Diniz) |
Mãos vazias é indispensável, apesar de não ser
fácil assisti-lo, principalmente pelos espectadores de hoje, mal habituados à
introspecção, aos planos longos e ao silêncio. Há muitos momentos silenciosos durante
a narrativa, inclusive quando se ouve algo. Acima de tudo, é um filme contido.
Por isso, faz-se desafiador a quem a ele se entrega. Causa também estranhamento
saber que foi realizado por um diretor estreante, membro da juventude que
poderia facilmente ser tomada como alienada segundo as classificações dicotômicas
dos grupos antenados do começo dos anos 70.
A contenção do filme também tem
reflexos na interpretação de Leila Diniz. A atriz, geralmente tão solar, alegre,
voluntariosa e vibrante, sai-se maravilhosamente bem nos trajes reflexivos de
uma personagem em conflito consigo mesma, desafiadora do casamento sacrossanto
e da moral de um meio social altamente castrador. Causa até estranhamento a
ausência de sorrisos no semblante de Leila, ao menos na forma larga ao qual nos
habituou.
Disposta a deixar tudo e todos, Ida (Leila Diniz) firma relações com o marinheiro que levará de Vila Velha |
Em 1987, sob a pele da atriz Louise
Cardoso, Leila receberia belíssima homenagem em filme dirigido pelo mesmo Luiz
Carlos Lacerda: Leila Diniz.
Para finalizar, cabe ressaltar a
generosidade agradecida do diretor. Os diálogos, em alguns momentos, tomam a
liberdade da tecer referências às pessoas que lhe são caras. Diante da
possibilidade de se conseguir um empréstimo financeiro para Felipe reativar a
propriedade e o engenho da família, diz Mario: "Tenho um amigo influente,
o Nelson Pereira dos Santos... Se quiser, posso falar com ele". Mais
adiante, a atriz Maria Gladys também tem o nome mencionado afetivamente por uma
personagem.
Luiz Carlos Lacerda com o "padrinho" e incentivador Nelson Pereira dos Santos |
Roteiro: Luiz Carlos Lacerda, com base em novela homônima de Lúcio
Cardoso. Música: Jaceguay Lins. Direção de fotografia (Eastmancolor):
Rogério Noel. Montagem: Raymundo
Higino. Direção de arte e figurinos:
Mara Chaves. Som guia: Nelson Pereira
dos Santos Filho. Direção de produção:
Carlos Alberto Diniz. Produtores
associados: Nelson Pereira dos Santos, Júlio Romiti. Assistência de produção: Luiz Carlos Lacerda de Freitas. Equipe de produção: Hélio de Oliveira;
Francisco Nunes, Pedro Jaconi. Gerente
de produção: Hélio de Oliveira. Assistentes
de direção: Raimundo Bandeira de Mello, Arduíno Colasanti. Continuidade: Dora Ribeiro. Assistente de fotografia: Antonio Luiz
Mendes. Fotografia de cena: Antônio
Luiz Mendes, Arduíno Colasanti. Eletricistas:
Sandoval Dóres, Rodrigo Jorge. Assistente
de montagem: Ronaldo Marques. Laboratório:
Líder Cine Laboratórios. Estúdio de Som:
R. F. Farias. Técnico: Fonseca. Mixagem: Somil. Gravação de músicas: Estúdio B. Agradecimentos à: Prefeitura de Parati, Delegacia de Polícia de
Parati, América Fabril, Souza Cruz, Vera Barreto Leite, Anna Maria Ribeiro,
Helena Marques, Paulo Bittencourt, Moura Brasil, Colégio Samuel Costa, Douglas
Rameck, Hugo de Magalhães, Família Cruz Martins, Capitania dos Portos de Parati.
Tempo de exibição: 9o minutos.
(José Eugenio
Guimarães, 2014)
[1]
LACERDA, Luiz Carlos. Mãos vazias. <http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/leila/filmes/cinema/02_03_12.php>.
Acessado em 18 jun. 2014. Da união de Leila com Ruy Guerra nasceu Janaína Diniz
Guerra em 19 de novembro de 1971.
[2]
Cf. MIRANDA, Luiz F. A. Dicionário de cineastas brasileiros.
São Paulo: Art Editora, 1990. p. 183.
[3]
Cf. LACERDA, Luiz Carlos. Op. cit.
[4]
FARFÁN. René Capriles. Luiz Carlos Lacerda: "A poesia marcou meu
cinema". Entrevista. Filme Cultura. Rio de Janeiro, ano
VI, n. 20, p. 39-41, maio-jun. 1972.
[5] A
MULHER de longe retoma poeticamente filme de Lúcio Cardoso. <http://www.famdetodos.com.br/por/noticias/252-A_mulher_de_longe_retoma_poeticamente_filme_de_Lucio_Cardoso>.
Acessado em 18 jun. 2014.
[6]
FARFÁN. René Capriles. Op. cit.
Eugenio,
ResponderExcluirSou plenamente apreciador e seguidor de diretores que trabalham com planos longos e deixam suas imagens falarem pelos personagens, tornando o filme mais visual e mais fácil de entender.
Não conheço Mãos Vazias, do Lacerda, só assistindo dele Leila Diniz/87, que não apreciei, muito principalmente por Louise Cardoso não ter nada da Leila para fazer seu personagem, além de não ser uma boa atriz.
O restante do filme até passa, mas não acho que o Lacerda acertou a mão na fita, a qual tentou dar aos cinéfilos um conhecimento melhor da vida e costumes de sua atriz de Mãos Vazias.
A matéria posta é uma bem definida escrita para quem, como eu, sabia muito pouco do Lacerda, que desconhecia o Lucio, assim como tudo que envolveu a criação de Mãos Vazias e o trágico fim da Leila com todo seu envolvimento com o filme e etc, etc.
Como complemento diria: se o Lacerda não foi de um todo fiel ao romance do Lucio, ao menos captou a alma do romance no seu filme.
Ainda como complemento ressalvo a não inclusão do nome da Leila Diniz como uma das produtoras do filme, já que esta fez demais para colaborar na criação da obra, até vendendo um automóvel seu para o valor ser gasto na produção.
Bonito o gesto do Lacerda que, num agradecimento emocionante, cita o Nelson em seu filme fazendo uma alusão direta e positiva do diretor, já que recebeu deste enorme apoio e orientações de como fazer nascer Mãos Vazias.
Ótima matéria!
jurandir_lima@bol.com.br
Jurandir;
ExcluirAprecio muito o "Mãos vazias", principalmente por ser um filme totalmente autoral, diferente em tudo. Confesso que não é fácil vê-lo. Seria, segundo as definições de meu sogro, um filme para "filho legítimo". A Leila está, mesmo, muito bem.
Quanto ao mais, sempre fui fã de Louise Cardoso. Faz tempo que não a vejo. Aparentemente sumiu, ou, então, deve estar dando mais oportunidade ao teatro. Fiquei até tentado a levantar mais informações sobre ela. Considero-a talentosa. Transmite um tipo único de alegria em seu semblante. E o filme do Lacerda, protagonizado por ela, em homenagem a Leila, foi para mim um acerto, um despretensioso e generoso acerto.
Abraços.
Que análise enriquecedora e instigante! Obrigado por divulgá-la. Maurício do Carmo
ResponderExcluirMuito obrigado por sua presença e seu comentário, mmartinsc.
ExcluirUm abraço.
k coisa gente,ela se empenhou tanto para realizaçao do filme e no final ela morreu na viagem de volta,ganhando o premio de melhor atriz, só sendo o destino.
ResponderExcluirTerrível fatalidade, Paula.
ExcluirAbraços e grato pela presença e comentário.
fatalidade é destino?
ExcluirAssim parece, Paula Carvalho. Obrigado pela presença e comentário. Abraços.
Excluir