Praticamente
20 anos antes dos espalhafatosos O Show de Truman (The
Truman Show, 1998), de Peter Weir, e Ed TV (Edtv,
1999), de Ron Howard, o cineasta francês Bertrand Tavernier antecipava, discreta
e dolorosamente, um dos mais problemáticos descaminhos da contemporaneidade
ocidental: a exposição sem peias de dimensões da esfera privada em programas
televisivos denominados interativos, dos quais o Big Brother Brasil é
apenas um dos tristes exemplos. A morte ao vivo (La
mort en direct/Death watch/Death watch - Der gekaufte tod, 1980) é adaptação da novela de ficção científica The continuous Katherine
Mortenhoe ou The unsleeping eye, de David
Compton. A personagem interpretada por Romy Schneider é doente terminal. Terá
seus últimos e dolorosos dias devassados por um programa de televisão. Paralelo
ao problema da dissolução da privacidade, o diretor apresenta questões agudas
da atualidade como a banalização da morte e, consequentemente, da vida, sem
esquecer a falência de instituições herdadas da consolidação da contemporaneidade por processos como secularização do mundo e das consciências, Filosofia do
Iluminismo, adoção da objetividade científica e revoluções políticas que
geraram o Estado Nacional: Indivíduo, Identidade, Cidadania, Lei Objetiva e
Impessoal, Espaço Público etc. A apreciação a seguir é de 1991.
A morte ao vivo
La mort en direct/Death watch/Death watch - Der gekaufte tod
Direção:
Bertrand Tavernier
Produção:
Elia Kfouri, Janine Rubeiz (não
creditado)
Société
Française de Production (SFP), TV13 Filmproduktion, Selta Films, Little Bear
Films, Sara Films, Gaumont International, Antenne 2, TV 15, Films A2
França, República Federal da
Alemanha, Inglaterra — 1980
Elenco:
Romy Schneider, Harvey Keitel,
Harry Dean Stanton, Max Von Sydow, Therese Liotard, Caroline Langrishe, William
Russell, Vadim Glowna, Eva Maria Meineke, Freddie Boardley, Robbie Coltrane,
Julian Hough, Peter Kelly, Boyd Nelson, Billy Riddoch, Derek Royle, Ida
Schuster, John Sheddon, Vari Sylvester, Jimmy Yuill, Paul Young, Jake D'Arcy
(não creditado), Maureen Jack (não creditado), Bernhard Wicki, Carey Wilson
(não creditado).
O diretor Bertrand Tavernier, cineasta e crítico |
Indicado ao Urso
de Ouro no Festival de Berlin de 1980, a seis prêmios César em 1981 e laureado
com o Sant Jordi de Melhor Filme Estrangeiro em 1982, A morte ao vivo é, justa
e acertadamente, dedicado ao diretor Jacques Tourneur. Este, ao lado de outros
que honraram a história da sétima arte, está atualmente relegado ao olvido
pelas recentes ondas modernizadoras da narrativa cinematográfica, nem sempre
dignas de louvor, ainda mais quando significam tão somente banalização embutida
em efeitos mirabolantes permitidos por tecnologias gráficas e informatizadas de
última geração.
Aliás, a morte
abordada em A morte ao vivo, mais que o falecimento físico do indivíduo,
relaciona-se à vulgarização crescente de temas, questões e construções
históricas permitidas e consolidadas pelas revoluções nas esferas políticas e
do conhecimento, trazidas pela secularização do mundo e das consciências, Filosofia
do Iluminismo e adoção da objetividade na pesquisa científica. Tais movimentos
estão na origem da Modernidade ocidental e nas criações do Estado Nacional,
Indivíduo, Identidade, Cidadania, Privacidade, Lei Objetiva e Impessoal, Espaço
Público etc. Pode-se dizer que essas criações também são feridas de morte na realização de Bertrand Tavernier, à medida que o espectador conhece e descortina o
drama de Katherine Mortenhoe (Schneider).
Romy Schneider interpreta Katherine Mortenhoe |
Katherine,
programadora de livros, recebe do Dr. Mason (Russell) a notícia de que é incurável a doença que a aflige. Restam-lhe poucos e dolorosos dias
de vida. Não sabe que estão ocultos no consultório, testemunhando o atendimento, Vincent Ferriman (Stanton) e Roddy (Keitel). Ferriman é o ambicioso e
amoral executivo da N.T.V. — rede de televisão prestes a estrear o programa A morte ao vivo, cuja proposta é acompanhar
e exibir todo o cotidiano de gente prestes a falecer, carregando nos aspectos
mais mórbidos e sórdidos. Personagem interessante, emblemático e paradoxal é
Roddy: sofre de fobia à escuridão e ingere inibidores de sono. Em sua retina é
implantada uma microcâmera. Será, de certa maneira, o algoz de Katherine. Registrará os últimos momentos da enferma.
Não demora para a
vida privada de Katherine chegar ao conhecimento público de forma a mais acintosa.
Seu drama pessoal mobiliza a mídia. Antes mesmo de assinar contrato com a
N.T.V. — recebe 500 mil dólares pelos direitos de transmissão —, tem a imagem
exposta em outdoors que anunciam por
todo canto a estreia do programa. Depois de relutar, cede às pressões da
emissora. Com planos próprios, repassa a quantia ao marido Harry Graves
(Glowna). Disfarçada, desaparece da ostensiva vigília do canal, mas por pouco
tempo. É encontrada por Roddy, oculta em albergue católico. De imediato recomeçam as
transmissões. Longe dos aparelhos de TV, Katherine não percebe o que ocorre.
Roddy se acerca. Passa por amigo. Acompanha-a numa peregrinação por locais significativos
da infância e juventude, o que a levará, apesar dos contratempos, ao encontro
do primeiro marido, o recluso professor e musicólogo Gerald Mortenhoe (Sydow).
Harvey Keitel interpreta Roddy, acompanhante e, de certo modo, algoz de Katherine |
Roddy (Harvey Keitel) e Katherine (Romy Schneider) |
Gerald Mortenhoe (Max Von Sydow) e Katherine (Romy Schneider) |
A narrativa é entremeada
por paradoxos. As imagens, principalmente as externas, são fortemente
iluminadas, uma claridade de tons dissolventes, fantasmagóricos. Em oposição
está o temor à escuridão: da morte, que envolverá Katherine; da ausência de
luz, próxima à cegueira, que atormenta Roddy. Mas a iluminação intensa tem
outro propósito: lembrar ao espectador as origens do filme: a novela de ficção
científica The continuous Katherine Mortenhoe ou The unsleeping eye, de
David Compton. Aliás, a peça, na transposição às telas, não se revela tão
ficcional: os cenários, bem contemporâneos, são condizentes com a antevisão da
banalização que envolve inúmeras dimensões da esfera vital, já evidenciadas por
ocasião das filmagens. As primeiras imagens mostram uma criança brincando num
cemitério praticamente abandonado, o que parece traduzir a perda das dimensões
reverenciais e sagradas da morte, consequentemente, da própria vida.
Roddy (Harvey Keitel) e Katherine (Romy Schneider) |
Outros paradoxos
revelam o descaso crescente com a dimensão pública e organização político-social.
Passam praticamente despercebidos os dizeres de um cartaz: “Mantenha com vida
os professores”. A noção de indivíduo, expressada pela ideia de autoria, também
se dissolve como revela o próprio trabalho de Katherine: é programadora de
livros, atividade que a restringe a alimentar com temas de interesse comercial
as máquinas que escrevem no lugar dos verdadeiros escritores. Enquanto se
assiste, às expensas da personagem de Schneider, ao falecimento da política e
do indivíduo, amplia-se o interesse por devassas tão impiedosas quanto
despudoradas da vida privada. O drama descortinado pela TV mobiliza as
audiências, não porque o sofrimento alheio provoque solidariedade e comiseração,
mas por ser apresentado como espetáculo que apazigua os sentimentos das massas
no que estas possuem de mais mesquinho. Assim admite a atendente de
supermercado, ao afirmar a vontade de chorar com o drama de Katherine. Condizente
com esta tendência, há a declaração de Vincent Ferriman, de que o programa não
o repugna: “A morte é a nova pornografia; é real, pois nos intimida”. Portanto,
completa: deve ser exposta e explorada sem meias verdades. Assim ditam as leis do
mercado desprovido de limites. Estes se perdem frente à força da vulgarização
que governa aspectos e dimensões antes considerados significativos do viver.
Pouco importam Katherine, sua dor e sentimentos. Tornam-se objetos explorados
para o consumo fácil e imediato, servem à produção de comoções alheias. À
protagonista só restam os consolos de medicamentos que mitigam dores físicas,
não as da alma. Por sua vez, desprovido de espiritualidade, Roddy também os consome
para permanecer acordado, sempre alerta no acompanhamento de um processo de falecimento
e degradação. Só a perda da visão o levará à recuperação da humanidade. Em
seguida descobre — e admite — como é bom cerrar os olhos e se entregar à
escuridão do sono. Renega Ferriman e reencontra o próximo e o amor em Tracey
(Lyotard). No mundo exposto em A morte ao vivo, o melhor, talvez, é
perder a visão, fechar-se à banalização e à superexposição para,
paradoxalmente, voltar a enxergar.
Katherine Mortenhoe (Romy Schneider) e Roddy (Harvey Keitel) |
Mas não há
alternativas para Katherine. Mesmo descoberto o erro médico que a condenou, não
terá mais controle sobre a própria vida depois de submetida ao experimento da N.T.V.
Só recuperará a autonomia e resguardará a autoestima pelo recurso extremo da
morte. Longe de tudo e todos, inclusive das devassadoras lentes televisivas,
deixa-se morrer pela ingestão massiva dos medicamentos receitados. Por
concessão do ex-marido, acompanha-a apenas o fundo musical que comenta seu
último ato: a audição em alto som da peça medieval de Robert De Bauleac,
recentemente recuperada e reconstituída. Desta forma, Tavernier parece informar
que a contemporaneidade descarrilada precisa reencontrar seus fundamentos
iluministas e libertários, atropelados pelas ondas de instrumentalização das
esferas vitais. Mas, poderia perguntar o espectador — sabendo que Tavernier apresentaria
a mesma interrogação: objetivamente, quais fundamentos? A resposta, provavelmente,
reside na escolha da composição de De Bauleac — um personagem fictício, mas protagonista
de um tempo que oculta as raízes descoladas do viver hodierno. A peça a ele
atribuída é de Antoine Duhamel, autor da trilha musical de A morte ao vivo. Interessante
é que muitos espectadores movidos pelo filme, mas desinformados, acorreram às
lojas em busca de gravações de um certo Robert De Bauleac.
Roteiro: David Rayfiel, Bertrand Tavernier, baseados na
novela The continuous Katherine Mortenhoe ou The unsleeping eye, de
David Compton. Diálogos alemães:
Géza Von Radvánvi. Direção de fotografia
(Eastmancolor): Pierre-William Glenn. Música
original: Antoine Duhamel. Desenho
de produção: Anthony Pratt. Maquiagem:
Paul Le Marinel.
Penteados: Jean-Max Guérin. Figurinos: Judy Moorcroft. Montagem: Michael Ellis, Armand Psenny.
Produção executiva: Jean-Serge
Breton. Casting: Mary Selway. Co-produção: Bertrand Tavernier. Assistentes de direção: Jean Achache, Trudy von Trotha, David Haubenstock (não
creditado). Segundo assistente de direção: Charlotte Trench. Estagiário de assistente de direção: Jean-Louis Ulan. Som:
Michel Desrois. Direção de arte:
Bernd Lepel. Gerente de produção:
Louis Wipf. Delegado de produção: Gabriel Boustiani. Produção associada: Sigmund Graa, Georg
M. Reuther, Renzo Rossellini (não creditado). Gerente de unidade de produção: Iain Smith. Contra-regra: Terry Dalzell. Assistente
de direção de arte: John Hoesli. Edição
de som: Catherine Kelber. Ruídos de
sala: Jean-Pierre Lelong. Assistente
de som: Dominique Levert. Pós
sincronização de som: Catherine Leygonie, Jacqueline Porel. Mixagem de som: Claude Villand. Iluminação: Jacques Arhex. Ferramenteiro: Albert Bonomi. Segundo assistente de camera: Michael
Coulter. Assistente de câmera:
Pascal Lebègue. Eletricista-chefe:
Rene Rochera. Operador de câmera: Jean-Claude
Vicquery. Fotografia fixa: Georges
Pierre (não creditado). Guarda-roupa:
Nadia Arthur, Monique Dury. Assistente
de figurinos: Inge Heer. Assistentes
de montagem: Sophie Cornu, Luce Grunenwaldt. Composição da canção-título (For the love of the golden city):
Roger Mason. Direção musical: Harry Rabinowitz. Secretaria de produção: Marianne Devis,
Nicole Souchal. Administração: Anne-Marie
Otte, Silvain Samama. Continuista: Alice
Ziller. Equipamentos de câmera: Alga-Samuelson.
Equipamentos elétricos: Transpalux. Tempo de
exibição: 120 minutos (8 minutos
eliminados pela distribuidora).
(José Eugenio Guimarães, 1991)
Eugenio,
ResponderExcluirV muitos poucos filmes com a Romy, atriz que também não teve uma carreira pontuada de muitos trabalhos.
No entanto, andei lendo algo sobre sua vida atribulada, como a perda de um filho, doenças, alcool e drogas, o que lhe arrastou deste mundo muito cedo.
Era belissima, uma jovem com face angelical e que nasceu para o cinema com a trilogia Sissi, que vi ainda garoto e fiquei encantado com, não apenas somente sua lindeza pessoal, mas com a qualidade dos filmes, com uma fotografia a cores dentro dos naturais padrões dos filmes Europeus da época, do tipo de Angélica, A Marquesa dos Anjos, com a estonteante Michele Mercier.
Andei vendo mais alguns filmes da "Sissi", como todos da época passou a conhece-la, como A piscina, do qual nada me lembro, a não ser que foi ao lado de sua eterna paixão, o Alain Delon.
Infelizmente o filme da pauta eu não conheço, porém seu tema é por demais interessante e já fico imaginando a interpretação desta grande atriz, uma mulher sem muita felicidade e que nos deixou cedo demais, porém de fortes recursos diante das câmeras.
jurandir_lima@bol.com.br
Jurandir,
ExcluirCaso tenha familiaridade com o processo de baixar filmes por computador, cole este link na sua barra de navegação e poderá fazer o download de "Morte ao vivo":
La Mort en direct (1980)[BRRip.720p.x265-HEVC.AC3][Lektor PL][Eng].
Abraços.