domingo, 10 de maio de 2015

O GOVERNADOR E A STRIPPER: SEXO, POPULISMO POLÍTICO E CORRUPÇÃO NO SUL ESTADUNIDENSE

Em 1949 o oscarizado A grande ilusão (All the king's men), de Robert Rossen, dramatizou a trajetória de Huey Pierce Long Jr., nome alterado para William Stark em memorável atuação de Broderick Crawford. O personagem, filiado ao Partido Democrata e amparado por programas de cunho progressista, elegeu-se governador da Louisiana e senador pelo mesmo estado. Foi assassinado em 1935 com a carreira comprometida por muitas denúncias de corrupção. Em 1989, desta vez pelas mãos do irregular Ron Shelton, o irmão de Huey, Earl K. Long (Paul Newman), governador da Louisiana por três mandatos, também atrai a atenção do cinema. Estruturado como comédia romântica desenvolvida sob pano de fundo real, Blaze — O escândalo (Blaze) acompanha a carreira de Earl em seu envolvimento visceral e público com a amante e stripper Blaze Starr (Lolita Davidovich). Com roteiro extraído da autobiografia Blaze Starr: My life as told to Huey Perry, o filme é, por vezes, uma cativante interpolação entre sexo e populismo político encenado no racista e conservador 'Old South' estadunidense. O tom combina nostalgia com galhofa. Suas principais qualidades são a magnífica direção de fotografia de Haskell Wexller e a mais que evocativa trilha musical composta por Bennie Wallace, à qual se juntam preciosidades do nascente rock e da tradicional country music. A apreciação que se segue data de 1994.







Blaze — O escândalo
Blaze

Direção:
Ron Shelton
Produção:
Gil Friesen, Dale Pollock
Touchstone Pictures, Silver Screen Partners IV, A&M Films
EUA — 1989
Elenco:
Paul Newman, Lolita Davidovich, Jerry Hardin, Gailard Sartain, Jeffrey DeMunn, Robert Wuhl, Richard Jenkins, Garland Bunting, Jay Chevalier, Brandon Smith, Michael Brockman, Eloy Casados, James Harper, Teresa Gilmore Capps, Dianne Brill, Blaze Starr, Gilbert Lewis, Gary Sturgis, Louanne Stephens, Emily Warfield, Ben Cook, John Fertitta, Harlan Jordan, Rod Masterson, Bill Dunleavy, King Kotton, Mike Haer, Bob Cherry, Sid Lacey, Harold C. Herthum, Frederick F. Lewis, Al Robinson, Dick Person, Brooks Read, Bill Mesman, John A. Barber, Patrick Baldauff, Carey Kauhman Holliday, Robert Earl, Thomas Radcliffe Atkins, Thomas C. Smith-Alden, Donald J. Lee Jr., Pat Snow, George Wyatt, Deeno Thornton, David R. Conly, Janet Shea, Glynn Rubin, Michael O'Neal, Michael Brooks, Stanley Hughes, Kevin Graham, Wendell Raybon, Brad Leland.



O diretor Ron Shelton durante as filmagens de seu Homens brancos não sabem enterrar (White men can't jump, 1992)



1950: Belle (Davidovich), 18 anos, tentará a sorte na cidade grande. Deixa a família pobre e a pacata comunidade rural de Twelvepole Creek, na Virginia, onde sempre viveu. Na bagagem, o violão que a embala em inúmeras e inocentes baladas de rock e country music. Promete respeitar o conselho de "Cuide-se", da mãe. Na capital, emprega-se numa lanchonete. Chama a atenção de proprietário de casa noturna que a contrata com a promessa de ganhar, em um dia, o salário de uma semana de balcão. Aceita, sem saber onde irá parar. Acredita apenas que foi contratada para cantar. Até tenta. Na noite da estreia, convencida a mudar o nome, adota Blaze Starr. Inibida, sobe ao palco e tira ao violão os primeiros acordes de uma modinha. Mas a alvoroçada plateia — quase toda formada por soldados de partida para a Coreia — a apavora com gritos de "Tira a roupa". Tenta retornar ao camarim, inutilmente. Em nome do patriotismo é convencida a atender aos pedidos. Afinal, os rapazes irão lutar pela preservação das fronteiras do "mundo livre". Começa assim, acidentalmente, a carreira de stripper de Belle/Blaze Starr.


Passam-se nove anos e muitos cabarés. Blaze está em New Orleans, capital da Louisiana. Continua no palco, exibindo o corpo escultural. O rosto ainda guarda o ar brejeiro de garota do campo. Mas, agora, é pura desinibição. Numa noite, o Governador do estado, Earl Kemp Long (Newman), comparece ao show. A visita inicia mais um caso de amor à primeira vista — desta vez extraído da realidade.



Acima e abaixo: Paul Newman no papel de Earl Kemp Long, governador da Louisiana


Em 1949, outro Long — Huey, irmão de Earl — também interessou ao cinema, que o retratou sob a alcunha de William Stark (Broderick Crawford) em A grande ilusão (All the king's men), importante realização de Robert Rossen. Huey, assassinado em 1935, senador e governador da Louisiana, é um dos personagens mais significativos do populismo político nos Estados Unidos. O difícil começo da carreira, feita de honestidade e idealismo, naufraga quando apela à corrupção como garantia de poder. Earl, seu herdeiro político, segue igual caminho. Durante o dia é o paizão das comunidades negras marginalizadas; à noite, é o despudorado queridinho das dançarinas de cabaré. Em Blaze  O escândalo, está no terceiro mandato de governador quando inicia o romance com a personagem do título. Contava 65 anos contra os 28 da stripper.


Paul Newman e Lolita Davidovich, devidamente caracterizados como Earl K. Long e Blaze Starr, em foto promocional para o filme de Ron Shelton



Assim Earl justifica a atração por Blaze: "Tenho um fraco por mulheres independentes, de vontade férrea e seios grandes". O rumoroso affair logo vem a público. Escandaliza o Sul conservador, puritano, familiar e racista. O governador era casado. A esposa, de personalidade forte, dada a escândalos, certamente aprontou quando soube que era passada para trás. Mas o filme omite qualquer referência direta à família de Earl — provável tentativa de contornar problemas judiciais. Trata-o como desapegado homem de vida simples que encontra na política, depois em Blaze, as razões básicas da existência.


O roteiro baseado na autobiografia Blaze Starr: My life as told to Huey Perry e a direção de Ron Shelton retratam Earl com simpatia. É o representante de um mundo situado na fronteira entre o rural e o urbano, ambos prestes a desaparecer. Personalíssimo e carismático, não se deixa dominar pela burocracia partidária. Possui métodos próprios de convencimento. Defende a extensão dos direitos civis e políticos aos negros. Mas como bom populista não tem nessa bandeira uma convicção, mas, sim, o fato de encontrar entre os excluídos um celeiro de votos. Seus conselheiros, sabendo que o apoio à liberalização poderá acarretar a não reeleição, tentam convencê-lo a se afastar dos debates. Mas Earl não admite ninguém falando por ele. Comparece ao parlamento e, em sequência primorosa, trava com os conservadores engraçado bate-boca, fundamentado em passagens bíblicas, sobre a cidadania dos negros.


O governador Earl K. Long (Paul Newman) trava conhecimento com Belle/Blaze Starr (Lolita Davidovich)



Earl procura se situar no centro de qualquer evento. Transforma toda ocasião em motivo para fotos promocionais, fáceis de conseguir graças à legião de jornalistas que sempre o acompanha. Pede votos sem cerimônia. Tem língua solta. Não oculta as práticas fisiológicas e corruptas. Diante do adversário que o acusa de comprar deputados, contra-argumenta de forma bombástica: "Jamais comprei um deputado. Eu os alugo; é mais barato". Quando os negros o acusam publicamente de fazer muito pouco por eles (conseguir emprego para os diplomados, por exemplo), não pensa duas vezes. Vai ao hospital e fere o orgulho dos profissionais brancos que aí trabalham em regime de exclusividade. Diz ser inadmissível que cuidem de pacientes negros, quando estes podem contar com médicos e enfermeiros da mesma raça. Logo a instituição altera sua política de pessoal. Depois de vê-lo em ação, Blaze não resiste a um comentário: "Vejo que nós dois estamos no show business". Earl concorda e completa: "Você entende os mecanismos de governo muito rápido".


Belle/Blaze Starr (Lolita Davidovich) e Earl Kemp Long (Paul Newman)



A personagem de Davidovich deveria funcionar como contraponto de Earl. Ambos são de origens rurais. Ela é tão personalista e desbocada quanto ele. Quando aparece de surpresa em reunião política, vestida, penteada e maquiada inadequadamente, responde em alto e bom som às senhoras que perguntaram ironicamente por que pretendia ir ao banheiro: "Para fazer xixi". Mas se o Sul consegue aceitar e, mesmo, engolir Earl, não faz o mesmo com Blaze. Ela representa e explicita tudo aquilo que há de inconveniente e inaceitável, tanto na personalidade do personagem de Newman como na região. Diante dela a hipocrisia e o falso moralismo não resistem. O governador e a dançarina são instados, a todo momento, a abrirem mão um do outro. Quando Earl diz ao correligionário que "A única coisa a me atrapalhar são minhas ideias progressistas", recebe como resposta: "Blaze Starr é a maior ideia progressista que você já teve". A imprensa leva ao público detalhes picantes da vida íntima do casal, a ponto de provocar uma tentativa de interdição arbitrária do governador. No manicômio em que é internado, Earl, com a ajuda da amante, convoca uma reunião dos auxiliares em seu gabinete. Fala-lhes ao telefone, e em atitude surpreendente ordena a demissão do secretário da saúde que autorizou a internação. Ato contínuo, nomeia outro que o libera.


 Earl Kemp Long (Paul Newman)


Infelizmente a direção de Shelton não consegue, a contento, fazer de Blaze o contraponto de Earl. Esse desacerto resulta da prioridade algo excessiva da personagem da stripper, diante da qual o governador parece reduzido. Só quer saber da namorada; cobre-a de dinheiro, joias e um lince de verdade. Desesperado depois de longo tempo afastado, invade o cabaré como um louco cego de amor, mandando bala nos refletores, chamando-a aos gritos. No fundo, ambos são tratados como namoradinhos assanhados frente ao pano de fundo da política e da sociedade, o que dilui bastante a complexidade do caso. Lolita Davidovich recebe maior destaque no que toca à construção de sua personagem. Mas é inexperiente, apesar de esforçada e simpática. Quem brilha mesmo é Paul Newman, ainda que o roteiro não se aprofunde nas nuanças de Earl Long.


Cada vez mais envolvido com a amante, Earl é derrotado quando tentava o quarto mandato. Não adiantou Blaze ceder aos apelos dos conselheiros: afastar-se temporariamente para não prejudicar a campanha. Desligado da vida pública, Earl se isola no campo, assumindo de vez a relação com a amante. Mas o peso do ostracismo o faz definhar física e mentalmente. Para reerguê-lo, ela o convence a voltar à política. Convoca os correligionários. Juntos, rompem os estreitos limites da Louisiana e lançam Earl ao Senado Federal. Blaze volta aos palcos e põe o corpo nu a serviço da campanha. O esforço é vitorioso. Porém, debilitado, Earl morre amparado por ela quando da divulgação dos resultados oficiais.


Earl K. Long (Paul Newman) e Belle/Blaze Starr (Lolita Davidovich)


Blaze  O escândalo é agradável comédia romântica, pontuada de motivos dramáticos. Conta história de astral elevado, na forma de saborosa crônica de época. Possui cativante trilha musical, na qual se incluem composições originais de Bennie Wallace e antigas baladas recicladas do country e do rock que identificam, à perfeição, o tempo e o mundo retratados. A música transporta o espectador, de imediato, ao contexto da trama, como acontece, logo no início, com a apresentação dos primeiros créditos. A histórica Jambalaya (On the bayou), de Hank Williams  transformada em canção emblemática de uma época —, pontua o filme de forma eficiente e nostálgica. É o tema de Blaze, com o qual levanta o "moral" do governador quando este estava para fracassar na primeira relação amorosa. Também funciona magnificamente a belíssima fotografia de Haskell Wexller. Suas lentes enquadram o Sul em imagens etéreas e multicoloridas, parecendo transportar a região a um lugar e tempo míticos.


Earl K. Long (Paul Newman) e Belle/Blaze Starr (Lolita Davidovich)



A verdadeira Blaze Starr faz ponta como Lili, dançarina que tem o rosto tocado carinhosamente pelo personagem de Paul Newman quando ele adentra o camarim do cabaré à procura da stripper que o encantou.







Produtor associado: Wendy Dozoretz. Produção de elenco: Victoria Thomas. Música e arranjos: Bennie Wallace. Supervisão musical: David Anderle. Figurinos: Ruth Myers. Montagem: Robert Leighton. Desenho de produção: Armin Ganz. Direção de fotografia (DuArt Film Laboratories, Technicolor): Haskell Wexler. Roteiro: Ron Shelton, baseado em Blaze Starr: My life as told to Huey Perry, de Blaze Starr e Huey Perry. Produção executiva: David Lester, Don Miller. Gerente de unidade de produção: Penelope L. Foster. Primeiro assistente de direção: Yudi Bennett. Segundo assistente de direção: Donald J. Lee Jr. Direção de arte: Edward Richardson. Assistente de direção de arte: Steven Wolff. Planejamento do set: Harold Fuhrman. Decoração: Michael J. Taylor, Rosemary Brandenburg. Supervisão de costumes: Linda Matthews. Costumes masculinos: Mitchell Ray Kenney, Mark Burchard. Costumes femininos: Mary Law Weir, Chantal Jaab-Ives. Maquiagem: Monty Westmore, Christina Smith. Penteados: Judith Alexander-Cory, Lina Meyers. Operador de câmera: Stephen Saint John. Primeiro assistente de câmera: P. Scott Sakamoto. Segundos assistentes de câmera: Douglas S. Holgate, Michael Selph. Continuidade: Karen Golden. Assistentes de produção do set: Maggie Murphy, Julie Herrin, Mark Vogler. Produção da mixagem sonora: Kirk Francis. Operador de microfone: Mychal Smith. Assistentes de montagem: Steve Nevius, Barbara Dunning, Debbie Goldsmith. Edição musical: Scott Stambler. Assistente de edição musical: Alan Edward Bell. Supervisão de edição de som: Gordon Ecker, Bruce Stambler. Edição de som: Lucy Goldsnow, Hector Gika, Jayme S. Parker, Don Warner, Vern Shaw, Richard F. Yawn, Bob Bradshaw, James J. Isaacs. Gravação de efeitos sonoros: Gary Blufer. Chefe de iluminação: Gary H. Holt. Operador de lâmpadas: Bill Kratiger, Ralph Stiers. Ferramenteiro-chefe: Bill Young. Segundo ferramenteiro: Bruce Sepellman. Controle do carrinho: Michael Schwake. Técnico: William Rustic. Contrarregra: Charles Stewart. Assistentes de contrarregra: Linda Waxman, Bill Cancienne. Assistente para produtor executivo: Catherine Schellhorn. Assistente para o diretor: Karin Freud. Assistente para os produtores: Dale Ditlove. Coordenador de construções: John J. Rutchland. Gerente de locações: Kory Enke. Assistente de gerente de locações: David Lamb. Coordenador de produção: Lisbeth Wynn-Owen. Consultor técnico: Brooks Reed. Direção de diálogos: Julie Adams. Fotografia de cena: Sidney R. Baldwin. Produção de elenco extra: Dee Cothern. Treinamento de animais: Steve Martin, Keith Bauer. Orquestração: Julie West Giroux. Títulos: Buena Vista Visual Effects Group. Direção de segunda unidade: David Lester. Fotografia de segunda unidade: John Toll. Tempo de exibição: 117 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1994)

2 comentários:

  1. Eugenio,

    Infelizmente eu não vi do Shelton o filme com o Newman, Blaze, O Escandalo..

    Aliás, para ser mais sincero, desconhecia qualquer conexão com o personagem do político do perfeito A Grande Ilusão, num dos melhores papéis do Crawford no cinema, com o personagem de Blaze, neste caso um parente do personagem do Broderick.

    Andei até conhecendo alguns poucos dos já poucos trabalhos do Shelton, que foi Homens Brancos não Sabem Enterrar/92, A Face Oculta da Lei/02 e Divisão de Homicídios/03.

    Nenhum dos tres filmes que vi com a direção do Ron me desagradaram. Ao contrário, foram peliculas que, se delas não recordo detalhes, nos meus ALFARRÁBIOS eles constam como filmes dentro de uma boa média, ou seja, com nota 2 e 3 (notas de 1 a 5). Portanto o considero, pelo que vi do mesmo, um diretor com uma agradável satisfação dos trabalhos.

    Abraço do amigo bahiano e fico na espera da resposta do email que vos enviei pessoalmente.

    jurandir_lima@bol.com.br


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    1. Olá, Jurandir;

      De Ron Shelton, creio, conheço apenas BLAZE, O ESCÂNDALO e HOMENS BRANCOS NÃO SABEM ENTERRAR. Você ganha de mim por um corpo de vantagem. Como diretor, está atuando na TV atualmente. Seu último filme para cinema foi DIVISÃO DE HOMICÍDIOS, de 2003. A filmografia dele é curta: apenas 11 títulos,contados aí os que exclusivamente dirigiu. Também é roteirista e produtor.

      Abraços.

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